O Mundo é da Mulher / Woman’s World

2.5 out of 5.0 stars

(Disponível na Franciellen Taynara do YouTube em 2/2025.)

Woman’s World, no Brasil O Mundo é das Mulheres, de 1954, é um filme interessante, divertido, com uma penca de astros da Hollywood da época. Mas, além disso, é uma fascinante, maravilhosa peça de museu da História. Mostra como boa parte da sociedade norte-americana enxergava a ambição e a competição entre colegas dentro de uma grande empresa, a relação das pessoas com o trabalho, o que se priorizava entre trabalho e vida em família, e, como diz o título, qual era o papel da mulher nisso tudo, naquela década careta, conservadora, antes do feminismo e da revolução dos costumes que viria nos anos seguintes.

Não é pouca coisa, não.

A trama é um achado. O dono de uma grande indústria automobilística precisa escolher o novo diretor-geral da empresa, após a morte do anterior, que tinha sido absolutamente perfeito nos anos em que ocupou o cargo. Ele tem três candidatos – gerentes regionais da empresa em diversas lugares do país, competentes, trabalhadores, esforçados, talentosos. Resolve, então, chamá-los para passarem alguns dias em Nova York, para conhecê-los melhor, conviver com eles – e então fazer sua escolha. Conhecer suas mulheres, já que as mulheres – esse é o entendimento do grande empresário – são parte fundamental do trabalho do diretor-geral da companhia. Não apenas porque terão que representar a própria empresa nas mais diversas ocasiões – mas porque, afinal de contas, a mulher faz o homem. A mulher é um dos atributos do homem, assim como a dedicação do homem ao trabalho, sua criatividade, sua capacidade de se relacionar com os subalternos.

Um asset, como se diz em inglês. Um ativo, um atributo, uma habilidade. Mas que pode ser também um handicap – uma desvantagem, um obstáculo, uma dificuldade.

Isso tudo – pelamordeDeus, que o eventual leitor não me entenda mal – na cabeça do industrial, tá?

Ele, o patrão, que herdou a empresa do pai, é Ernest Gifford, e a empresa leva seu sobrenome. (Uma indústria automobilística que tem o nome da família do fundador… Qualquer semelhança com a Ford Motor Company evidentemente não é mera coincidência.)

Ernest Gifford é interpretado por um ator que tem o perfeito physique du rôle – Clifton Webb, aquele sujeito que é empáfia tornada gente como Waldo Lydecker em Laura (1945).

Os três casais que Gifford vai examinar para escolher o novo diretor-geral de sua indústria são interpretados por

* Van Heflin e Arlene Dahl, como Jerry e Carol Talbot;

* Fred MacMurray e Lauren Bacall, como Sid e Elisabeth Burns;

* Cornel Wilde e June Allyson, como Bill e Katie Baxter.

O diretor é Jean Negulesco (1900-1993), que fez comédias românticas de sucesso na 20th Century Fox naqueles anos 50, todos eles em cores e em CinemaScope – Como Agarrar um Milionário (1053). A Fonte dos Desejos/Three Coins in the Fountain (1954), Papai Pernilongo/Daddy Long Legs (1955), A Lenda da Estátua Nua/Boy on a Dolphin (1957). E também dramas como Acordes do Coração/Humorsque (1946), A Taverna do Caminho/Road House (1948), Telefonema de um Estranho/Phone Call from a Stranger (1952). 

 

A canção-tema deixa claro: a mulher existe para o homem

O filme abre com uma imagem do planeta Terra girando em torno de si mesmo, enquanto o grupo vocal the The Four Aces canta a música que tem o mesmo título da fita, “It’s a Woman’s World”, de Cyril J. Mockridge-Sammy Cahn. Ao longo da canção, vão rolando os créditos iniciais. É obrigatório transcrever a letra:

