(Disponível na Oldflix com o título de Portugal, A Bandoleira.)
Muitos anos antes de brindar o mundo com Um Lugar ao Sol, Shane e Assim Caminha a Humanidade/Giant, p grande George Stevens dirigiu, ainda em 1935, a jovem e esplendorosamente bela Barbara Stanwyck em Annie Oakley, no Brasil Na Mira de um Coração, na França La Gloire du Cirque, na Itália La Dominatrice.
(Acho interessantes esses casos em que os distribuidores de cada país vão para um lado ao escolher o título do filme.)
É um filme fascinante, daquele tipo que conta uma história tão incrível, tão extraordinária, que parece saída da cabeça de um escritor de imaginação prodigiosa, turbinada por potente coquetel de alucinógenos – e que, no entanto, aconteceu de fato.
Annie Oakley, a protagonista da história, a mulher que dá o nome original do filme e é interpretada por uma Barbara Stanwyck de 28 aninhos (e parecendo até menos), havia morrido apenas nove anos antes do lançamento do filme, em 1926, aos 66 anos de idade.
Nascida em 1860, um ano antes do início da Guerra Civil americana, em uma área rural de Ohio, filha de um pequeno fazendeiro, Annie herdou do pai um talento fantástico – a mira certeiríssima com arma de fogo. Por um golpe de sorte, foi descoberta e contratada pelos organizadores do Buffalo Bill’s Wild West e, a partir de 1885, aos 25 anos de idade, passou a ser uma das principais estrelas do espetáculo circense que percorria todo o território dos Estados Unidos, e passou também por diversos países da Europa, tendo na platéia de pessoas comuns a cabeças coroadas.
Entre outras proezas, a moça conseguia acertar um tiro em cigarro colocado na boca de uma pessoa a 30 metros de distância!
Guilherme Tell era fichinha diante de Annie Oakley!
O IMDb adverte, na sua sinopse de uma única frase sobre o filme, que a biografia da famosa atiradora é “romantizada”: “A romanticized biography of the famous sharpshooter”.
Sem dúvida, deve ser mesmo. Os roteiristas Joel Sayre e John Twist, que se basearam em história de Joseph Fields e Ewart Adamson, seguramente acrescentaram detalhes dramáticos – e também cômicos – à saga de Annie Oakley. Para começo de conversa, a moça não era linda como a atriz que a representa. (Há foto de Annie Oakley bem mais abaixo.) Mas, diacho, ao cinema é permitido uma ou outra licença poética, né?
O importante é que, pelo que se pode perceber, com uma pesquisinha pela internet sobre a fantástica mulher, o filme é fiel aos aspectos básicos de sua extraordinária história.
Muito jovem, Annie vira atração no show de Buffalo Bill
Extraordinária história. Os realizadores sabiam bem disso: depois dos curtos créditos iniciais, há um letreiro com esta introdução: “Nenhuma ficção é mais estranha do que a vida real de Annie Oakley, que saiu de um vilarejo interiorano meio século atrás para assombrar o mundo.”
O roteiro e a direção de George Stevens optaram por apresentar a história da mais famosa atiradora do Oeste não com um tom muito sério, sisudo – a rigor, a rigor, Annie Oakley é uma comédia romântica. Melhor ainda: um western-comédia romântica.
Annie – o filme começa mostrando isso – era uma garota respeitada pelas pessoas da cidadezinha mais próxima da fazenda onde ela vivia com sua mãe viúva (o papel de Margaret Armstrong) e o casal de irmãos ainda crianças. Ela era a fornecedora de codornas para a cozinha de um hotel de Cincinnati, a cidade “grande” da região, propriedade de James MacIvor (Andy Clyde), um velhinho pequenino, engraçado, benquisto por todos, figurinha interessantíssima. Cada codorna chegava à cozinha com uma bala de rifle bem na cabeça…
Na primeira sequência do filme, um pequeno grupo de cidadãos ali do vilarejo está conversando fiado em um bar quando um sujeito começa a pregar na parede de fora um gigantesco cartaz anunciando a breve apresentação em Cincinnati de um tal Toby Walker, “o maior atirador do mundo”. Naquele momento, está chegando ao vilarejo a carroça da família Oakley, e o dono do estabelecimento brinca que Annie decidirá se o trabalhador pode continuar pregando os pedaços do grande cartaz na parede ou não. Annie vê a grande foto de Toby Walker, demonstra que já ouviu falar nele – o sujeito era bem famoso –, comenta que ele é bonitão, e diz que o cartaz é bem-vindo.
