Antes de Arráncame la Vida, o filme, houve a canção, e depois o romance de mesmo nome. “Arráncame la vida”, a música – cantada duas vezes no filme –, é atribuída em várias páginas da internet a Agustín Lara (1900-1970), aquela espécie assim de Noel Rosa da música mexicana; nos créditos finais, no entanto, a autoria é dada a Maria Teresa Lara. Um pequeno mistério.
Arráncame la Vida, o romance, lançado no México em 1985, foi o primeiro livro de Ángeles Mastretta, uma jornalista e escritora nascida em Puebla, em 1949, cujas obras têm um tom feminista. (O livro foi lançado no Brasil em 2004 pela Editora Objetiva.)
Naturalmente, eu não sabia de nada disso quando Mary pegou o filme na locadora. Nunca tinha ouvido falar nessa escritora, nem da canção composta por Agustin (ou seria Maria Teresa?) Lara.
O filme surpreende de cara por diversas qualidades. A reconstituição de época – um letreiro avisa que estamos em Puebla, México, em 1932 – é suntuosa, belíssima: figurinos, carros, prédios, interiores, todo o desenho de produção é impecável, maravilhoso. O elenco todo tem desempenho perfeito, britânico. Uma beleza de trilha sonora. A montagem é rápida – vamos vendo diversos planos que se sucedem depressa, uma família que toma sorvete, um general que se senta ao lado do grupo e puxa conversa com uma das jovens, depois o general visitando a casa da família. E uma voz em off, a da atriz Ana Claudia Talancón, que interpreta a protagonista, a garota paquerada pelo general, Catalina, nos apresenta a história, em um texto maravilhoso:
– “Naquele ano, aconteceram muitas coisas no país. Entre outras, conheci Andrés, em um café dos Portais. Onde mais poderia ser? Em Puebla, tudo acontecia ali, dos noivados aos assassinatos.”
A narrativa em off é interrompida por um diálogo: o general Andrés Ascencio (interpretado por Daniel Giménez Cacho) puxa conversa com Catalina.
Volta a voz em off:
– “Para mim, todos se comportavam como se fossem donos da cidade. Não nós, filhos de camponês que deixou de ordenhar vacas porque aprendeu a fazer queijo. Não ele, Andrés Ascencio, convertido em general por casualidades e astúcias, e por não haver herdado um sobrenome importante.
Vemos um diálogo entre Catalina e uma de suas irmãs. A irmã diz que aquele homem dá medo, que ele é muito velho. Ao que Catalina responde: “Gosto do modo como olha. E das suas mãos.
Toda a grande família está reunida à mesa, e o general Andrés conta histórias. A voz em off Catalina-Ana Claudia Talancón prossegue sua narrativa:
– “Em pouco tempo, conquistou a todos. Até meu pai o aceitou, apesar das coisas terríveis que diziam: que ele tinha muitas mulheres, que era um criminoso, que era louco, que íamos nos arrepender. E nos arrependemos, mas anos depois. Na época, eu tinha 15 anos e muita vontade de experimentar.”
Nesse momento, estamos com apenas três minutos de filme, e é então que surge na tela o título do filme.
Na tomada seguinte, na rua, diante da casa da família, o general Andrés, homem aí com bem mais de 30 anos, arranca um beijo da garotinha de 15 anos.
Com cinco minutos, dá para saber se um filme é bom ou ruim. Com menos de cinco minutos, Arranca-me a Vida tinha me conquistado.
Aos seis minutos, o general já tirou a roupa da garotinha, e está tirando a sua. A voz em off – que, ao longo de todo o filme, pontuará a narrativa com suas observações – diz:
– “Eu já tinha visto touros montarem em vacas. Mas o pinto parado de um senhor era outra coisa.”
Catalina não sente grande prazer na primeira relação. E então vai visitar a cigana da cidade (uma bela interpretação de Isela Vega). Diante da mão da garotinha, a cigana se mostra espantada. Pergunta o que ela afinal deseja, e Catalina responde, firme: “Quero sentir”. A princípio, a cigana se espanta, tenta expulsar a garota atrevida. Mas depois resolve ensinar. Levanta a saia, manda que a menina também levante a sua, e a ensina a manusear a vagina.
Uma carreira política construída à base de promessas populistas e assassinato de opositores
Alguns filmes mexicanos recentes que tenho visto exageram um tanto na explicitude de sexo: a porcaria A Mulher do Povo/Otilia Rauda, e até o ótimo E Sua Mãe Também, para citar apenas dois. No início, imaginei que Arranca-me a Vida poderia ser mais um deles. Aqui e ali voltará a haver explicitudes sobre sexo, mas esse não é, de forma alguma, o foco do filme. Ele vai contar a história de Catalina, e de sua relação com o general Andrés Ascencio, ao longo de quase 20 anos. Haverá cortes para 1935, 1938, 1941, 1943 – letreiros informarão os anos, para ajudar o espectador a acompanhar os fatos.
