Era Uma Vez no Oeste / C’era una Volta il West / Once Upon a Time in the West

4.0 out of 5.0 stars

(Disponível na Apple TV e Prime Video em 9/2025.)

É uma delícia ver e rever Era Uma Vez no Oeste. O filme que Sergio Leone rodou em 1968 no Arizona, em Utah, na Andaluzia e dentro dos estúdios de Cinecittà, em Roma, é uma maravilha, uma obra-prima, uma festa para os olhos e os ouvidos.

Como poucos, é uma perfeita conjugação de super close-ups com seu oposto, os planos gerais, como os das paisagens sem fim do Oeste, do Monument Valley – onde se passavam tantas cenas das obras de John Ford, o mestre dos mestres.

Uma justaposição de imagens da mais apavorante, vil, torpe crueldade e da mais absoluta beleza – tanto das paisagens quanto de Claudia Cardinale. E, meu Deus do céu e também da Terra, como Claudia Cardinale está linda, absolutamente, faiscantemente linda, no fulgor dos 30 aninhos!

Tem todas, absolutamente todas as características do clássico western, este que é um dos gêneros mais antigos e tradicionais do cinema – e é, sem dúvida, um dos melhores westerns da História. Só que há sempre, sempre uma pitada de exagero, de overdose, que é a característica do spaghetti-western, o subgênero do qual Sérgio Leone foi um dos inventores e o maior mestre. E, aí, no subgênero, não há concorrente possível: C’era una Volta il West é o melhor spaghetti-western que já foi feito.

No western de Sergio Leone, as sequências são longas, lentas, pachorrentamente vagarosas. E os atores se movimentam quase como se estivessem num espetáculo de balé clássico, ou numa ópera. O diretor consegue dar graça e beleza aos tiroteios – e, credo, como há tiros, ao longo dos 166 minutos do filme, que passam bem depressa, como sempre acontece no grande cinema.

Festa para os olhos, festa para os ouvidos. Há longas sequências sem diálogo – como a primeira, a que abre o filme, uma perfeição, uma coisa de louco –, em que ouvimos apenas os ruídos do ambiente. O rangido das pás de um moinho, o barulho das botas pisando na madeira, o zumbido de uma mosca, o vento. Há momentos de silêncio absoluto – e aí entra uma das extraordinárias melodias que Ennio Morricone compôs para o filme, e o espectador fica chocado, chapado com aquela beleza.

A trilha sonora de Ennio Morricone para C’era una Volta il West é uma das mais belas de todas as 471 que criou na sua inigualável carreira para filmes políticos, western-spaghettis, dramas românticos, todos os tipos de gêneros. Uma das mais belas destes primeiros 130 anos de cinema.

Um afresco sobre como foi a conquista do Oeste

A história, a trama de Once Upon a Time in the West é uma beleza, uma maravilha. Foi bolada, criada, imaginada por três cabeças – o próprio Sergio Leone, o roteirista e diretor Dario Argento e o grande, incensado Bernardo Bertolucci. Não me lembrava que tinha Bertolucci no filme, que vi agora pela terceira vez, se é que minhas anotações estão corretas. E acho muito interessante essa coisa de uma história criada por três pessoas. Que várias pessoas escrevam um roteiro, isso é absolutamente comum – e no cinema italiano, em especial, a maior parte dos roteiros é de autoria de um grupo de três ou mais pessoas. Mas a história básica…

Como será que funcionou isso? Reuniam-se os três diante de uma mesa em um restaurante romano com muita pasta e muito vinho e cada um vinha com uma idéia, que se juntava à que o outro havia acabado de ter?

Ahn… A Wikipedia tem um tópico intitulado “Origens”, em seu ótimo, bem cuidado verbete sobre Once Upon a Time in the West. Traduzo literalmente, com alguns acréscimos em itálico e entre parênteses:

“Depois de fazer seu épico pistoleiro americano The Good, the Bad and the Ugly (no Brasil, Três Homens em Conflito, de 1966), Leone pretendia não fazer mais westerns, por acreditar que já havia dito o que queria dizer. Havia encontrado o romance The Hoods, assinado por Harry Gray, um pseudônimo, um livro de ficção baseado nas experiências do próprio autor com um bandido judeu durante a Lei Seca, e planejava adaptá-lo para o cinema – 17 anos mais tarde, seria seu último filme, Once Upon a Time in America (de 1984; Leone morreria em 1989, aos 60 anos). No entanto, os estúdios de Hollywood só ofereciam westerns a Leone. A United Artists (que havia produzido a Trilogia dos Dólares) ofereceu a ele a possibilidade de fazer um filme com Charlton Heston, Kirk Douglas e Rock Hudson, mas Leone recusou. Quando a Paramount ofereceu a Leone um orçamento generoso junto com acesso a Henry Fonda – seu ator favorito, com quem ele sempre quisera trabalhar –, Leone aceitou a oferta.

