
(Disponível na Netflix em 3/2025.)
Mulheres do Século 20, de 2016, é um daqueles belos, sensíveis dramas familiares com que o cinema às vezes nos presenteia. Foi escrito e dirigido por um realizador que costuma deixar sua marca pessoal nos filmes que cria, Mike Mills, e tem grandes atores em belíssimas atuações – Annette Bening, Greta Gerwig, Elle Fanning, Billy Crudup e o jovem Lucas Jade Zumann, uma revelação.
O foco central é a relação de uma mãe e o filho adolescente que criou sozinha – após a separação, quando o filho ainda era jovem demais, o pai se demonstrou um total ausente. A mãe, Dorothea Fields (o papel de Annette Bening), é uma mulher um tanto solitária, que, depois da separação, nunca engrenou um namoro firme, tranquilo. Preocupa-se demais – talvez exageradamente – com o filho, Jamie (o papel de Lucas Jade Zumann), garoto de 15 anos, com sua formação, com o que será dele neste mundo em mudança, cheio de novidades, perigos, ameaças.
O onde e o quando são explicitados de cara, logo na abertura da narrativa – um letreiro informa que estamos em “Santa Bárbara, 1979”, e ao longo de todo o filme fala-se diversas, diversas vezes do local e da época. Mas fica sempre muito claro, já a partir do próprio título que, ao falar daquela família específica – e a vida de Dorothea e Jamie tem muitas especificidades –, o filme está mostrando um microcosmo que é um espelho de boa parte da sociedade dos Estados Unidos naquela segunda metade do século XX.
Uma das muitas especificidades da família Dorothea e Jamie Fields é que mãe e filho não vivem sós. Muitos anos antes da época em que passa a ação, Dorothea havia se encantado com uma casa imensa, que estava meio caindo aos pedaços; comprara a casa, e alugava partes dela. Viviam ali com a mãe e o garoto duas outras pessoas: Abbie, uma jovem mulher aí de uns 25 anos, fotógrafa, inteligente, sensível, um tanto instável, enfrentando um câncer no útero (o papel desse poço de talento que é Greta Gerwig, sete anos antes de dirigir Barbie), e William, um faz-tudo, um handy man, mecânico, carpinteiro, que pouco a pouco vai dando um trato na velha e imensa casa (o papel de Billy Crudup).
E a casa ainda tem, durante boa parte do tempo, a presença de Julie (o papel dessa garota de beleza fantástica Elle Fanning), a maior amiga de Jamie, dois anos mais velha que ele. Os dois adolescentes vivem uma relação bastante complicada.
Uma casa que às vezes parece uma república de estudantes, um pensionado – e que recebe muitas visitas. Dorothea tem muitos conhecidos, e sua casa imensa volta e meia está cheia de gente.
O que ajuda a ampliar o escopo do filme. O foco central é a relação mãe e filho – mas a intenção, repito, é mostrar aquilo ali como um exemplo do que é boa parte da sociedade norte-americana.
Um dos momentos mais fascinantes do filme é quando, a casa cheia de convidados, todos param para ouvir o discurso do presidente Jimmy Carter na televisão, no dia 15 de julho de 1979, que ficaria conhecido como “Uma Crise de Confiança”.
“Quero falar com vocês agora mesmo sobre uma ameaça fundamental à democracia americana. (…) É uma crise de confiança. É uma crise que atinge o próprio coração, alma e espírito da nossa vontade nacional. Podemos ver essa crise na dúvida crescente sobre o significado de nossas próprias vidas e na perda de uma unidade de propósito para nossa nação. A erosão da nossa confiança no futuro ameaça destruir o tecido social e político da América.”
Ao final do discurso, uma das vistas diz: – “Wow. Ele está tão ferrado…”
Outro emenda: – “Nem me fala.”
Outro garante: – “Acabou para ele.”
Dorothea parece ser a única que entendeu direito: – “Achei que foi bonito”.

Não há grandes eventos, surpresas, situações de impacto
Um daqueles belos, sensíveis dramas familiares.
