A cena acontece quando a narrativa de Virada no Jogo/Game Change ainda não chegou ao meio. No jatinho executivo, viajam lado a lado o principal estrategista da campanha presidencial do republicano John McCain, Steve Schmidt (interpretado por Woody Harrelson), e a jovem governadora do Alasca, Sarah Palin, escolhida para concorrer à vice-presidência (Julianne Moore).
Schmidt diz, com uma expressão de admiração:
– “A senhora parece totalmente impassível diante de tudo isso…”
E Sarah Palin, através de uma Julianne Moore que se parece demais com a personagem real que interpreta com brilhantismo, responde, com um sorriso beatífico:
– “É o plano de Deus.”
É chocante. É impressionante, inacreditável.
“Ela nem sabia que existem duas Coréias”
Àquela altura do filme e dos acontecimentos – uns 45 minutos de ação, meados de 2008 –, nem os principais assessores do senador John McCain nem muito menos o povo dos Estados Unidos tinham idéia da extensão do despreparo de Sarah Palin para o cargo, seu absoluto desconhecimento sobre os temas mais triviais de História, Geografia, Economia, e sobre a própria máquina administrativa americana. (Na foto abaixo, a personagem real.)
Um pouco mais adiante, Nicolle Wallace (Sarah Paulson), profissional experiente, designada para ser a principal assessora de imprensa da governadora do Alasca na campanha, vai dizer a Steve Schmidt:
– “Me preocupo com o que ela conhece sobre política externa. Ela não sabia que existem duas Coréias.”
Numa outra sequência, quando Steve Schmidt e Nicolle Wallace estão tentando preparar Sarah Palin para uma entrevista, fala-se da aliança entre Estados Unidos e Inglaterra nas tropas estacionadas no Afeganistão. A moça diz que Inglaterra e Estados Unidos sempre foram aliados, e seguramente John McCain poderá conversar com a rainha sobre os assuntos envolvendo os dois países.
Schmidt e Nicolle se entreolham. O mais educadamente que consegue, Schmidt diz a ela que a rainha não é a chefe de governo da Grã-Bretanha.
– “Ah, não?” – faz a moça bonita do Alasca. – “Mas então quem é?”
Schmidt conta então para ela que é o primeiro-ministro. E aí, já que a conversa estava nessa altura, Schmidt pergunta, como se fosse um repórter de TV:
– “Por que estamos no Iraque?”
E a moça bonita do Alasca, de bate-pronto:
– “Porque Saddam Hussein nos atacou no 11 de setembro!”
Schmidt é obrigado a contradizer a pessoa que ele pretendia colocar como vice-presidente dos Estados Unidos da América, e a explicar que não foi Saddam Hussein, e sim a Al-Qaeda que atacou o país no 11 de setembro.
O senior campaign strategist, como um letreiro o define bem no início do filme, resolve tentar um lance ousado:
– “A senhora sabe o que é o Fed?”
Não. Ela não tem coragem de dizer que não sabe, mas não sabe. Era o plano do Deus dela que ela fosse candidata a vice-presidente dos Estados Unidos, mas ela não sabia o que é o Fed, o Federal Reserve Bank, o Banco Central do país, que, naquele exato momento, segundo semestre de 2008, enfrentava o início da maior crise do sistema capitalista desde a quebra da Bolsa de Nova York em 1929.
Às vezes é difícil convencer as pessoas de que 1 + 1 são dois
(Parênteses para uma historinha pessoal. Uma vez, na Agência Estado, tive bastante dificuldade em convencer uma extraordinária profissional, de profundo conhecimento de Economia, de que deveríamos grafar Fed, e não FED, como muita gente insiste em escrever. Não entendo uma bilionésima parte de Economia que aquela ótima editora entende, mas, como generalista que sempre fui ensinado a ser, conheço um pouquinho a forma de lidar com as palavras, e sei a diferença entre uma sigla e um diminutivo. As siglas, de uma maneira geral, são escritas em caixa alta, como por exemplo BIS, sigla em inglês de Bank for International Settlements, o banco central dos bancos centrais, argumentei, mas Fed não é uma sigla, é um diminutivo, um apelido, uma corruptela, um jeito rápido, curto, de designar o Federal Reserve Bank usando poucas letras. Como, por exemplo, Chico em relação a Francisco. Não se escreve CHICO, não é mesmo?
Não foi uma conversa fácil. A editora era talentosíssima, conhecia profundamente economia, mas era teimosa feito uma mula. Às vezes é difícil explicar que 1 + 1 dá 2, se a conta não estiver errada, e todas as demais variáveis estiverem sob controle. Embora, é claro, as conversas de Nicolle Wallace e Steve Schmidt com Sarah Palin devam ter sido umas trocentas bilhões de vezes mais difíceis…)
Uma narrativa clássica, sem invencionices. E com letreiros para ajudar o espectador
Virada no Jogo/Game Change se baseia em um livro escrito Mark Halperin e John Heilemann, sobre os bastidores da campanha presidencial republicana de 2008. O roteirista Danny Strong e o diretor Jay Roach optaram por fazer uma narrativa a mais clássica, convencional, tradicional possível, sem invencionices, criativóis, fogos de artifício.