“Chamou Bernardo Bertolucci e Dario Argfento para o ajudar a conceber um filme no filme no final de 1966. Eles passaram boa parte do ano seguindo vendo numerosos clássicos e discutindo sobre eles, como High Noon, The Iron Horse, The Comancheros e The Searchers (respectivamente Matar ou Morrer, 1952, O Cavalo de Ferro, 1924, Os Comancheros, 1961, e Rastros de Ódio, 1956), na casa de Leone, e construíram uma história composta quase inteiramente de referências a faroestes americanos.”

É uma beleza de história!

E é fascinante como o filme demora a dizer qual é a história que ele vai contar. O roteiro escrito a quatro mãos    por Sergio Leone e Sergio Donati, com diálogos de Mickey Knox, primeiro nos apresenta os personagens – com muitas calma, bem lentamente –, para só depois mostrar como seus caminhos vão se interligar e formar uma trama.

São três pistoleiros – exímios, experts na sua arte -, um fazendeiro que logo é assassinado juntamente com seus três filhos, e uma mulher belíssima. Mais um homem de negócios, um empreendedor, o típico capitalista, ambicioso ao extremo.

Ao fim e ao cabo, o que é apresentado ao espectador pode ser visto como uma história de amor, ódio e vingança envolvendo quatro homens – o que é logo morto e os três pistoleiros – e uma mulher de beleza acachapante.

Pode ainda ser entendido como isso aí e também um painel, um afresco que mostra como a conquista do Oeste dos Estados Unidos foi feita com coragem, empreendedorismo, imaginação, ambição, perseverança e muita, mas muita, mas muitíssima violência e crueldade.

Muitos bandidos – mas falta um mocinho no filme

Antes de relatar um pouco sobre as sequências iniciais, é preciso fazer uma correção: não é verdadeira a frase “tem todas, absolutamente todas as características do clássico western”.

Falta a Era Uma Vez no Oeste uma característica básica, fundamental, do gênero: o herói. O mocinho.

Diz, com toda propriedade, o livro Great Hollywood Westerns, do pesquisador Ted Sennett: “O western elaborado, influente, de Sergio Leone era cheio de momentos estilizados. O que ele não tinha eram heróis inequívocos, subvertendo, assim, os o código tradicional do western.”

Quem talvez mais chegasse perto da figura do herói, do mocinho, fosse o fazendeiro Brett McBain (Frank Wolff, na foto abaixo), um irlandês que havia atravessado o Oceano Atlântico e mais da metade do país-continente e criado seu rancho em um trecho árido do Oeste sem fim. Havia perdido a mulher, e criara sozinho os três filhos, dois homens, Patrick e Timmy, e uma garota, Maureen (respectivamente, Stefano Imparato, Enzo Santaniello e Simonetta Santaniello).

Brett e os três filhos são atacados e mortos a tiros pelo pistoleiro Frank (o papel de Henry Fonda) e sua quadrilha bem no início da narrativa, como já foi dito – e só depois que o filme já passou da metade sua viúva, Jill (Claudia Cardinale), e também o espectador, ficam sabendo que ele era um visionário, que se preparava para fazer uma grande fortuna, por meios absolutamente lícitos.

Fazendeiro, e não pistoleiro. Um desbravador, um visionário. Só que, nos poucos minutos em que aparece na tela, Brett McBain demonstra que não é nada simpático, e trata os filhos homens com grosseria e até tapa na cara. Não é, portanto, um mocinho, um herói inequívoco.

Cheyenne (o papel de Jason Robards Jr.) não é tão absolutamente cruel e sanguinário quanto Frank – “Eu jamais mataria uma criança”, diz ele, por exemplo. Mas, como Frank, é o líder de uma quadrilha de bandidos.

O espectador não fica sabendo o nome do terceiro pistoleiro da história, Como ele está sempre pronto a tocar uma gaita, é chamado de O Homem da Harmônica, ou simplesmente Harmonica (o papel de Charles Bronson). Diferentemente de Frank e de Cheyenne, Harmonica não é um bandido, um assaltante, um chefe de quadrilha. O espectador demora para entender exatamente por quê, mas Harmonia é um homem à procura de vingança. Já na primeira sequência do filme mata três.

