Belo filme, este A Criança da Meia-Noite, no original La Permission de Minuit, da jovem diretora francesa Delphine Gleize. (E bota jovem nisso: a moça nasceu em 1973.) É apenas seu terceiro longa-metragem, e ela demonstra, entre outras qualidades, extrema competência na direção de atores. Todo o elenco está excelente – mas o maior destaque é mesmo a interpretação de Vincent Lindon.
É um drama que fala sobre uma doença tão rara quanto terrível, assim como, por exemplo, foram O Óleo de Lorenzo (ALD, ou adrenoleukodystrophy, em inglês), Decisões Extremas (síndrome de Pompe), Vincent Quer Ver o Mar (Síndrome de Tourette), Uma Prova de Amor (um tipo raro de leucemia), Um Certo Olhar (um tipo de autismo).
A doença rara abordada no filme se chama XP, as iniciais de xeroderma pigmentosum, e se caracteriza por uma sensibilidade excessiva da pele à luz, especialmente a solar, mas também a outras fontes de luz forte. A exposição da pele à radiação ultravioleta leva à aparição de tumores, muitos deles malignos. A esperança de vida de pessoas portadoras da doença que não são tratadas desde muito cedo não passa de 20 anos.
As crianças que sofrem dessa doença são chamadas de filhas da lua – daí o título em português e também o original.
Vale aqui o que anotei depois de ver Uma Prova de Amor/My Sister’s Keep: Há muita gente não agüenta ver filmes assim, ou simplesmente prefere não ver. É um direito sagrado. Eu mesmo preferiria não ver, e já deixei de lado vários filmes que abordam temas pesados como este Uma Prova de Amor, não porque sejam ruins, mas porque pegam pesado demais – mecanismo de autoproteção, ou seja lá o que seja.
Quem, no entanto, não tiver esse tipo de problema, quem não evita enfrentar de frente esses temas, certamente gostará deste filme.
Uma relação muito especial entre o médico e seu paciente de 13 anos
A diretora Delphine Gleize, ela também autora do argumento e do roteiro, focaliza a relação entre um garoto de 13 anos que tem a doença, Romain (interpretado por Quentil Challal) e o médico que cuida dele, David (o papel do ótimo Vincent Lindon, que tem feito vários bons filmes, como os recentes Tudo por Amor/Pour Elle, Bem-Vindo e Mademoiselle Chambon).
A relação entre os dois, paciente e médico, é o cerne, a base, o centro de tudo. Todo o resto acaba sendo secundário.
A narrativa da jovem realizadora é simples, direta, sem firulas ou criativóis. Me pareceu que tem, no entanto, uma característica pessoal, peculiar, na forma que ela escolhe para contar sua história. É uma narrativa repleta de elipses, de lacunas, de coisas não ditas explicitamente. É como se, em vez de mostrar todos os capítulos importantes da história, ela preferisse, de vez em quando, focalizar um detalhezinho específico, não tão fundamental, ou tão esclarecedor, mas um fiapo de acontecimento – um pequeno detalhe que é significativo, embora outros detalhes sejam deixados de lado, ou mostrados apenas implicitamente.
Assim, por exemplo, vamos vendo só aos poucos, como se isso não fosse fundamental, que as relações entre o doutor David e sua mulher, Eva (Natalie Boutefeu), estão um tanto tensas, basicamente porque ele dedica todo o seu tempo ao trabalho, não sobrando nada para ela, para a família, a casa.
Vamos vendo que David é um excelente médico, competente, dedicado. É cirurgião, dermatologista, chefia um departamento de um bom hospital mas, em vez de se deixar envolver pelas tarefas burocráticas, administrativas, cuida ele mesmo dos pacientes, alguns deles com a XP que ataca o garoto Romain. Especializou-se no tratamento dessa doença e no acompanhamento dos pacientes que sofrem dela. No entanto, há anos se oferece para um cargo em Genebra, na sede da Organização Mundial da Saúde, na intenção de usar seus conhecimentos, sua reputação, sua influência, para obter mais verbas para a pesquisa da XP e outras doenças.
Da mesma forma, é aos poucos que vamos conhecendo o garoto Romain. Vemos que ele mora numa boa casa, ampla, confortável, de classe média alta, tem poucos amigos. Demora para que fiquemos conhecendo sua mãe, Louise (Caroline Proust), e demora muito para sabermos que ela está separada do pai do garoto, e que o pai abandonou a família justamente quando a doença foi diagnosticada.
Ela havia sido diagnosticada quando Romain tinha apenas dois anos. O médico que fez o diagnóstico, e cuidou dele ao longo dos dez anos seguintes, foi David.
A relação entre David e Romain é muitíssimo mais profunda do que costumam ser as de médico e paciente. David tem para Romain a importância de um pai presente. E, para David, Romain é muito mais importante do que o seu próprio filho – que o espectador só fica sabendo que existe bem perto do final da narrativa.
Como tantos profissionais sérios, o médico teme deixar o que construiu com uma novata
Quando finalmente a OMS chama David para assumir o cargo em Genebra que ele desejava havia anos, ele se vê diante de problemas graves. Detesta, à primeira vista, a médica que vem para assumir seu lugar no hospital, a dra. Carlotta (interpretada pela sempre competente Emmanuelle Devos, na foto abaixo); mesmo sem saber direito nada sobre ela, acha que ela é muito nova, inexperiente. Como tantos profissionais sérios, competentes, dedicados, entra em pânico diante da possibilidade de legar aquilo que construiu para mãos que não mereçam o cargo.
