Thi Mai / Thi Mai, Rumbo a Vietnam

2.5 out of 5.0 stars

(Disponível na Netflix em agosto de 2024.)

Thi Mai, Rumbo a Vietnam, produção espanhola de 2017, no Brasil abreviado para apenas Thi Mai, não tem absolutamente nada a ver com um grande filme – e com absoluta certeza fazer um grande filme não era nem de longe o objetivo seus realizadores. É uma comédia, divertida, gostosa, engraçada – às vezes deixando até a lógica de lado para privilegiar a graça.

Tem momentos bobos, chegados a um pastelão – deliciosos.

O povo que empina o narizinho e diz gostar de “filme de arte” deveria passar bem longe de Thi Mai, para evitar o choque anafilático. Os demais seres humanos que se dispuseram a vê-lo com certeza vão se divertir.

Insisto: não é um filme sério, não pretende ser. Mas faz graça sem cometer qualquer tipo de erro, de pisada na bola, quanto aos valores mais corretos que há. Nenhum patrulheiro do politicamente correto poderá acusar Thi Mai de algum pecado.

É um filme feminino. A diretora é mulher, Patricia Ferreira, a autora da história e do roteiro é mulher, Marta Sánchez, e são mulheres as três protagonistas, Carmen, Elvira e Rosa  – interpretadas, respectivamente, por Carmen Machi Aitana Sánchez-Gijón e Adriana Ozores (nesta ordem, da esquerda para a direita, na foto abaixo).

Além de ser engraçado, gostoso, e feminino, o filme tem ainda um atrativo especial, extremamente raro: como o título indica, ele trata do Vietnã, esse país de que tanto, tanto ouvimos falar, décadas atrás, que de alguma forma marcou nossas vidas – nós, as pessoas um pouquinho só mais velhas que Carmen, Rosa e Elvira – e do qual pouquíssimo sabemos hoje em dia. A imensa maior parte de seus curtos 99 minutos se passa no Vietnã, e o filme foi de fato rodado lá, naquele que talvez seja o único país comunista e ao mesmo tempo feliz que já houve na História deste planeta.

Há muitos momentos, até, em que Thi Mai parece um merchandising pago pelo Ministério de Turismo do Vietnã. Embora eu nem saiba se o Vietnã trem um Ministério de Turismo – e tenha a mais absoluta certeza de que não houve aí qualquer tipo de troca de vil metal entre as partes. Troca de vil metal – que as senhoras espanholas até tentam fazer com um funcionário do Ministério da Justiça, e é, evidentemente, durissimamente repudiado por ele –, isso é claro que não houve. Ah, mas que o governo e o Partido Comunista do Vietnã colaboraram com a realização das filmagens, e depois aprovaram, felizes, o resultado do trabalho das senhoras daquele longínquo país do decadente Ocidente capitalista… Isso eu também posso apostar.

Assistir a Thi Mai dá uma vontade danada de ir lá conhecer aquele país de plantadores de arroz que derrotou, consecutivamente, duas das maiores potências que já houve na História, a França e os Estados Unidos da América.

Lá pelas tantas, as três senhoras espanholas planejam enrolar as autoridades vietnamitas, passar a perna nelas. Alguém as alerta, com uma frase deliciosa tipo: “Senhoras, eles não são bobos, eles venceram duas guerras!”

Uma tragédia terrível está no início da comédia gostosa

A trama desta comédia criada por Marta Sánchez – é interessante, isso – parte de uma das piores tragédias que podem acontecer a uma pessoa: a perda de um filho.

O filme começa nos apresentando, uma a uma, as três protagonistas da história – três grandes amigas, amigas-irmãs, da cidade de Pamplona, comunidade autônoma de Navarra, todas ali entre os quase 50 e os 50 e muitos anos. Quando o filme está com 6 minutos, vemos o funeral de María, a filha única de Carmen. E não demora nada para que se desenhe a base da trama: Maria, morta em um acidente de carro, estava empenhada em um processo de adoção de uma órfã vietnamita, Thi Mai (o papel da garotinha Nguyen Ngan Há).

