(Disponível no YouTube em 11/2024.)
Catorze anos antes de Federico Fellini brindar o mundo com sua maravilhosa fantasia sobre um cineasta em crise existencial e criativa, que se retira do estúdio e mergulha em suas memorias e delírios, e exatos 30 anos antes de Bob Fosse, um felliniano de carteirinha, nos dar aquele filme genial sobre um coreógrafo e cineasta absolutamente perfeccionista com problema cardíaco grave que está sempre achando um detalhe que pode melhorar seu filme na sala de montagem…
… Douglas Sirk fez uma comedinha romântica e musical sobre um diretor de Hollywood que irrita todos os profissionais a seu redor com seu perfeccionismo – e nunca consegue concluir seu filme.
Me diverti muito ao ver Slightly French, no Brasil Era Somente Amor, que Douglas Sirk cometeu em 1949 – e também ao ficar pensando sobre essa proximidade entre os três filmes. O fato de ser uma história sobre um diretor de cinema atormentado que tem dificuldades para concluir seu filme, no entanto, é o único ponto que Era Somente Amor tem em comum com 8 1/2 (1963) e All That Jazz (1979). Esses dois são filmaços, obras-primas, entre os melhores que já foram feitos neste cerca de 130 anos de História do Cinema.
O filme de Sirk é, repito, uma comedinha romântica e musical. Assim, no diminutivo. Não pretende ser – e definitivamente não é – nada mais que um divertissement. Uma obra escapista do cinema comercial de Hollywood, diriam os críticos marxistas. (E houve época em que 110% dos críticos de cinema eram ou se diziam marxistas – ou então não seriam críticos de cinema.) Euzinho, que não sou marxista e muito menos crítico de cinema, digo que Era Somente Amor é uma deliciosa bobagem. Bobagem, sim, sem dúvida. Mas deliciosa.
Até porque tem Dorothy Lamour.
As pessoas não suportam mais o diretor perfeccionista
O diretor perfeccionista, um dos dois protagonistas da trama, se chama John Gayle, e é o papel de Don Ameche (1908-1993), o simpático galã de tantas e tantas comédias dos anos 1930 a 1940, 95 títulos na filmografia, atuante até o fim da vida.
Veremos que John Gayle é um diretor experiente, conhecido, que já havia feito filmes premiados com Oscar e portanto havia dado respeitabilidade e dinheiro ao estúdio de propriedade de um magnata chamado J.B. J.B. não aparece em momento algum na tela – nós apenas ouvimos sua voz (a voz do ator William Bishop), em diversas conversas ao interfone com Douglas Hyde (Willard Parker), um dos produtores da companhia.
Sim, já havia dado respeitabilidade e dinheiro ao estúdio – mas agora ninguém mais o suportava. Todo mundo no estúdio reclamava dele, por sua postura sempre exigente demais, seu modo duro, bruto de tratar a todos, sua incessante demanda por mais e mais repetições de cada tomada.
Ahnn… Há algo a ser corrigido aí. O correto é dizer que praticamente ninguém mais suportava John Gayle, o diretor mandão, chato, incansável. Porque uma pessoa ainda o defendia no estúdio – exatamente Douglas Hyde, o produtor de seus filmes, amigo de infância de Gayle.
Mas ele era a única exceção.
Yvonne La Tour (o papel de Adele Jergens), a atriz principal do filme que John Gayle está rodando, simplesmente não suportava o cara.
Yvonne La Tour-Adele Jergens é a primeira coisa que o espectador de Era Somente Amor/Slightly French vê, logo após os créditos iniciais – bem rápidos, como era o costume na época. E é uma bela, muito bela abertura. O espectador ainda não sabe, mas o que ele está vendo é o que está sendo filmado pelo diretor John Gayle – uma sequência do filme Ten Days in Paris. Uma bela, atraente loura está encostada na parede de um arco, fumando; é noite; sobre ela há uma grande luminária de rua. A câmara, que a focalizava bem de perto, em plano americano, faz um suave zoom para trás – e vemos que o vestido escuro da loura tem uma ampla fenda, e a coxa esquerda da moça está bem à vista.
Chega um homem com boné, camiseta listrada justa – e os dois começam a dançar. Surge outro homem usando roupa idêntica à do primeiro, entra na dança. Aparece um terceiro. Chegam várias mulheres vestidas de negro, roupas idênticas – uma sequência de dança.
E, diacho, uma sequência de dança moderna, ousada – extremamente moderno e ousada para 1949.
Se o espectador somar 1 + 1, o resultado será que aquela sequência é uma maneira estilizada, fantasiosa, de mostrar um grupo de putas e marinheiros. Era uma associação que se fazia com muita frequência, putas e marinheiros.
A sequência é muito, muito bonita, impactante mesmo – os créditos iniciais haviam anunciado, em letrinha bem pequena, que o coreógrafo é Robert Sidney. Três quartos de séculos depois do lançamento de Slightly French, este assistidor de filmes aqui tira o chapéu: a coreografia nesta sequência de abertura, e em várias outras que virão depois, é impressionante. Mary comentou que a coreografia faz lembrar as que Bob Fosse viria a criar mais tarde.
Só depois de várias tomadas daquele belo balé é que vemos uma câmara em um daqueles guindastes de estúdios – e então compreendemos que aquilo que estávamos vendo é um filme que está sendo rodado.