Logo alguém lança a idéia de que Annie bem que poderia ir a Cincinnati e desafiar o tal campeão de tiro.
Annie vai, com a família toda – e se demonstra absolutamente encantada com o bonitão Toby Walker (o papel de Preston Foster).
Não demora nada e, pouco depois do dia em que Annie e Toby disputam quem atira melhor, apresenta-se diante dela um sujeito muitíssimo bem vestido, todo jeito de rico. Chama-se Jeff Hogarth (o papel de Melvyn Douglas), é sócio do coronel Cody, e oferece a ela um trabalho na trupe do Buffalo Bill’s Wild West, que tem como principal atração o próprio coronel Cody, o Buffalo Bill, e em segundo lugar o campeão de tiro Toby Walker. (O lendário personagem é interpretado por Moroni Olsen – e é fantástico como o ator é parecido com o Buffalo Bill da vida real.)
Annie, jovem de tudo, chega a pensar em recusar o convite irrecusável: ah, mas quem vai cuidar da minha mãe e dos meus dois irmãozinhos? Jeff Hogarth argumenta que, caso aceite participar do show, receberá um salário muito, muito bom.
Uma mulher muitíssimo à frente de seu tempo
Uma mulher, uma única mulher em uma trupe de mais de uma centena de homens, vivendo em tendas, percorrendo aquela imensidão de país de ponta a ponta? Ali por volta de 1885?
Convido o eventual leitor para pensar um pouquinho no que isso significa… Meu, é muito extraordinário, é muito fora do normal, é muitíssimo avançado, à frente do tempo!
Os roteiristas Joel Sayre e John Twist incluíram uma sequência divertidíssima – e um tanto assustadora, vista hoje – para realçar que a existência de uma mulher atiradora nos shows apresentados pela trupe de Buffalo Bill era algo absolutamente invulgar. Na verdade, que era absolutamente invulgar a existência de uma mulher fora da cozinha da sua casa.
Uma loura – um tanto sem graça, e vestida muito apropriadamente, sem qualquer exagero, sem coisa algum fora do bom tom – entra em um saloon, um saloon como tantos e tantos e tantos outros no Velho Oeste.
O mundo cai. Desaba.
A homarada faz cara de quem está vendo um E.T., um dinossauro, um bicho de sete cabeças.
A ação se passa ali por 1885, 1890, e o filme é de 1935. As mulheres só garantiram o direito a votar em todos os Estados Unidos em 1920, dois anos depois do Reino Unido. No Brasil, foi em 1932, e na França da liberté égalité fraternité, só em 1945! Em 1949, como eu vi outro dia mesmo, o jornal A Tribuna de Santos publicava a manchete “Espetáculos afrodisíacos e atentatórios à moral o que se observa presentemente em nossas praias”, e, abaixo, a linha fina: “O exagero nos trajes estimula a imoralidade – Necessário um pouco mais de comedimento – “Maillots” que fazem concorrência à parra bíblica – A um passo da nudez”.
Sem dúvida: Annie Oakley foi uma mulher muito, mas muito à frente de seu tempo!
Um triângulo, digo, um quadrado amoroso
A loura sem gracinha que provoca o mesmo efeito de uma bomba atômica ao entrar em um saloon se chama Vera Delmar (o papel de Pert Kelton). Ela estava à procura de Toby Walker – de quem era secretaria e, muito provavelmente, também amante. Digo muito provavelmente porque o filme não deixa explícito qual é o relacionamento entre os dois – e não poderia, por causa do rigor do Código Hays, o conjunto de normas de censura que os estúdios foram obrigados a aceitar.