20th Century Women é também um daqueles belos, sensíveis filmes em que não há assim propriamente uma trama cheia de grandes fatos, eventos, surpresas, situações de impacto. Mostra momentos da vida daquelas cinco pessoas – Dorothea, o filho, a inquilina Abbie, o inquilino William, a quase inquilina Julie –, o relacionamento entre eles, como eles reagem aos fatos da vida.
Como seria uma boa sinopse do filme de Mike Mills?
“A história de um adolescente, sua mãe e duas outras mulheres que ajudam a criá-lo entre amor e liberdade, ambientada no Sul da Califórnia em 1979.” Esta é a sinopse do IMDb.
Eis uma outra que também está no IMDb, assinada por um leitor e/ou colaborador do grande site enciclopédico, Peter Cox:
“O amor, a vida e as batalhas de uma mãe criando um filho no final dos anos 70. A ignorância de uma mulher de espírito livro sobre as necessidades de um jovem tentando encontrar seu verdadeiro caráter e suas crenças. Vivendo em uma casa boêmia, dividida com três outras pessoas de espírito livre para ajudar a pagar o aluguel, sua mãe tenta estabelecer laços com os quais ele não consegue lidar. Ela não consegue lidar com sua inabilidade para falar, e pede a ajuda das outras mulheres em sua vida para dividir o fardo da criação. Lentamente, a vida se desfia para todos eles sem que compreendam como. Apesar de suas batalhas, todos eles continuam a viver vidas definidas sem qualquer consequência séria.”
Hum… Com exceção da última frase, que não consegui compreender, acho que o tal Peter Cox fez uma bela sinopse do filme…

Mulheres de diferentes gerações – todas complexas, difíceis
Fala-se bastante da idade dos personagens centrais. É uma forma, creio, de o criador e diretor Mike Mills demonstrar que está falando de mulheres do século XX, não apenas de uma única geração.
É dito que Dorothea é de 1924 – portanto, em 1979, quando se passa boa parte da ação, ela estaria com 55 anos. (Annette Bening, da classe de 1958, estava com 58 anos quando o filme foi lançado.) Jamie repete algumas vezes que sua mãe cresceu durante a Grande Depressão – isso, segundo ele, explicaria por que tudo para ela tem a ver com solidariedade, uns ajudando aos outros. Sem dúvida, quando se vive em tempos extremamente difíceis as pessoas tendem a ser gregárias, solidárias, e não individualistas, cada um por si.
Abby é baby boomer, das gerações que nasceram no pós-guerra, entre 1946 e 1964. Nasceu em 1955, e estava portanto com 24 quando a ação se passa. (Greta Gerwig, na foto baixo, estava com 33 no ano de lançamento, mas parece bem menos que isso.)

E Julie, dois anos mais velha que Jamie, nasceu em 1962 – estava com 17 na época da ação, 1979. (A linda Elle Fanning, de 1998, estava com 18 quando o filme foi lançado.)
Registro algumas características dos personagens, alguns momentos do relacionamento entre eles.
Falei no começo do texto que Dorothea é uma mulher um tanto solitária, mas depois disse que ela tinha muitos conhecidos, várias vezes recebia pessoas em sua casa. A contradição, no entanto, é apenas aparente. Vemos que ela não tem nenhum amigo íntimo – e tem dificuldade com os homens, os namoros nunca duram muito. Ela é daquele tipo de pessoa – o espectador vai percebendo isso claramente – que não se abre muito para os outros. Talvez nem seja uma coisa consciente, mas Dorothea não se abre para os outros.
Abby também tem dificuldades de se relacionar com os outros – e mais ainda com os homens. Lá pelas tantas, ela se aproxima do co-inquilino, o faz-tudo William, e, de uma forma um tanto triste, pede para que ele se aproxime dela. Mas faz exigências: ele não pode chegar para ela os dois sendo quem são, duas pessoas que, por um acaso, moram na mesma grande casa. Não: ela precisaria de um teatrinho, um faz-de-conta, para se sentir à vontade para as preliminares do sexo.