Apenas e tão somente recorreram àquela coisa que chamo de narrativa-laço: a primeira seqüência que vemos aconteceu bem no final da história. Depois dessa primeira sequência, a narrativa volta no tempo, pega o início da história e a partir daí vai seguindo direitinho a ordem cronológica. Para facilitar a compreensão, há letreiros nos informando a respeito do dia e o local em que os fatos aconteceram; letreiros também nos informam quem são os personagens, à medida em que eles vão aparecendo.
Às imagens do filme que procura recontar com a maior exatidão possível a história real acontecida outro dia mesmo, intercalam-se imagens de noticiário de TV – imagens reais, que foram ao ar naquele ano de 2008.
A primeira seqüência faz uma deliciosa mistura de realidade com a realidade reecenada pelo cinema/TV. O jornalista Anderson Cooper, âncora da rede CNN, fazendo o papel dele mesmo, entrevista Steve Schmidt, que havia sido o principal estrategista da campanha presidencial de McCain, e aqui, na realidade reencenada, é interpretado pelo sempre ótimo Woody Harrelson.
A pergunta – quase uma afirmação – que Anderson Cooper faz é mais ou menos assim:
– “Para você, escolher Sarah Palin foi para vencer a eleição, e não necessariamente por ser a melhor opção de vice-presidente.”
Woody Harrelson-Steve Schmidt mede um pouco as palavras que vai pronunciar:
– “Meu trabalho era dar conselhos políticos. Nós precisávamos fazer algo corajoso para vencer.”
O trabalho dos jornalistas, o motivo pelo qual eles recebem salário ao final do mês, é fazer perguntas, na tentativa de obter respostas que sejam de interesse dos leitores ou espectadores. Os regimes autocráticos e autoritários, assim como seus seguidores, jamais vão conseguir compreender isso, mas esta é a verdade dos fatos. E então Anderson Cooper, fazendo o papel de Anderson Cooper, pergunta:
– “Se você pudesse fazer tudo de novo, você a escolheria?”
A câmara mostra Woody Harrelson-Steve Schmidt em close-up. Ele não responde.
Aí então o filme volta atrás no tempo, para alguns meses antes, exatamente para agosto de 2007. Steve Schmidt, marqueteiro respeitado por importantes políticos do Partido Republicano, está correndo num parque, o celular toca. É John McCain, com uma proposta de trabalho.
O candidato McCain é um herói de guerra, eleito e reeleito para Congresso
Filho e neto de homens que serviram às Forças Armadas, John McCain serviu à Marinha dos Estados Unidos da América entre 1958 e 1981. Como começou em 1958, perdeu – por pouco, é verdade – a Guerra da Coréia. (Aquela lá, entre 1950 e 1953, de cuja existência Sarah Palin parece não ter tomado conhecimento, e ao fim da qual a antiga Coréia passou a ser dividida em duas, a do Norte, comunista, e a do Sul, capitalista.)
Exatamente porque serviu entre 1958 e 1981, pegou toda a Guerra do Vietnã – outra guerra entre as duas partes de uma única nação, a do Norte comunista e a do Sul capitalista, e que se encerraria com a vitória dos comunistas e a reunificação do país.
McCain deu baixa na Marinha com um monte de medalhas: Estrela de Prata, Legião do Mérito, Cruz Aérea, Estrela de Bronze, Medalha da Marinha.
Foi deputado por seu Estado, o Arizona, entre 1983 e 1987. Foi senador a partir de 1987, e é senador até hoje.
O filme mostra que ele começou a disputa pela indicação do Partido Republicano atrás de todos os oponentes – o prefeito de Nova York Rudolph Giuliani, o governador de Massachusetts Mitt Romney, entre outros.
É quando a ação começa – McCain (no filme interpretado por Ed Harris, que está mais parecido com McCain do que o próprio McCain) lá atrás na disputa pela indicação do Partido Republicano, pedindo a ajuda do marqueteiro Steve Schmidt.
E aí o filme mostra a procura pelo candidato a vice. A campanha de McCain, Steve Schmidt à frente, acabaria por sugerir o nome de Sarah Palin.
Produzido quatro após os acontecimentos que retrata, o filme já ganhou 11 prêmios
Produção de 2012, apenas quatro anos após os acontecimentos que reconstitui, Virada no Jogo vem conquistando vários prêmios. Por coincidência, vimos o filme no mesmo domingo de janeiro em que ele ganhou três Globos de Ouro, na categoria minissérie ou filme feito para a TV: melhor filme, melhor atriz para Julianne Moore e melhor ator coadjuvante para Ed Harris. Woody Harrelson e Sarah Paulson (na foto abaixo) também tiveram indicações ao Globo de Ouro respectivamente como ator e atriz coadjuvante, mas não venceram.
Ao todo, o filme já ganhou 11 prêmios e teve outras 22 indicações.
Não é um filme anti-republicano. Nem demoniza Sarah Palin
As pessoas do show-business americano de uma maneira geral, e da indústria cinematográfica em particular, costumam ser em sua maior parte partidários dos democratas. Acho que não seria exagero dizer que, de cada dez nomes importantes do cinema americano, oito são democratas, contra dois republicanos.