A história criada pela escritora Ángeles Mastretta vai focalizar o processo de amadurecimento de uma jovem curiosa, inteligente, sensível, um tanto atrevida, audaciosa, para os padrões daquela sociedade machista. E, como pano de fundo sempre presente, haverá a política.
O general Andrés Ascencio, um dos combatentes da Revolução Mexicana, vai forjar uma carreira política que o levará ao governo do Estado de Puebla e depois ao ministério, na Cidade do México, usando como armas as promessas populistas, a força bruta, a falta de qualquer pudor e o assassinato puro e simples dos opositores.
É um retrato bem feio da política mexicana nas primeiras décadas após a Revolução.
Veria depois, na internet, que Ángeles Mastretta – uma das fundadoras da Unión de Mujeres Antimachistas do Distrito Federal mexicano – se inspirou, para criar a figura do general Andrés Ascencio, em uma figura real, o general Maximiano Avila Camacho. Esse senhor foi governador de Puebla entre 1937 e 1941, assim como o personagem do romance e do filme, e mais tarde foi ministro no gabinete presidencial de seu irmão, Manuel Avila Camacho. Exatamente como o personagem fictício, o general da vida real tinha fama de ser impiedoso, arrogante e violento com seus inimigos políticos.
Uma atriz de talento impressionante, um diretor iniciante mas seguro
Em um filme em que todo elenco está muito bem, brilha em especial essa moça Ana Claudia Talancón. É um espanto. O espectador vê no rosto dela o amadurecimento da personagem, dos 15 aos 30 anos de idade. Um sutil e inteligente uso da maquiagem, os cuidados com os penteados e os figurinos ajudam, mas é capacidade interpretativa de Ana Claudia Talancón que nos convence sobre as mudanças da garotinha para a mulher adulta.
Um talento, uma coisa impressionante.
Nasceu em 1980, em Cancún. Estava, portanto, com 28 anos quando o filme foi lançado. Começou a carreira na TV, aos 17 anos, e tem alternado trabalhos em séries televisivas e no cinema, numa filmografia de mais de 30 títulos. Fez o principal papel feminino na versão mexicana de O Crime do Padre Amaro, de 2002, ao lado de Gael García Bernal. Como Gael e vários outros atores mexicanos, trabalhou também no cinema americano; está, por exemplo, em Nação Fast Food, de 2006, com Greg Kinnear e Bruce Willis, e em Uma Chamada Perdida, de 2008, ao lado de Edward Burns.
Daniel Giménez Cacho, que interpreta o general, tem mais de 60 títulos na filmografia – no México e fora. Trabalhou, por exemplo, em Má Educação, de Pedro Almodóvar, de 2004, e em Plano de Fuga/Get the Gringo, produção americana estrelada por Mel Gibson.
Roberto Sneider, o diretor do filme, tem trabalhos como roteirista, diretor, assistente de direção e ator. Este aqui foi seu segundo filme como diretor, o que é bastante surpreendente. O cara dirige como se fosse um veterano experiente. Sneider é também o autor do roteiro, e, nos créditos finais, é dito que ele teve a colaboração da autora do romance, Ángeles Mastretta.
Arranca-me a Vida é uma superprodução. Por suas grandes qualidades em todos os quesitos técnicos, pelo apuro na reconstituição de época e pelo grande número de figurantes, deixou claro para mim, enquanto via o filme, que teve um bom orçamento. Vi depois que foi uma das duas produções mais caras de toda a história do cinema mexicano: custou US$ 6,5 milhões – uma soma altíssima para filme feito em qualquer país abaixo do Rio Grande.
Foi também o filme escolhido pela Academia Mexicana para representar o país na corrida ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro de 2009. Não obteve a indicação – mas isso não é demérito algum.
É um ótimo filme.
Anotação em novembro de 2012
Arranca-me a Vida/Arráncame la Vida
De Roberto Sneider, México, 2008.
Com Ana Claudia Talancón (Catalina Guzmán de Ascencio), Daniel Giménez Cacho (general Andrés Ascencio), José María de Tavira (Carlos Vives),
e Irene Azuela (Bárbara), Delia Casanova (Julia), Julio Bracho (Cienfuegos), Joaquín Cosío (Juan), Ana Ofelia Murguía (Clarita), Eugenia León (Toña la Negra, a cantora), Gina Morett (La Güera), Camila Sodi (Lilia Ascencio), Isela Vega (a cigana)
Roteiro Roberto Sneider, com a colaboração de Ángeles Mastretta
Baseado no romance de Ángeles Mastretta
Fotografia Javier Aguirresarobe
Música Leonardo Heiblum e Jacobo Lieberman
Montagem Aleshka Ferrero
Produção Altavista Films, La Banda Films. DVD Fox.
Cor, 107 min.
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