Não é um bandido – mas também não é um mocinho.

Uma maravilhosa sequência de abertura

Na loooonga sequência de abertura, três bandidos tomam de assalto uma estação ferroviária bem pouco movimentada – e ficam à espera do trem que vai chegar. Não conversam entre si – são silenciosos, como boa parte dos personagens dos faroestes. Ficam ali esperando. São muito mal- encarados, sujos, suarentos, e vestem sobretudos compridos, estilosos,

Durante a longa espera, o espectador só ouve ruídos – as pás do moinho, uma mosca que fica pousando na cara de um dos bandidos, até que ele consegue capturá-la e prendê-la no cano do grande revólver que tem nas mãos.

Não conheço dois dos atores do trio – Jack Elam e Al Mulock. O terceiro é Woody Strode (1914-1994), o gigante, o Apolo de ébano que, no Spartacus de Stanley Kubric (1960), enfrenta o personagem-título interpretado por Kirk Douglas na luta de gladiadores no Coliseu romano. Aqui, ele aparece apenas nesta sequência de abertura – é, evidentemente, uma homenagem de Leone ao mestre John Ford, que dirigiu o ator em Audazes e Malditos/Sargeant Ruthledge (1960) e O Homem Que Matou o Facínora/The Man Who Shot Liberty Valance (1962).

Quando finalmente o trem chega àquela estação, desce dele um homem que toca uma gaita.

Fica o Harmonica lá de um lado dos trilhos do trem, e os três bandidos diante dele. O diálogo de pouquíssimas palavras entre ele e um dos três bandidos é um primor de síntese, uma absoluta maravilha.

Harmonica: – “E Frank?”

Snaky (Jack Elam): – “Frank nos mandou”.

Harmonica: – “Vocês trouxeram um cavalo para mim?”

Snaky: – “Bem… Parece que trouxemos um cavalo a menos”.

Estão visíveis três cavalos, um para cada bandido, nenhum para o visitante com quem Frank havia marcado o encontro.

Harmonica: – “Vocês trouxeram dois a mais.”

Os quatro sacam as armas. Harmonica mata os três.

A recém-casada mulher do fazendeiro se vê viúva

A segunda sequência do filme se passa nas terras do fazendeiro que depois saberemos se chamar Brett McBain. Diante da casa dele – uma casa grande, confortável -, estão armadas várias mesas, e uma adolescente feiosinha, Maureen, está arrumando pratos, talheres e copos. Prepara-se ali uma festa. Em um rápido diálogo com o pai, Maureen ouve dele que no futuro as coisas serão muito boas, e ela pergunta: – “Nós vamos ser ricos, papai?” Brett McBain diz que é possível, é bem possível. Em outro diálogo ali, fala-se que o fazendeiro perdeu a mulher havia vários anos.

Ele chama o filho mais velho, Patrick (Stefano Imparato), garotão de uns 17 anos, diz que ele está atrasado, dá um tapa na cara dele. Patrick está incumbido de ir buscar alguém na estação de trem, e pergunta ao pai como vai reconhecê-la. McBain diz que ela estará vestida de preto, com um chapéu de palha, e é uma dama.

Patrick não chega a sair com a carroça da família para ir buscar a dama na estação. Chegam ao lugar em que iria se realizar uma festa Frank e sua quadrilha – e eles matam toda a família McBain.

Frank deixa no local do massacre, bem visível, um objeto que todo mundo ali na região associa a Cheyenne, conhecido bandido. Cheyenne será o primeiro e único suspeito do massacre.

Veremos depois que Frank está trabalhando, naquele momento, para Mr. Morton (Gabriele Ferzetti), o dono da ferrovia que sai de Nova York e chega até Flagstone – a cidade fictícia, que, embora não seja dito, deve provavelmente ficar no Arizona. O sonho de Mr. Morton é prosseguir implantando trilhos de sua ferrovia rumo ao Oeste, sempre mais ao Oeste, até chegar ao Oceano Pacífico.

O rancho de Brett McBain fica uns 40 quilômetros a Oeste de Flagstone. Essa localização das terras do imigrante irlandês é absolutamente fundamental para a trama bolada pela trinca Dario Argento & Bernardo Bertolucci & Sergio Leone.