It’s a woman’s world when she’s in love

It’s a woman’s world, his kiss can make her glow

And that’s what makes it so, it’s a woman’s world

It’s a woman’s world, stars dance above

It’s a lovely world, his footstep at the door

Just proves it more and more

His hopes, his dreams and his ambitions

All the ups and downs she’ll gladly share

She’ll give her all without conditions

When he looks around, she’ll be there

It’s a woman’s world, ask any man

It’s a woman’s world, and he’s so glad it is

For when it’s hers it’s his

It’s a woman’s world, but only because it’s his

It’s a woman’s world, ask any man

It’s a woman’s world, and he’s so glad that it is

For when it’s hers it’s his

It’s a woman’s world, but only because it’s his

Mais ou menos assim: é um belo mundo, seus passos junto da porta apenas provam isso; suas esperanças, seus sonhos e sua ambição, todos os momentos bons ela vai desfrutar com alegria…

Em suma: o mundo é da mulher, mas a mulher serve é para dividir com o marido as esperanças dele, os sonhos dele, a ambição dele!

Meu Deus do céu e também da Terra! Enquanto via o filme, não reparei que a coisa era assim tão absolutamente, assombrosamente machista!

Bem. Terminados os créditos iniciais e a canção na voz dos Four Aces, temos tomadas gerais, panorâmicas de Manhattan, com aqueles prédios gigantescos – em glorioso CinemaScope. A voz em off de Clifton Webb-Ernest Gifford enfatiza o óbvio: sim, aquilo que todo mundo sabe que é Nova York… é Nova York!

“”Para aqueles que não reconhecem o que estão vendo, isto é Nova York. Belo de se ver assim do alto, não é? Belo e emocionante. Uma cidade de 8 milhões de homens e mulheres que vivem e amam e às vezes lutam entre si até a morte para chegar onde querem ir, apenas para descobrir, quando chegam lá, que não é onde eles querem mesmo estar.”

Tomada de um arranha-céu. “Este é o meu prédio, o Edifício Gifford. O Edifício Gifford abriga a equipe executiva da Gifford Motors, a fabricante do carro que nossa agência de publicidade descreve como ‘luxo sobre rodas’. Parece-me que nossas campanhas publicitárias são projetadas para atrair o esnobe em cada um de nós.”

Um carrão estaciona diante do prédio. O motorista desce para abrir a porta para o industrial. “Este é um dos carros que eu fabrico, o Gifford. E aqui estou eu. Meu nome é Gifford.”

Dentro do portentoso hall de entrada do prédio, há carros em exposição. Clifton Webb-Gifford pára para admirar um deles, diante de uma imenso logotipo de sua empresa. Por uma fração de minuto, a câmara mostra apenas as quatro últimas letras do nome – ford.

Gifford, obviamente, remete à Ford. E as iniciais de Gifford Motors são GM, como General Motors, como bem destaca o IMDb.

Em 1954 não era comum que os filmes tivessem créditos finais – como têm hoje –, mas, ao final deste A Woman’s World, há um letreiro dizendo que os carros mostrados na produção foram “uma cortesia da Ford Division, Lincoln-Mercury Division e da equipe de engenharia da Ford Motor Company”.

E, para os fanáticos por carros, o IMDb informa, na página de Trivia sobre o filme, que os “carros de sonho” que aparecem são o Ford X-100 preto, o Mercury XM-800 branco e o Lincoln XL-500 vermelho.

Três esposas bastante diferentes entre si

O casal Bill e Katie Baxter (o de Cornel Wilde e June Allyson, à esquerda na foto acima) é do Kansas. Eles têm três filhos – deixados no Kansas com alguma avó, naturalmente –, e se mostram bastante apaixonados um pelo outro. Katie deixa bastante claro que não gostaria que o marido fosse promovido e a família tivesse que se mudar para Nova York.