Veremos é que Toby se desinteressa por Vera, porque, naturalmente, tem perto dele uma mulher muitíssimo mais fascinante, aquela Annie que é tão boa de mira quanto ele – se não for melhor. E Annie sempre havia sido fascinada por ele.
Nos shows, no entanto, os dois são concorrentes – e isso era um bom atrativo, um homem e uma mulher disputando o título de melhor atirador da América. Os dois resolvem manter em segredo o namoro que se inicia, para manter entre os colegas de trupe a aura de que eram competidores ferozes.
Vai surgir – como acontece com frequência nas comédias românticas – um problema, e um problema bastante grave, que afastará o mocinho da mocinha. E, com Toby distante, o empresário Jeff Hogarth vai partir para cima da bela Annie – e isso durante a extremamente bem sucedida excursão do Buffalo Bill’s Wild West por Londres, Paris, Roma, Berlim, São Petersburgo…
O triângulo amoroso – a rigor um quadrado, porque Vera não desiste facilmente de Toby – é um belo elemento para a face romance do filme. Para a face comédia, há a participação – de fato muito divertida – do famosérrimo Touro Sentado, Sitting Bull, o líder da nação hunkpapa lakota que, com os cheyennes, derrotou a 7ª Cavalaria comandada pelo tenente-coronel George Armstrong Custer na batalha de Little Big Horn, 1876.
Na história bastante romanceada de Annie Oakley contada no filme de George Stevens, Sitting Bull resiste às tentativas do assessor de imprensa de Buffalo Bill para se unir à trupe do show – mas, ao ver o desempenho de Annie com o rifle, topa a proposta, e passa a fazer parte do espetáculo itinerante que reproduz histórias do Wild West, inclusive, é claro, os ataques dos índios aos colonos e os enfrentamentos entre índios e a Cavalaria.
Sitting Bull é interpretado por Chief Thunderbird (1866-1946), ator de ascendência cheynne, excelente no papel, engraçadíssimo. As peripécias que os roteiristas criaram para serem protagonizada pelo grande líder indígena são hilariantes.
Buffalo Bill transformou a História em show business
O cinema já contou diversas vezes a história de Buffalo Bill – e, diabo, não poderia ser diferente. William Frederick Cody (1846–1917), cavaleiro do Pony Express ainda adolescente, caçador de búfalos, garimpeiro, oficial do Exército da União na guerra civil contra o Sul escravagista, depois batedor civil a trabalho do Exército durante as guerras contra os índios, e depois showman, é uma das figuras mais famosas da História da conquista do Oeste americano.
Aqui, a protagonista é Annie Oakley, claro – mas não dá para a gente não ficar impressionado com aquela coisa fantástica que deve ter sido o tal do Buffalo Bill’s Wild West. Imagine só: um cara que foi parte da história do Velho Oeste forma uma gigantesca trupe de brancos e índios, atiradores, vaqueiros, adestradores de cavalos selvagens, para percorrer todos os Estados Unidos, de Norte a Sul, de Leste a Oeste, apresentando grandes shows que reproduziam as ações reais da conquista dos imensos territórios até então habitados basicamente pelas nações indígenas!
Não daria jamais para imaginar o marechal Candido Rondon e os irmãos Villas-Bôas liderando centenas de brancos e índios em uma espécie de Super Caravana Rolidei de Bye Bye Brasil reproduzindo em shows Brasil afora a ação dos indigenistas que fizeram contato com as nações xavantes, nambiquaras – mas nos Estados Unidos houve todo espaço para os shows do Buffalo Bill’s Wild West.
Não pude deixar de ficar pensando que nos Estados Unidos tudo vira show – dança, esporte, noticiário, matança de índio… O negócio dos Estados Unidos é o negócio. E there’s no business like show business.