A terceira sequência do filme se passa na estação de Flagstone – uma estação movimentadíssima, bem ao contrário daquela que os três bandidos da quadrilha de Frank haviam tomado de assalto para esperar a chegada de Harmonica. Desce do trem uma mulher de vestido preto e chapéu de palha – seguramente a mulher mais bela que já havia pisado em qualquer estação de trem do Oeste.

Enquanto cai a ficha na cabeça do espectador de que aquela era a dama que Brett McBain aguardava com uma festa, Jill-Claudia Cardinale procura por alguém que tenha ido até a estação recebê-la – e não vê ninguém.

Já que ninguém foi recebê-la, Jill contrata o dono de uma carroça para levá-la até o rancho de Brett McBain. Quando ela diz o nome do rancho e de McBain para o cocheiro, um tal de Sam, uma figuraça (Paolo Stompa), o sujeito morre de rir. O nome é Sweetwater, água doce. Sam diz para ela algo assim: – Ah, McBain, aquele irlandês ruivo doido. Sweetwater, é? Ali não tem água alguma, é um danado de um deserto.

Quando Jill chega ao rancho Sweetwater, estão lá umas duas dezenas de vizinhos que McBain havia convidado para a festa da chegada de sua nova esposa. Estavam ali para os funerais de McBain e seus três filhos.

Há outro bom diálogo depois que Jill compreende que agora é uma viúva. Sam, o cocheiro, sugere que ela volte para Flagstone, de onde seguramente pegaria um trem de volta ao lugar de onde havia saído.

Jill dispensa o cocheiro, dizendo que aquela era sua casa.

Sozinha na casa da qual agora era a única ocupante, Jill abre todos os armários, todas as gavetas, tudo, absolutamente tudo na grande casa. Fica claro para o espectador que ela tinha certeza de que o homem com quem casara havia garantido a ela que possuía uma fortuna.

Jill não encontra nem ouro, nem um grande punhado de dólares em lugar algum. A única coisa que ela acha, além de roupas e objetos normais de uma casa, é uma coleção de maquetes de madeira, muitíssimo bem feitas, representando as edificações básicas de uma cidadezinha, como o prédio de uma estação de trem.

A heroína é uma puta. E o capitalista é aleijado

Credo em cruz! Me estendi demais da conta na narração dos fatos do início do filme. Não teria sentido narrar o que vem depois – as bases da história já estão dadas.

Antes de passar às doutas opiniões de quem entende do assunto, gostaria de fazer dois registros – uma sobre Jill, uma sobre Mr. Morton.

Ficamos sabendo que Jill era de Nova Orleans – havia viajado de Nova Orleans até ali aquele fim de mundo, fim da ferrovia, Flagstone, a cidade mais próxima do rancho do homem que ela havia conhecido e que a havia pedido em casamento.

Para quem já viu muitos filmes americanos, a menção a Nova Orleans leva direto a putaria. Trocentos e quarenta e nove filmes de Hollywood dizem que Nova Orleans, no passado, era o local dos mais finos puteiros do país. Pretty Baby (1978), do grande Louis Malle, com Brooke Shields como uma prostituta de 17 anos, passa-se em Nova Orleans. Os motoqueiros que se fantasiam de Capitão América e Billy the Kid em Easy Rider (1969) atravessam o país para gastar a grana que haviam ganhado vendendo uma grande quantidade de droga nos puteiros de Nova Orleans. O puteiro da canção trad “House of the Rising Sun” fica em Nova Orleans.

Na sequência em que o bandido Cheyenne aparece no rancho da solitária viúva Jill McBain, ele pede a ela que faça um café. E conta que sua mãe – uma puta, a mulher mais maravilhosa do mundo – fazia um café excelente.

No western de Sergio Leone em que não há heróis, a heroína é uma puta que se casou com um fazendeiro do Oeste que garantiu a ela ter uma fortuna.

Mr. Morton, o empreendedor, o homem de negócios ambicioso que sonhava em unir o Atlântico ao Pacífico cortando o país inteiro com sua ferrovia é, naturalmente, o mais digno representante do capitalismo no filme do realizador italiano. É um homem riquíssimo – mas sofre de uma doença terrível nos ossos, tem imensa dificuldade para se mover, sente dores pavorosas.

O capitalismo, segundo Sérgio Leone, é doente.

E há uma dolorosa ironia: o homem que sonha com o Oceano Pacífico, que tem em seu vagão escritório o quadro de um mar revolto, cheio de belíssimas ondas, acaba com a boca em um filete de água suja.

