Ricky

2.5 out of 5.0 stars

Ricky, feito por François Ozon em 2009, é daquele tipo de filme cujo encanto se perde muito se o espectador souber exatamente do que se trata. Daquele tipo que perde muito da graça se houver spoiler, estraga prazer. Assim, naturalmente, não vou adiantar sobre a trama mais do que o bom senso permitiria.

Na carreira do jovem diretor francês, ele veio depois de Sob a Areia (2000), 8 Mulheres (2002), Swimming Pool – À Beira da Piscina (2003), O Amor em 5 Tempos (2004), O Tempo que Resta (2005) e Angel (2007). E antes de O Refúgio (também de 2009) e Potiche – Esposa Troféu (2010).

Ozon é um realizador que experimenta os mais diferentes gêneros. Vai fundo no drama. Sob a Areia mostra uma mulher (interpretada pela ótima Charlotte Rampling) que simplesmente se recusa a admitir a perda do marido. Em O Tempo que Resta, o protagonista, um jovem fotógrafo rico, famoso, enfrenta o diagnóstico de um câncer terminal. Em O Refúgio, dois jovens amantes se entregam à piração completa das drogas; o rapaz morre de overdose, deixando a moça (Isabelle Carré) grávida.

Mas, além do drama, François Ozon gosta de experimentar. Em O Amor em 5 Tempos, conta uma história de amor, só que na ordem inversa à cronológica, do momento do divórcio até o momento em que os dois se conhecem.

Em 8 Mulheres, além de ter reunido uma penca das mais fantásticas atrizes do cinema francês, de diversas gerações, juntou vários gêneros: um tanto de mistério policial à la Agatha Christie, um tanto de melodrama familiar à la Douglas Sirk, um tanto de sátira sobre os podres familiares à la Mario Monicelli, com uma pitada de musicais da Metro.

Em Angel, exagerou: fez um filme estilizadíssimo, como se fosse um desses romances açucarados para moças de pouca cultura. Se o espectador não perceber que é uma gozação desse estilo, ficará achando que Ozon endoidou. Eu passei uma boa meia hora certo disso, antes que me caísse a ficha.

Potiche é também uma gozação, um exercício de estilo. É uma farsa aberta, escrachada. Quem procurar algum tipo de realismo vai simplesmente detestar o filme.

É uma narrativa simples, realista, sobre uma família comum – até que…

Quando Ricky estava aí com uns 15 minutos, comentei com Mary que, para este filme, Ozon tinha optado por uma estética simples, despojada, realista. Exatamente o contrário do que havia feito em 8 Mulheres, Angel e Potiche.

É, de fato, uma narrativa simples, despojada, realista, comum – até os 38, 40 minutos de filme.

Parece um drama familiar corriqueiro, comum, sobre ordinary people, gente como a gente. Gente simples demais: operários, classe média baixa, trabalhadores sem qualificação, como alguns personagens de Jacques Demy, Agnes Varda, Philippe de Broca.

Ricky abre com um plano entre o americano e o close-up do rosto de uma mulher. Veremos que ela se chama Katie, trabalha numa fábrica, e está com problemas. Katie é interpretada por Alexandra Lamy (nas fotos acima e abaixo), atriz que tem o physique du rôle apropriado: não é uma mulher de beleza extraordinária, à la Catherine Deneuve. É uma mulher normal, não feia, de forma alguma, mas também não linda, deslumbrante.

Katie fala com uma mulher que, presumimos, é do serviço social. Dirige-se à câmara colocada diante dela. Ouviremos a voz da outra mulher, mas não a veremos. É uma tomada longa. Katie não tem notícias do marido há uma semana; ele trabalha na mesma fábrica que ela, mas ninguém lá sabe dele. Ele é espanhol, e talvez tenha voltado para seu país. Ela pediu uma licença no trabalho, e por isso não paga o aluguel faz três meses; cuida agora sozinha da filha mais velha, de sete anos, e do bebê. Será que o bebê não poderia ser dado para alguma família que queira adotar um filho?