Carmen havia acompanhado todo o esforço da filha para adotar a garotinha. E resolve que vai até o Vietnã para concluir o processo de adoção, pegar a menina e cria-la na Espanha.

As amigas-irmãs Rosa e Elvira se prontificam de imediato a ir com ela.

Pronto. Está aí a base da trama. Estão aí os elementos necessários para uma sinopse.

A sinopse que está no IMDb é exatamente a mesma da Netflix, foi copiada da gigante do streaming: “Ao lado de duas amigas, uma mulher determinada viaja ao Vietnã para buscar a menina que sua filha, recém-falecida, pretendia adotar.”

         Uma workaholic, uma dona de casa, uma meio a meio

Rosa, Elvira e Carmen – as personagens de Adriana Ozores, Aitana Sánchez-Gijón e Carmen Machi (nessa ordem, da esquerda para a direita na foto acima).

Elvira é a mais nova e a mais bela das três – e é a única solteira. Em inglês há uma expressão para o tipo de mulher que Elvira representa, embora o termo seja antigo, ali dos anos 1930, 1940, quando isso ainda era algo raro, minoritário – career woman. Segundo os dicionários, “uma mulher que considera seu emprego e o sucesso nele ser muito importante em sua vida”.

O filme abre com um close-up dos pés de Elvira caminhando firmemente, os saltos altos de Elvira ressoando no chão de seu local de trabalho – até o escritório de um sujeito bem mais jovem que ela. O sujeito informa que o banco não está mais precisando de seus préstimos, e ela pode desfrutar de uma aposentadoria um pouquinho antes da idade normal da aposentadoria.

É um choque para ela – porque Elvira nos é apresentada como aquele tipo de ser humano que acha que seu único papel na vida é o de ser um bom profissional em seu trabalho.

Rosa, bem ao contrário, extremamente ao contrário, é uma dona de casa. Não uma dondoca que não faz nada, apenas dá ordem aos serviçais. Não: Rosa é uma dona de casa que exerce a profissão de dona de casa. Cozinha com o maior cuidado, a maior preocupação – mas os dois filhos, ali pela adolescência, não dão a menor bola para a comida dela. E o marido, Iñigo (Antonio Gil), é um executivo de alguma empresa qualquer que está sempre em reuniões de trabalho, mesmo fora de hora, e trata a mulher com a mais absoluta grosseria que pode haver.

Elvira estará sempre disposta a lembrar à amiga que ela é uma danada de uma escrava.

Se a gente pensar um pouquinho, pode concluir que tanto o perfil de Elvira – mulher independente trabalhadora solteira – quanto o de Rosa – dona de casa escravizada pelo marido como se ainda estivéssemos muito antes da revolução feminista dos anos 1960 – são assim meio esquemáticos. Mas, diacho, isso aqui é uma comédia divertida, apenas!

Carmen não é nem muito lá, nem muito cá. Ela e o marido Javier (Pedro Casablanc) têm uma loja de materiais, ferramentas – e os dois tocam o dia-a-dia da loja. Mais adiante no filme veremos – um tanto en passant, já que isto aqui é uma comédia, não é um drama familiar – que Javier amava tanto a filha Maria que se distanciou dela quando ela resolveu ter sua própria vida, sua própria casa.

Os vietnamitas demoram a decidir sobre a órfã

Ao chegar ao Vietnã, as três amigas-irmãs ficam conhecendo Andrés (Dani Rovira, na primeira foto do post), que virá a ser o quarto personagem mais importante da história.

Andrés é um jovem espanhol que havia estudado com afinco o vietnamita, porque seu namorado, Carlos (José Troncoso), havia se mudado para Hanói, onde trabalhava como guia turístico. Vinha no mesmo vôo que as três mulheres, e as ajuda na comunicação com o funcionário da alfândega do aeroporto de Hanói. Vão se reencontrar mais tarde, e o rapaz vai ficar muito amigo das três senhoras.

No saguão do aeroporto, as três, e também outros passageiros, são recepcionados por Dan (Eric Nguyen), um vietnamita que fala espanhol fluentemente e servirá de guia e de ligação entre os estrangeiros e o grande orfanato onde estão as crianças a serem entregues aos seus pais adotivos.