No papel do bandidaço, aquele ícone da decência

Eis parte do que diz o extraordinário livro de Ted Sennett, Great Hollywood Westerns, sobre Once Upon a Time in the West:

“Nos westerns italianos, a indiferença (nada importa) e um arrepiante desrespeito pela vida humana (nada é sagrado ou invulnerável) substituem o compromisso e a tenaz procura pela realização de um sonho. Essa atitude fica absolutamente evidente em uma sequência no início do western mais ambicioso e de maior orçamento de Sergio Leone, Once Upon a Time in the West. Enquanto um homem e seus jovens filhos se preparam para uma refeição ao ar livre, em um cenário de doce inocência, cinco desconhecidos surgem de repente e matam o homem e sua filha a sangue frio. Seu líder vem a ser aquele conhecido ícone da decência e da integridade, Henry Fonda. Um dos homens pergunta o que deveria ser feito com o filho, e menciona o nome (do personagem) de Fonda. O ator que representou Abraham Lincoln sorri para a criança, cospe fora o tabaco, e calmamente atira nela.

“Ao manter o tom deste surpreendente início, que deliberadamente vai contra as expectativas da audiência, Once Upon a Time in the West não apenas subverte a tradição dos westerns de Hollywood como o leva a extremos barrocos. A trama une dois temas básicos do western: vingança e o impacto das estradas de ferro. Um ambicioso magnata das ferrovias, decidido a estabelecer seu poder antes de morrer, emprega um pistoleiro de sangue frio chamado Frank (Fonda) e sua quadrilha para conseguir seus intentos. Opõem-se a ele um misterioso Homem com a Harmônica (Charles Bronson), cujo irmão (e aqui o livro faz danado de um spoiler que eu omito), um bandido grisalho chamado Cheyenne (Jason Robards) e a viúva (Claudia Cardinale) do homem morto a tiros na cena do início. Ao redor dessa história não incomum, Leone construiu um épico grandioso que impressiona e por várias vezes enfurece o espectador. Com a música de Ennio Morricone, Leone encenas sequências que combinam violência brutal com estranhamente belas paisagens panorâmicas (parte do filme foi rodada no Monument Valley) e enormes close-ups dos protagonistas. O resultado é um western delirante que recebeu um tratamento duro nos Estados Unidos em uma versão severamente truncada; mais tarde ele ganhou atenção respeitosa quando lançado em sua forma original.”

Uau! Me sinto na obrigação de afirmar que eu só li esse trecho do livro depois de escrever tudo o que está acima da transcrição. E fico contente, é claro, ao constatar que o grande Ted Sennett realça estes dois aspectos do filme sobre os quais falei lá no início – o uso de grandes tomadas gerais e ao mesmo de tempo de super big close-ups, e a convivência de cenas de violência e crueldade brutais com outras de imensa beleza.

No seu livro, Ted Sennett realça, corretissimamente, como é estranho ver Henry Fonda fazendo o papel do maior vilão da história, um bandido extremamente, mas extremamente cruel.

Sim, Henry Fonda é um ícone da decência e da integridade. Não apenas interpretou o estadista que aboliu a escravidão nos Estados Unidos em A Mocidade de Lincoln/Young Mr. Lincoln (1939), de John Ford, como também outros homens que são a personificação da decência e da integridade, como, só para dar dois exemplos, o Tom Joad de As Vinhas da Ira/The Grapes of Wrath (1940), também de John Ford, baseado no clássico de John Steinbeck, e o Jurado Número 8 de 12 Homens e uma Sentença/12 Angry Men (1957), de Sidney Lumet.

Mas é preciso registrar que Era Uma Vez no Oeste não foi o primeiro filme em que esse símbolo do Homem Bom interpretou um bandido. Em Vive-se uma só Vez/You Only Live Once (1937), de Fritz Lang, o personagem de Henry Fonda sai da prisão e até tenta a vida dentro da lei, mas não consegue por muito tempo, para desespero da mulher, interpretada por Sylvia Sidney.