Mulheres que não são simples. Complicadas, complexas.
E não importa a faixa etária. Julie, a garotinha novinha, e além de novinha linda de doer, é talvez mais complexa, e mais infeliz, do que a moça de 20 e tantos e a coroa de 50 e tantos.
Julie é filha de mãe psicóloga – e é mais uma prova viva daquela verdade de que em casa de ferreiro, espeto de pau. A mãe a coloca numa terapia de grupo, mas não consegue chegar perto dela; Julie não tem contato verdadeiro com a mãe, e nem tenta estabelecer laços com ela. Foge de casa sempre que pode – passa muito mais tempo na casa do amigo Jamie do que na sua própria casa.

A relação entre Julie e Jamie é absolutamente complicada. Os dois se gostam, conversam muito, abrem o coração um para o outro, dormem juntos na cama dele. Em um momento lá, ela confidencia para ele como foi a trepada recente com um colega – uma droga. – “Metade das vezes eu me arrependo”, ela diz. Jamie pergunta por que, então, ela trepa. – “Porque metade das vezes eu não me arrependo”, diz ela.
Com o argumento de que é exatamente porque os dois são muito íntimos, a garota não quer saber de sexo com ele. E Jamie, apaixonado pela moça, é óbvio que está absolutamente a fim.
Abby dará um conselho a ele, dando especial ênfase a algumas palavras: – “Você não pode deixar ela dormir aqui se ela não estiver fazendo sexo com você. É desempoderador.”
Um criador e diretor de filmes que têm toques pessoais
Mike Mills é um realizador muito interessante. Nasceu em Berkely, Califórnia, em 1966 – ou seja, é da geração do garoto Jamie, e da mesma região. O pai era um historiador e diretor de museu, e a mãe, projetista. Fez cinema publicitário – dirigiu filmes para a Nike, a Levis, a Volkswagen. E realizou vídeos musicais – para a banda francesa Air, o compositor nova-iorquino Moby.
Em 2005, escreveu e dirigiu seu primeiro longa-metragem, Impulsividade/Thumbsucker, uma produção independente sobre um adolescente que tem dificuldade de se libertar da obsessão por lamber o polegar. O protagonista era interpretado por um novato desconhecido, Lou Taylor Pucci, mas seus pais eram feitos por Tilda Swinton e Vincent D’Onofrio, e Keanu Reeves também estava no elenco.
Em 2007, Mike Mills fez um documentário sobre como japoneses enfrentam a depressão, Does Your Soul Have a Cold? E em 2010 fez seu segundo longa de ficção, Toda Forma de Amor/Beginners, um filme personalíssimo, autobiográfico, em que um dos protagonistas, um pai interpretado por Christopher Plummer, após os 70 anos e a morte da mulher, por um câncer, anuncia que passará a assumir que é gay. O pai do diretor fez isso, depois que sua mulher morreu de câncer. O ator que interpretava o filho, o britânico Ewan McGregor, brincou em entrevista que
não foi muito difícil fazer o papel de Oliver Fields, porque Oliver Fields é Mike Mills – e então, para fazer uma determinada cena, bastava que ele, McGregor, perguntasse a seu diretor: “o que foi que você sentiu nesse momento aqui?”
O filme seguinte de Mike Mills veio nove anos depois de Toda Forma de Amor/Beginners – e este Mulheres do Século 20 aqui também tem muito de autobiográfico, como ele mesmo admitiu em entrevistas. “Os principais personagens são baseados em uma ou múltiplas das influências sobre Mills desde sua infância”, informa o IMBd na página de Trivia sobre o filme. A Dorothea de Annette Bening é uma projetista, exatamente como a mãe do autor e diretor; como a mãe na vida real, Dorothea é apaixonada por Casablanca, por Humphrey Bogart. A mãe morreu de câncer – Dorothea, uma fumante compulsiva, fala que vai morrer de câncer.

Há até um detalhinho curioso: o sobrenome dos personagens centrais, Dorothea e Jamie, é Fields – o mesmo do pai e do filho em Toda Forma de Amor.