A HBO, que produziu e lançou Virada no Jogo/Game Change, se identifica de maneira claríssima com as áreas mais avançadas, progressistas (em termos de comportamento) do Partido Democrata; diversas de suas produções já se mostraram abertamente pró-aborto, pró-eutanásia, contra a pena de morte.
Apesar disso, ou talvez exatamente por isso, Virada no Jogo não é um filme anti-republicano. De forma alguma. Muito ao contrário. É perceptível, é visível que o filme faz um hercúleo esforço para não ser partidário, para ser objetivo, para contar uma história real que todos viram na TV e nos jornais sem forçar nenhuma barra.
O filme não demoniza a pessoa Sarah Palin, de forma alguma. Apenas a retrata da forma com a qual ela se mostrou ao país e ao mundo: uma cristã devota demais, beirando o fanatismo muito próximo daquele da Al-Qaeda, dos talibans da vida (embora ela não tivesse idéia do que fossem a Al-Qaeda, o taliban), capaz até mesmo de ter um filho após o diagnóstico de Down por ser visceralmente contra todo tipo de aborto – mesmo os feitos para impedir o nascimento de um excepcional, ou sem cérebro, ou o filho de um estupro. Uma ex-prefeita de cidadezinha de mil habitantes do Alasca que conseguiu se eleger governadora, e que, por uma pura questão de marketing, acabou sendo escolhida para vice-presidente na chapa de John McCain.
O John McCain que o filme mostra é um homem extremamente honrado. Um homem de convicções firmes, republicano, sim, mas rebelde dentro do próprio partido, que chega a pensar na possibilidade de ter um judeu progressista como seu vice. Um homem honrado que luta para que sua campanha não faça baixaria.
As seqüências finais do filme…
Tenho tentado seguir à risca o mandamento de não fazer spoilers, de não revelar o que acontece ao final das tramas. Mas este aqui é um filme que reconstitui uma história verdadeira que toda a imprensa destrinchou apenas quatro anos atrás. Então não dá para dizer que seria propriamente spoiler falar de fatos do final do filme.
As sequências finais do filme mostram, com imenso talento, como John McCain e seus principais assessores, Steve Schmidt em especial, ficam alarmados com a forma como que a provinciana ignorante, religiosa fanática, fundamentalista, que eles mesmos inventaram, se torna uma força política importante naquele país dividido exatamente ao meio, e provoca nos partidários reações abertamente racistas, nojentas, abjetas.
Cria cuervos, advertia Carlos Saura – e eles virão te comer os olhos.
Até a campanha presidencial, Sarah Palin era apenas governadora do distante Alasca, pouquíssimo conhecida nacionalmente. É ignorante e fundamentalista, mas tem, sem dúvida alguma, muito carisma. Com seu carisma, a moça botou fogo nos radicais, despertou os piores instintos da direita raivosa americana.
A escolha equivocada que a campanha do honrado John McCain fez, em 2008, conseguiu empurrar o Partido Republicano ainda mais para o conservadorismo.
A imensa dificuldade que o governo Barack Obama enfrenta neste momento para tornar administrável a gigantesca dívida pública americana se explica, em grande parte, exatamente por esse despertar do que de pior existe na América, a terra dos sonhos e dos piores pesadelos.
Anotação em janeiro de 2013
Virada no Jogo/Game Change
De Jay Roach, EUA, 2012
Com Woody Harrelson (Steve Schmidt), Julianne Moore (Sarah Palin), Ed Harris (John McCain),
e Sarah Paulson (Nicolle Wallace), Peter MacNicol (Rick Davis), Jamey Sheridan (Mark Salter), Ron Livingston (Mark Wallace), David Barry Gray (Todd Palin), Larry Sullivan (Chris Edwards), Mikal Evans (Bexie Nobles), Colby French (Tucker Eskew), Bruce Altman (Fred Davis), Anderson Cooper (ele próprio)
Roteiro Danny Strong
Baseado no livro de Mark Halperin e John Heilemann
Fotografia Jim Denault
Música Theodore Shapiro
Montagem Lucia Zucchetti
Produção HBO Films, Playtone.
Cor, 118 min
***
Acabei de assistir o filme. Excelentes observações, Sérgio. Só quero fazer um comentário: quando Anderson Cooper pergunta à Steve se ele faria tudo de novo (pergunta que jornalistas adoram fazer, não? rs), Steve dá uma resposta: diz que não dá para voltar atrás no tempo. Escapou pela tangente com uma resposta de quem deve ter nascido no meio de um comício. No meu entendimento, aquela resposta, traduzida para o linguajar dos comuns, é: “Nem a pau!”.
Agora que a HBO está em Portugal vi ontem este filme.
Achei muito interessante. Os actores estão muito bem em especial Julianne Moore e Ed Harris , acompanhados por Woody Harrelson que nunca falha.
A Sarah Palin começou aqui a sua abominável carreira. Abriu caminho para o super-abominável Donald Trump.