A mulher do serviço social diz que colocar um filho para adoção é uma decisão muito grave, que seria melhor pensar em algumas opções antes disso.

Corta, e voltamos a alguns meses atrás.

Veremos então um pouco do dia-a-dia de Katie antes do nascimento do bebê. Ela vive sozinha com a filha de sete anos, Lisa (Mélusine Mayance), num apartamento bem simples – mas não miserável. O pai de Lisa não existe para as duas. A mãe leva a filha para a escola em sua moto, antes de ir para o trabalho.

Começa a trabalhar na fábrica uma cara nova, um imigrante espanhol, Paco (o papel de Sergi López). A atração entre os dois é imediata: trepam no banheiro da fábrica. Não, a câmara de Ozon não mostra a trepada. Discreta, deixa-se ficar parada no banheiro; depois de algum tempo, Paco sai de uma das portas até então fechadas, e em seguida sai também Katie.

Ricky está a caminho.

Paco vai morar no apartamento de Katie e Lisa. Há o estranhamento normal, natural, da garotinha diante do homem que de repente cai de pára-quedas em seu mundo. Nada de estranho, nada fora do padrão.

Ricky nasce, garotão com toda aparência de saudável, bonitão, pimpolhão.

Pai e mãe se alternam nos cuidados com o bebê. Paco passa a trabalhar no turno da noite, fica com o bebê durante o dia. Ao voltar do trabalho um dia, Katie vê um hematoma nas costas de Ricky, e teme que Paco ou tenha batido no filho ou o deixado cair do berço.

Estamos aí com uns 35 minutos de filme. Exatamente aos 40 minutos, o filme começa a dizer a que veio.

E mais do que isso não se deve falar sobre a trama. Quem contar a um amigo o que acontece a partir daí faz o amigo perder o gosto de ver o filme.

Um diretor de imenso talento. E uma atriz mirim espantosa, Mélusine Mayance

François Ozon é um dos grandes diretores de atores da atualidade, na minha opinião. As interpretações dessa moça Alexandra Lamy, que eu não conhecia, e de Sergi López, que já vi numa dezena de filmes, são extraordinárias.

Mas talvez o que mais impressione, no elenco de poucos protagonistas, seja essa garotinha de nome estranho, Mélusine Mayance. Meu Deus do céu e também da terra, que grande atriz nata! Ela impressiona desde as primeiras tomadas em que aparece, e não pára de impressionar ao longo dos 90 curtos minutos de duração do filme. Foi seu filme de estréia.

Fiquei com a impressão de que já a tinha visto; me lembrava vagamente desse nome esquisito. Ela é a garotinha que interpreta Sarah em A Chave de Sarah/Elle s’appelait Sarah, de Gilles Paquet-Brenner, de 2010, belo filme que parte de uma das maiores vergonhas da história da França, a entrega, pela polícia do governo títere de Vichy, do Marechal Pétain, aos invasores nazistas, de centenas de judeus parisienses, que foram em seguida levados para o Vélodrome d’Hiver e de lá para os campos de concentração.

Depois de vê-la em dois filmes, dá para dizer sem sombra de dúvida: essa menina Méluisine Mayance é um talento, um espanto, um absurdo.

Da mesma maneira, depois de ver mais de cinco filmes de François Ozon, não tem como não reconhecer: o cara tem imenso talento.