E, além disso, há também a dura realidade de que David terá que abandonar os pacientes, em especial Romain, um garoto sensível demais, psicologicamente instável, que poderá ficar muito mal diante da perda do homem que não só trata dele desde sempre como é também a figura paterna que conhece.
De resto, sabe que a troca de emprego implicará fatalmente no abandono da atividade fim – o tratamento direto dos pacientes, o trabalho na sala de operações – por tarefas administrativas, burocráticas, tudo o que ele não quer na vida, embora a finalidade do posto na OMS seja nobre.
É como se, num compacto de um jogo, a diretora não mostrasse alguns momentos fundamentais
Acabei me alongando e avançando talvez demais na descrição da trama, mas na verdade o que gostaria de realçar é a forma com que a realizadora Delphine Gleize mostra tudo isso.
É um estilo interessante, de fato peculiar. É como se, para mostrar a figura de um homem, ela dedicasse algum tempo a exibir o colarinho de sua camisa, depois um detalhe de seu sapato – em vez de focalizar direto o rosto dele, suas expressões.
Não que é que ela não focalize o rosto do personagem, que deixe de mostrar o mais importante. É que parece que ela não tem a preocupação de mostrar apenas os highlights, os pontos fundamentais, os melhores momentos da trama.
E aí me ocorre uma imagem que talvez exprima o que senti. Uma imagem futebolística. É como se, ao fazer um compacto de um jogo de futebol, ao mostrar em 30 minutos uma partida que durou 94, Delphine Gleize não procurasse mostrar apenas os melhores momentos, os ataques mais perigosos. Mostra, sim, vários deles, mas entende que não precisa mostrar todos. Dá-se ao luxo de não mostrar um lance que resultou num pênalti, por exemplo, ao mesmo tempo em que usa dois minutos para mostrar uma disputa de bola no meio do campo que não levou diretamente a nada, mas que evidencia como se comporta aquele determinado jogador.
Médico e paciente compartilham uma paixão pelo rugby
O uso de uma imagem futebolística não chega a ser totalmente gratuito – nem significa que estou tentando falar como Lula, Deus que me livre e guarde. O rugby, um esporte, afinal, levemente semelhante ao futebol, tem parte importante no filme. David e Romain vêem um jogo de rugby pela TV; Romain gosta de rugby, treina, joga, joga até bem. Mas as luzes de um estádio da cidade emitem radiação ultravioleta, e a pele do menino não pode ser exposta a ela. Lá pelas tantas, o maior amigo de Romain conta para ele que todas as luzes do estádio foram mudadas para um tipo que não faz mal a quem sofre de XP.
Mais adiante, como quem não quer nada, o roteiro fornece uma explicação para essa troca – bastante cara – de todas as lâmpadas do estádio. É mais um exemplo desse estilo interessante de Delphine Gleize narrar sua história – algumas lacunas, alguns fatos deixados apenas implícitos.
A diretora conheceu dois irmãos que sofrem dessa doença
É um belo filme, sem dúvida. Mas me peguei pensando sobre qual teria sido a motivação para fazê-lo. Imaginei que poderia ser a dramatização de uma história real, como foi, por exemplo, Um Certo Olhar/Snow Cake, que aborda uma espécie de autismo – a doença do filho da roteirista.
Em um site francês que não conhecia, http://www.allocine.fr/., encontro longa entrevista da realizadora Delphine Gleize. A entrevista mostra que não, não se trata da dramatização de uma história real. Delphine Gleize (na foto) leu, seis anos antes de realizar o filme, uma reportagem sobre dois irmãos gêmeos que sofrem de XP, e foi pessoalmente conhecê-los. Impressionada com a doença, achou que poderia fazer um filme sobre um garoto que sofre do mal. “É uma doença anti-natural”, diz ela. “Pensei em criar um personagem de ficção exigente, impaciente, corajoso.”
E depois: “É muito curiosa essa doença. Ela vai contra os princípios de proteção, da educação que se dá às crianças: ‘não saia à noite, é perigoso’. Eles crescem aprendendo que a noite os liberta, transmite confiança.”
Vincent Lindon e Emmanuelle Devos são veteranos (este foi o terceiro filme em que trabalharam juntos), e estão excelentes em seus papéis. A surpresa é ver o desempenho do garoto Quentin Challal, em sua estréia como ator. Tem talento – e estampa. Pode ir longe. Assim como essa jovem Delphine Gleize.
Anotação em julho de 2012
A Criança da Meia-Noite/La Permission de Minuit
De Delphine Gleize, França, 2011.
Com Vincent Lindon (David), Quentin Challal (Romain),
Emmanuelle Devos (Carlotta), Caroline Proust (Louise), Nathalie Boutefeu (Eva), Laurent Capelluto (Harold), Solène Rigot (Noémie)
Argumento e roteiro Delphine Gleize
Fotografia Crystel Fournier
Música Éric Neveux
Produção Balthazar Productions, Frakas Productions, France 3 Cinéma, Studio 37, Lorette Production, Radio Télévision Belge Francophone (RTBF). DVD Imovision.
Cor, 110 min
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Adorei este filme tbm, Sérgio! É um filme tão bonito, tão low profile.. adoro o Vincent Lindon tbm, ele parece interpretar com muita sinceridade. Adoro essa safra de filmes franceses que tem chegado de uns tempos pra cá!