No primeiro encontro dos três casais com o patrão, Katie toma mais drinks do que deveria – e passa a soluçar alto. A sensação que o filme passa, naquele momento, é de que, com uma mulher assim, Bill não terá muitas chances de ser promovido para ocupar o cargo mais importante da empresa depois do dono…

Mas o espectador tem que lembrar sempre – é claro – que as aparências enganam…

O casal Sid e Elisabeth Burns (o de Fred MacMurray e Lauren Bacall, à direita na foto acima, ela sempre lindérrima, elegantérrima) se conheceu ali mesmo em Nova York, está agora radicado na Filadélfia – e, bem diferentemente de Bill e Katie Baxter, não está nada bem. Não que um deles tenha amante. Não, não, nada disso. Os dois se amam, sim – mas Elisabeth, exatamente porque ama o marido, não aguenta mais vê-lo trabalhar tanto, esforçar-se tanto, passar tanto tempo no trabalho, fora de casa, longe dos dois filhinhos e dela.

Sid é de fato um workaholic – e é ambicioso. Acha que tem as qualidades todas para ser o novo diretor-geral da Gifford Motors. Fica dividido entre a ambição, a dedicação ao trabalho – que lhe custa uma danada de uma úlcera – e aquele monumento de mulher que tem em casa. Mas acaba sempre, ou no mínimo quase sempre, se deixando levar pelo amor ao trabalho.

O casal Jerry e Carol Talbot (o de Van Heflin e Arlene Dahl, ela na foto abaixo) é do Texas, e, diferentemente dos dois outros casais concorrentes à vaga de diretor-geral, não tem filhos. Como Sid Burns, Jerry é um workaholic, um homem dedicado ao trabalho, e também acha que tem todas as qualidades para ser o escolhido para a grande promoção. E Carol, bem ao contrário de Elizabeth Burns, é louca de vontade de que o marido seja promovido. Não está nem aí para o fato de ele trabalhar muito, nem com a perspectiva de que tenha que trabalhar ainda mais se for escolhido diretor-geral. Adora a possibilidade de o casal ter mais dinheiro, morar em Nova York. É absolutamente apaixonada por sucesso, status.

E, diferentemente das duas outras esposas dos concorrentes, Carol está disposta a fazer de tudo para ajudar o marido a ganhar a promoção. Bonita, vistosa, ela joga todo o charme possível e imaginável para cima do patrão do marido.

No final, a moral da história é boa, avançada. Revolucionária!

Cinco profissionais assinam o roteiro deste Woman’s World. Os créditos iniciais dizem que o roteiro é de Claude Binyon, Mary Loos

e Richard Sale, com diálogos adicionais de Howard Lindsay e Russel Crouse. Um roteiro a dez mãos é algo absolutamente normal no cinema italiano – mas muito pouco usual em Hollywood. Parece indicar que os realizadores não ficaram satisfeitos com as primeiras versões, e pediram alterações.

Os créditos dizem ainda: “Baseado em uma história de Mona Williams”. O IMDb detalha que a fonte básica da trama é uma novelette de Mona Williams chamada May the Best Wife Win, que vença a melhor esposa, publicada na revista feminina McCall’s Magazine em julho de 1950.

Não tenho a menor idéia de quanto o roteiro do filme se afastou da novelette de Mona Williams (1905-1991). A Wikipedia em inglês sobre a escritora traz uma frase dela na época do lançamento do filme: “Tem tido tanta menção a Lindsay e Crouse e ao elenco de um milhão de dólares, sem qualquer menção a mim, que eu me sinto como uma mulher cujo bebê foi adotado por parentes ricos. Eu visitei o estúdio e encontrei algumas das estrelas. Elas são tão coloridas – pessoas reais, acessíveis – e pareciam estar se divertindo tanto que eu fiquei mais alegre.”

No verbete sobre Woman’s World, o livro The Films of 20th Century Fox descreve assim os três casais:

“Da Filadélfia vem um workaholic (Fred MacMurray) e sua cáustica esposa (Lauren Bacall); de Kansas City vem um homem (Cornel Wilde) que preferiria não pegar o (novo) cargo, cuja mulher (June Allyson) sente o mesmo; e do Texas vem um homem altamente eficiente (Van Heflin), com uma esposa (Arlene Dahl) que é uma ansiosa socialite.”