Não dá para saber o que Ozon quis dizer. Talvez tenha apenas querido misturar gêneros

Os créditos mostram que Ozon fez a adaptação, o roteiro e os diálogos de Ricky. É o que ele sempre faz em seus filmes. Mas a idéia básica, a trama original, não é da autoria do realizador. Nos créditos finais, é dito que o filme é uma adaptação livre de um conto de Rose Tremain, “Moth”. Rose Tremain, aprendo agora, é uma autora inglesa, nascida em 1943. A Wikipedia, claro, não é confiável como uma Britannica, mas ela diz que Rose Tremain gosta especialmente do realismo fantástico à la Gabriel García Márquez. Faz sentido

Quando escrevi sobre 8 Mulheres, após ver o filme pela segunda vez, anotei que o exagero no uso de cores fortes faz lembrar o casal Demy-Varda: 8 Mulheres consegue ter tantas cores fortes quanto Os Guarda-Chuvas do Amor/Les Parapluies de Cherbourg, de Jacques Demy, e As Duas Faces da Felicidade/Le Bonheur, de Agnès Varda.

Ao ver agora Ricky, me lembrei mais uma vez de Jacques Demy. Agora, por causa de seu filme de 1973 com o casal Marcello Mastroianni e Catherine Deneuve, Um Homem em Estado Interessante. Têm a ver um com o outro, o filme de Demy e este filme aqui de Ozon.

Um filme bem feitíssimo como tudo que esse rapaz faz. Bem realizado – e surpreendente.

Ricky terminado, a gente pode perfeitamente se perguntar: tá legal, mas o que mesmo que ele quis dizer com isso?

Pode ser que não que não tenha querido dizer nada.

Talvez tenha querido fazer uma metáfora sobre a perda e aquela consolação que muita gente espiritualista encontra para explicar as perdas.

Ou talvez tenha apenas resolvido fazer mais uma mistura de gêneros. Ele é bom nisso.

Anotação em setembro de 2012

Ricky

De François Ozon, França-Itália, 2009

Com Alexandra Lamy (Katie), Sergi López (Paco), Mélusine Mayance (Lisa), Arthur Peyret (Ricky)

Adaptação, roteiro e diálogos François Ozon

Livremente adaptado do conto “Moth”, de Rose Tremain

Fotografia Jeanne Lapoirie

Música Philippe Rombi

Produção Canal+, CinéCinéma, Teodora Film, France 2 Cinéma, BUF, FOZ. DVD Califórnia Filmes.

Cor, 90 min

**1/2

 

3 Comentários para “Ricky”

  1. Exatamente como voce diz Sergio , até os primeiros 35 minutos eu estava vendo um bom filme. Daí em diante não entendi mais nada.
    Ficou tudo muito estranho, bizarro.
    Não consegui mesmo “captar” o que Ozon quiz dizer, mostrar. Não sei, terá sido algo como em vez do que aconteceu,pudesse ter sido uma outra anormalidade?Fica o perigo do spoiler.
    Desse momento até o final vi o filme como uma fantasia , uma aventura , um conto de fadas mesmo. Mas o final me deixou mais confuso ainda. Ele deveria ser livre para viver como veio ?
    Fica difícil querer ser mais claro sem fazer o maldito spoiler.
    E a nova gravidez dela? Como interpretar?
    Terá sido uma ” grande viagem ” que François Ozon fez ? Às vezes grandes gênios costumam fazê-las. Me chateou muito ter ficado com esse gôsto de “o que” ? “por que” ?
    Também gostei muito da Lisa/Mélusine Mayance.
    Talento puro, nato. Neste filme ela tinha 10 anos mas pensei que tivesse 7.
    Da mesma forma que ela , quando tinham a mesma idade , e nos dias atuais , hoje , eu coloco as irmãs Elle/Dakota Fanning ,o mesmo talento. Que com certeza as tres , terão até o fim de suas carreiras.
    Com 10 anos , Dakota brilhou em ” O Amigo Oculto” e ” Chamas da Vingança “.
    Com 10 anos, Mélusine brilhou neste “Ricky”.
    E ano seguinte em ” A chave de Sarah “.
    Com 10 anos , Elle Fanning brilhou em ” A Menina no País das Maravilhas. Este filme eu assisti ontém.
    Além do talento que as tres possuem , são também muito lindas.
    Um abraço !!

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