Pauline Kael, a crítica cricri, homenageia Barbara Stanwyck
Em 1894, a Edison Company –fundada por Thomas Alva Edison, e que desenvolveu, além da lâmpada elétrica, também o kinetoscópio, uma das primeiras máquinas de filmar da História – realizou um pequeniníssimo documentário em que Annie Oakley faz uma demonstração de sua arte. Essa fantástica peça de museu mereceu um verbete no IMDb – e está disponível no YouTube para qualquer pessoa que quiser ver agora, passados mais de 130 anos!
O sujeito que aparece com ela nesse fantástico documento histórico é Francis Butler, ele também um grande atirador, com quem Annie se casou em 1876, aos 16 anos de idade.
A vida de Annie Oakley foi contada também em uma série de televisão, cujo título era novamente apenas o nome da lendária personagem. A série teve nada menos que 81 episódios, em três temporadas, entre 1954 e 1957. A atiradora foi interpretada por Gail Davis (1925-1997), 45 títulos na filmografia.
Leonard Maltin deu 3 estrelas em 4 para o filme de George Stevens: “Animada biografia da atiradora Stanwyck e seu romance que ia e voltava com o colega de espetáculo Foster. A direção precisa nas cenas episódicas dá um sabor crível da América do final do século 19. Moroni Olson faz o papel de Buffalo Bill.”
Pauline Kael escreveu o seguinte: “Barbara Stanwyck era uma atriz incrível. Como a garota do interior que se junta ao show Buffalo Bill’s Wild West Show e se torna internacionalmente famosa por sua pontaria (e seu talento para o show), ela está consistentemente pura e crível, e leva uma carga física ao papel. O filme, dirigido por George Stevens, aborda alguns pontos sobre raça que ele usaria mais tarde em Giant (e que Arthur Penn tratou em Little Big Man), mas aqui estão mais leves e melhores. O filme dá a sensação de ter sido quase improvisado. (Ele incluj muito do material que parece tensionado no estilo de improvisação de Buffalo Bill and the Indians, de Robert Altman, de 1976.) O roteiro, de Joel Sayre e John Twist, a partir de uma história de Joseph A. Fields e Ewart Adamson, enfatiza a falta de vontade instintiva de Annie de humilhar o belo Melhor Atirador do Mundo (Preston Foster) por ser melhor de tiro do que ele. (…) Talvez o elenco tenha intuitivamente reagido ao talento de Stanwyck: todo mundo na trupe Wild West parece saber que Annie Oakley não é uma pessoa comum. Quanto a Preston Foster, ele é suavemente desinteressante, mas ainda assim traz um charme masculino ao seu papel. Com Moroni Olsen como Buffalo Bill, Chief Thunder Bird como Sitting Bull, e Melvyn Douglas, Pert Kelton, and Andy Clyde. RKO.”
Euzinho, um eterno apaixonado pela Era Clássica de Hollywood, adorei ver este filme.
Anotação em janeiro de 2025
Na Mira de um Coração/Annie Oakley
De George Stevens, EUA, 1935
Com Barbara Stanwyck (Annie Oakley),
Preston Foster (Toby Walker),
Melvyn Douglas (Jeff Hogarth, o empresário), Moroni Olsen (Buffalo Bill), Pert Kelton (Vera Delmar, a namorada de Toby), Andy Clyde (James MacIvor, o dono do hotel|), Chief Thunderbird (Sitting Bull, o Touro Sentado), Dick Elliott (Ned Buntline, o assessor de imprensa de Buffalo Bill), Margaret Armstrong (Mrs. Oakley, a mãe de Annie), Delmar Watson (Wesley Oakley, o irmãozinho de Annie), Adeline Craig (Susan Oakley, a irmãzinha de Annie), Philo McCullough (oficial), Theodore Lorch (o locutor do show)
Roteiro Joel Sayre, John Twist
Baseado em história de Joseph Fields e Ewart Adamson
Fotografia J. Roy Hunt
Diretor musical Alberto Colombo
Montagem Jack B. Hively
Direção de arte Van Nest Polglase, Perry Ferguson
Na TV Elói. Produção Cliff Reid, RKO Radio Pictures.
P&B, 88 min
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