“O western-spaghetti transformado em western-ópera”

Diz o livro 1001 Filmes Para Ver Antes de Morrer, editado por Steven Jay Schneider:

Era Uma Vez no Oeste é o primeiro filme de Leone a colocar a violência em um contexto verdadeiramente político, condenando o corrupto (e aleijado) magnata das ferrovias que deixa ‘dois brilhantes e pegajosos trilhos como uma lesma’ enquanto arrasa a paisagem, empregando bandidos para se livrar de colonos inconvenientes que não querem deixar suas terras com tanta facilidade. A civilização voraz conspurca as paisagens abertas enquanto Harmonica segue em sua jornada para perseguir o sádico que (epa! Spoiler feio!), a prostituta viúva Claudia Cardinale tenta realizar o sonho do falecido marido de criar uma verdadeira comunidade no Oeste e o bandido Jason Robards quer apenas ser deixado em um estado de abandono infantil que lhe é natural. Com marcantes composições que tiram proveito da tela panorâmica e tempo de duração épico, este é um autêntico western que ganha pontos pelo seu tamanho.”

O próprio Jean Tulard, e não um de seus vários colaboradores, escreveu o verbete sobre Il Était Une Foi Dans l’Ouest no seu Guide des Films: “Leone no auge da sua arte, o western-spaghetti transformado em western-ópera. O hieratismo das atitudes, a lentidão dos gestos, a música lancinante de Morricone, tudo cria um clima irrealista enquanto a história se revela definitivamente das mais clássicas do gênero. O encantamento começa desde a longa espera dos matadores na estação (as reações de Jack Elam, hilariante, com a mosca que fica o importunando sem parar), paródia de Le Train Sifflera Trois Fois (Ford e DeMille também são pastichados). (Le Train Sifflera Trois Fois é o título de Matar ou Morrer/High Noon na França.) Esse encantamento prossegue com o massacre da família McBain e a balada amorosa dos principais personagens em torno de Jill. O final evoca Peckinpah: o Oeste está morto. A estrada de ferro introduz a civilização: o caubói apaixonado pela liberdade dá lugar ao operário explorado.”

Meu Deus, que beleza de texto…

Depois do mestre Tulard eu deveria calar a boca e encerrar este comentário, mas sou incorrigível, não tem jeito. Quero acrescentar uma coisinha sobre o grande, o genial Ennio Morricone.

Por Malena (2000), de Giuseppe Tornatore, Ennio Morricone recebeu sua quinta indicação ao Oscar de melhor trilha sonora – e pela quinta vez perdeu. As outras quatro foram por Cinzas no Paraíso/Days of Heaven (1978), A Missão (1986), Os Intocáveis (1987), e Bugsy (1991).

As trilhas de Era uma Vez no Oeste e Era uma Vez na América (1984), o canto do cisne de Sergio Leone – duas excepcionais, extraordinárias obras-primas – sequer foram indicadas ao Oscar. Em 2007 o compositor ganhou uma estatueta honorária “por suas magníficas e multifacetadas contribuições à arte da música para filmes”. E em 2016, finalmente, ganhou o Oscar de melhor trilha sonora por Os Oito Odiados, de Quentin Tarantino.

Ô louco, meu…

O fato é que Era Uma Vez no Oeste é um filmaço.

Anotação em setembro de 2025]

Era Uma Vez no Oeste/C’era una Volta il West/Once Upon a Time in the West

De Sergio Leone, Itália-EUA, 1968.

Com Claudia Cardinale (Jill McBain),

Henry Fonda (Frank)

Jason Robards (Cheyenne),

Charles Bronson (Harmonica),

Gabriele Ferzetti (Mr. Morton, o dono da ferrovia), Frank Wolff (Brett McBain, o irlandês visionário), Paolo Stoppa (Sam, o cocheiro), Keenan Wynn (o xerife de Flagstone), Lionel Stander (o barman), Marco Zuanelli (Wobbles), Woody Strode (Stony, pistoleiro de Frank na estação), Jack Elam (Snaky, pistoleiro de Frank na estação), Al Mulock (Knuckles, pistoleiro de Frank na estação), Enzo Santaniello (Timmy, filho de Brett McBain), Simonetta Santaniello (Maureen, filha de Brett McBain), Stefano Imparato (Patrick, filho de Brett McBain),

Roteiro Sergio Donati & Sergio Leone

Baseado em história de Dario Argento & Bernardo Bertolucci & Sergio Leone

Diálogos Mickey Knox

Fotografia Tonino Delli Colli

Música Ennio Morricone

Montagem Nino Baragli

Diretor de arte Carlo Simi

Figurinos Carlo Simi, Antonella Pompei

Produção Fúlvio Morsella, Rafran Cinematografica, San Marco, Paramount Pictures.

Cor, 166 min (2h46)

R, ****

Título em Portugal: “Aconteceu no Oeste”. Na França: “Il Était Une Fois Dans l’Ouest”.

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