O livro revela quem é, afinal, o escolhido – o que é um danado de um spoiler – e faz a seguinte avaliação: “Uma visão inteligente da política dos negócios, com peso para o papel que as mulheres exercem – e bastante espaço para que elas exibam suas roupas.”

Leonard Maltin fez uma avaliação semelhante. Deu 3 estrelas em 4 para o filme de Jean Negulesco e escreveu: “Um olhar sofisticado sobre o mundo dos grandes negócios, os homens e as mulheres envolvidos nele, com Webb como o patrão da corporação escolhendo um novo sucessor”.

Uma visão inteligente, um olhar sofisticado.

Sim, é verdade.

Há essa coisa lamentável de apresentar uma história que, na verdade, nega os títulos Woman’s World e O Mundo é da Mulher, ao rebaixar o papel da mulher na sociedade para o nível de companheira do homem, de auxiliar, portanto secundária. Como conclui a letra da canção, numa frase que é reproduzida quase literalmente pelo patrão Gifford ao final da narrativa: “It’s a woman’s world, but only because it’s his”. É um mundo da mulher, mas apenas porque é dele – ele, o maridão.

Mas fazer o quê? O mundo era assim em 1954. Careta, preconceituoso, machista. Diacho, como as coisas melhoraram de lá para cá… Impressionante.

Mas o que mais me fascinou no filme é que a moral da história é ótima. A moral da história é: o trabalho, afinal de contas, não deve ser a principal coisa da vida das pessoas. A vida pessoal, o amor, a família – isso sim, é o importante.

Ora, diabo, um filme com essa moral, em 1954, em uma história sobre trabalho na grande corporação, sobre “subir na vida”, sobre competição no mundo capitalista… é uma bem-vinda maravilha. É quase revolucionário, como Georges Moustaki chama os ensinamentos de um sujeito inteligente que defendia o direito à preguiça.

Este O Mundo é da Mulher defende que os homens têm direito, sobretudo, à sua vida particular, pessoal. Trabalho não deve ser a prioridade máxima.

Revolucionário!

Anotação em fevereiro de 2024

O Mundo é da Mulher/Woman’s World

De Jean Negulesco, EUA, 1954.

Com (na ordem dos créditos) Clifton Webb (Ernest Gifford, o dono da empresa),

June Allyson (Katie Baxter),

Van Heflin (Jerry Talbot),

Lauren Bacall (Elizabeth Burns),

Fred MacMurray (Sid Burns),

Arlene Dahl (Carol Talbot),

Cornel Wilde (Bill Baxter),

Elliott Reid (Tony, o sobrinho de Gifford), Margalo Gillmore (Evelyn, a irmã de Gifford), Alan Reed (Tomaso, o dono do restaurante italiano), David Hoffman (Jarecki), George Melford (operário), Eric Wilton (mordomo)

Roteiro Claude Binyon, Mary Loos, Richard Sale, Howard Lindsay, Russel Crouse

Baseado em história de Mona Williams

Fotografia Joseph MacDonald

Música Cyril J. Mockridge

Canção “It’s a Woman’s World”, de Cyril J. Mockridge-Sammy Cahn, cantada por The Four Aces

Montagem Louis Loeffler

Direção de arte Lyle Wheeler

Figurinos Charles Le Maire

Produção Charles Brackett,. 20th Century Fox.

Cor, 94 min (1h34)

**1/2

Título na França: “Les Femmes Menent le Monde”. Na Itália: “Il Mondo è delle Donne”.

3 Comentários para “O Mundo é da Mulher / Woman’s World”

  1. Este filme é muito divertido e interessante. Lembra bastante How to Marry a Millionaire mas eu gosto mais de Womans World. Arlene Dahl, bonita e snob, nunca foi uma grande estrela mas já disse muita coisa estupida. Este foi um dos seus melhores papéis. Lauren Bacall, que nunca me fascinou, é mais uma vez ofuscada por outra estrela feminina (como acontece em vários filmes). June Allyson é um pouco irritante mas tem talento e fez um bom trabalho. As imagens de Nova York são fantásticas. Visualmente é um filme muito bonito

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