Coerência até nesse pequeno, ínfimo detalhinho.
Adoro detalhinhos, pequenas coincidências – exatamente como o povo que faz a página de Trivia dos filmes no IMDb. O fantástico site enciclopédico nota, em um dos itens da página, que o filme seguinte de Annette Bening foi Estrelas de Cinema Nunca Morrem (2017), em que ela interpreta a atriz Gloria Grahame – que, em 1950, estrelou No Silêncio da Noite/In a Lonely Place, ao lado de Humphrey Bogart, o ator adorado por Dorothea Mills, perdão, Dorothea Fields.
Ouvir hoje o belo discurso de Jimmy Carter é chocante
Mulheres do Século 20 recebeu 15 prêmios e teve 82 indicações no total – inclusive uma ao Oscar de melhor roteiro original e duas ao Globo de Ouro, nas categorias melhor filme musical ou comédia e melhor atriz para Annette Bening.

Eu não sabia daquele discurso de Jimmy Carter sobre a crise de confiança das pessoas nos Estados Unidos de 1979 – ou, se é que algum dia soube, não me lembrava, o que dá na mesma.
O discurso é importante, impressionante, marcante. Tem vários trechos absolutamente brilhantes. Saber desse discurso agora, quando o povo americano colocou na Presidência da República um troglodita, louco, irresponsável, que está destruindo a forma com que as relações internacionais foram construídas ao longo de décadas, é uma experiência chocante e tristíssima.
Como parte do discurso está no filme, e é evidentemente importante no que o autor e diretor tem a dizer com ele, vou transcrever aqui dois trechos. Ele pode ser lido na íntegra, em português, aqui: https://www.americanrhetoric.com/speeches/jimmycartercrisisofconfidence.htm
“Quero falar com vocês agora mesmo sobre uma ameaça fundamental à democracia americana.
“Não me refiro às nossas liberdades políticas e civis. Elas perdurarão. E não me refiro à força externa da América, uma nação que está em paz esta noite em todos os lugares do mundo, com poder econômico e poderio militar inigualáveis.
“A ameaça é quase invisível em situações comuns.
“É uma crise de confiança.
“É uma crise que atinge o próprio coração, alma e espírito da nossa vontade nacional. Podemos ver essa crise na dúvida crescente sobre o significado de nossas próprias vidas e na perda de uma unidade de propósito para nossa nação.
“A erosão da nossa confiança no futuro ameaça destruir o tecido social e político da América. (…)
“Em uma nação que se orgulhava do trabalho duro, famílias fortes, comunidades unidas e nossa fé em Deus, muitos de nós agora tendem a adorar a autoindulgência e o consumo. A identidade humana não é mais definida pelo que alguém faz, mas pelo que alguém possui. Mas descobrimos que possuir coisas e consumir coisas não satisfaz nosso anseio por significado. Aprendemos que acumular bens materiais não pode preencher o vazio de vidas que não têm confiança ou propósito.”
Anotação em março de 2025
Mulheres do Século 20/20th Century Women
De Mike Mills, EUA, 2016
Com Annette Bening (Dorothea Fields),
Lucas Jade Zumann (Jamie Fields),
Elle Fanning (Julie Hamlin),
Greta Gerwig (Abbie Porter),
Billy Crudup (William),
Alison Elliott (a mãe de Julie), Thea Gill (Gail Porter), Vitaly Andrew LeBeau (Jamie Fields novinho), Olivia Hone (a irmã de Julie), Waleed Zuaiter (Charlie), Curran Walters (Matt), Darrell Britt-Gibson (Julian),
Alia Shawkat (Trish), Nathalie Love (Cindy)
Argumento e roteiro Mike Mills
Fotografia Sean Porter
Música Roger Neill
Montagem Leslie Jones
Casting Mark Bennett, Laura Rosenthal
Desenho de produção Chris Jones
Figurinos Jennifer Johnson
Produção Anne Carey, Megan Ellison, Youree Henley, A24,
Annapurna Pictures, Modern People, Archer Gray.
Cor, 119 min (1h59)
***1/2