Dan esperava a chegada de Maria, a moça espanhola que fazia meses estava em contato com as autoridades e com o orfanato para a adoção de Thi Mai. Carmen dá as explicações – Maria, sua filha, havia morrido, e ela, a avó adotiva, tinha vindo para levar a garota.

Dan diz que levará a questão para seus superiores no Departamento de Adoção no Ministério da Justiça – mas, enquanto isso, Carmen não poderá ir ao orfanato, não poderá ter contato com Thi Mai.

Isso acontece quando estamos com uns 20 minutos de filme – e está dado então o ponto central da trama. Carmen insistirá em ver a garota, em poder levar a garota para casa – mas as autoridades vietnamitas têm grande dificuldade para aceitar a situação inesperada, insólita, fora dos padrões.

         Em alguns momentos, falta lógica, mas sobra graça

No início desta anotação, falei que às vezes o filme deixa de lado a lógica para privilegiar a graça. Dou um exemplo. Depois que o grupo de estrangeiros se instala em um hotel e descansa da viagem, Dan os reúne para levá-los em um micro-ônibus até o orfanato, para terem o primeiro contato físico com as crianças que vão adotar. Mas ele explica a Carmen que ela não poderá ir. Primeiro ele terá que obter a autorização das autoridades que vão estudar o caso.

Pois bem. Diante do hotel, assim, do nada, de repente, as três senhoras espanholas arranjam bicicletas – e se põem a seguir o micro-ônibus. Como é que elas, em um piscar de olhos, conseguem três bicicletas, isso não se explica. Ora bolas, isso aqui não é um drama realista, é uma comédia, pô!

Há outras situações assim. Pode não haver lógica, mas a gente morre de rir.

Fiquei surpreso, chocado, ao ver que a diretora Patricia Ferreira morreu em 2023, devido a um tumor no cérebro. Tinha 65 anos.

Tem 14 títulos como diretora na filmografia, e 9 como roteirista. Não reconheci nenhum dos outros filmes dela. O IMDb destaca Sé Quién Eres (2000), El Alquimista Impaciente (2002), Els Nens Salvatges (2012) e Para Que No Me Olvides (2005), todos sem título em Português, o que indica que não foram lançados comercialmente aqui.

Thi Mai foi o último filme que ela dirigiu.

Anotação em agosto de 2024

Thi Mai/Thi Mai, Rumbo a Vietnam

De Patricia Ferreira, Espanha, 2017

Com Carmen Machi (Carmen),

Adriana Ozores (Rosa),

Aitana Sánchez-Gijón (Elvira),

Dani Rovira (Andrés), Eric Nguyen (Dan, o guia vietnamita), Pedro Casablanc (Javier, o marido de Carmen), José Troncoso (Carlos), José Burgos (Manuel), Ana López Segovia (Elena), Pedro Miguel Martínez (o embaixador), Nguyen Ngan Ha (Thi Mai, a garotinha), Nguyen Thi Chieu Xuan (a diretora do orfanato), Manh Cuong Tran (o funcionário de adoções), Antonio Gil (Iñigo, o marido de Rosa), Alberto Jo Lee (o croupier), Lolo Córdoba (o padre), Cecilia Solaguren (Pilar, a moça da adoção)

Argumento e roteiro Marta Sánchez

Fotografia Sergi Gallardo       

Música Fernando Velázquez   

Montagem Antonio Frutos      

Casting Laura Cepeda   

Desenho de produção María Clara Notari   

Figurinos María Gil, Sonia Segura

Produção Mikel Lejarza, Larry Levene, Felipe Ortiz, Es.Docu,

Amor en Vietnam, Atresmedia Cine, TriPictures.

Cor, 99 min (1h39)

**1/2

Um comentário para “Thi Mai / Thi Mai, Rumbo a Vietnam”

  1. Uma graça esse filme! Muito generoso e afetivo. Não exagera nos dramas particulares vividos pelos 4. E a cena final é comovente. Amei. Obrigada pela dica.

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