– “Corta, corta!”, grita o diretor-ditador John Gayle. Ele se aproxima da atriz Yvonne La Tour e começa a passar um sermão nela, no meio do estúdio.
Yvonne La Tour não se contém, e responde ao diretor-ditador com um punhado grande de ofensas duras.
Gayle manda refazer toda a sequência.
Yvonne La Tour cai dura no chão. Exaustão total.
No meio da tarde, todo o trabalho daquela filmagem é interrompido. Gayle sai do estúdio bem mais cedo do que o normal, e é recebido diante do portão principal por uma mulher que dirige um conversível.
Vão conversando. A mulher – vemos que ela se chama Louisa (o papel de Janis Carter) – sugere que os dois parem em uma espécie de uma gigantesca feira/parque de diversões no caminho, para comer alguma coisa.
Estamos aí com apenas 6 minutos do filme que é bem curtinho, apenas 81 minutos.
Vai aparecer, então, a protagonista feminina da história.
Uma cantora que se passa por brasileira, chinesa, francesa…
Não há, no Brasil, pelo menos que eu saiba, nada como aquele tipo de feira/parque de diversões que é tão comum nos filmes americanos.
Não são coisas perenes, fixadas a um local, como os parques de diversão que conhecemos aqui. Instalam-se num local, ficam ali durante algum tempo – como um circo –, e depois se mudam. É como se umas 30 Caravanas Rolidei se reunissem de tempos em tempos em um lugar – e ali se instalassem também elementos típicos de parque de diversões, tipo roda-gigante, trem-fantasma, barraca de tiro ao alvo, etc, etc, etc…
John Gayle e essa Louisa que ainda não sabemos quem é passam por um stand em que se apresenta para a multidão, chamando para o show lá dentro do teatro-tenda… uma moça que imita Carmen Miranda, com um chapéu cheio de frutas! – “Aproximem-se todos, venham ver as belezas do Brasil!”
Mais adiante, há uma moça convocando o respeitável público para comprar entradas para ver o show das moças chinesas.
E um pouco mais adiante, uma moça fazendo exatamente a mesma coisa para uma apresentação de artistas franceses.
John Gayle saca que se trata de uma mesma artista que se faz passar por brasileira, por chinesa, por francesa.
E surge na cabeça dele a idéia: se essa moça sabe se passar por brasileira, chinesa e francesa, saberá perfeitamente substituir Yvonne La Tour no filme que ele, Gayle, está filmando. Muito do que já havia sido rodado poderia ser aproveitado; o estúdio economizaria, a pele do seu amigo Douglas Hyde seria salva – e a dele também.
Gayle vai, então, se encontrar com a moça que conseguia trabalhar tanto assim – e diz que poderá fazer dela uma estrela do cinema. Basta que ela seja treinada para parecer de fato uma francesa, e treinada para parecer uma moça fina, e treinada para atuar…
A moça, Mary O’Leary, nova-iorquina de bairro pobre, filha de um sujeito muito chegado a uma bebida, descendente de irlandeses, topa, é claro.
Gayle a leva para sua casa, para ela se submeter a um curso intensivo de um bilhão de coisas. De cara Mary se sente atraída pelo sujeito. Ao chegar à imensa mansão dele, se-deslumbra-se toda-se. Mas se assusta quando aparece Louise – diacho, o cara é casado! Louise é Gayle, sim, mas não porque é a mulher de John, mas por ser a irmã dele.
Quando estamos ali por uns 22 minutos do filme, Mary está absolutamente apaixonada por John.
Ele precisa treiná-la para que ela pareça francesa, para ser aceita por Douglas Hyde como a substituta de Yvonne Latour.
E Hyde tem que convencer o patrão, J.B., a aceitar a nova atriz – e Gayle.
Hyde bate o olho na moça, que agora tem o nome afrancesado de Rochelle Olivia, e se apaixona por ela.
Um produtor que amava a atriz falsamente francesa que amava de paixão o diretor que só amava a si mesmo cuja irmã amava o produtor…
Vixe Maria Mãe de Deus! É muito boba a história criada por Herbert Fields e roteirizada por Karen DeWolf!
Pois é. Mas a direção é de Douglas Sirk, a fotografia é excepcional, as sequências de dança são extraordinárias, é um prazer ver Don Ameche. E essa fantástica Mary O’Donnel que vira Rochelle Olivia vem na pele de Dorothy Lamour!
Uma bela atriz que não teve o brilho que merecia
Como o título original do filme, Dorothy Lamour é “slightly French”, levemente francesa. Descende de franceses, irlandeses e espanhóis. E nasceu na cidade mais francesa dos Estados Unidos, New Orleans, em 1914. Segundo o IMDb, Mary Leta Dorothy Slaton escolheu o sobrenome artístico por causa do padrasto, que era Lamour. Teria sido sem querer, então, que passou a ter O Amor como nome.
Para mim, o nome Dorothy Lamour é um charme absoluto. Não só para mim: creio que de fato parte do charme da atriz vem do nome sonoro e evocativo. Em seu primeiro disco solo, O Romance do Pavão Mysteriozo, de 1974, o cearense Ednardo gravou “Dorothy Lamour”, feita por Petrucio Maia e Fausto Nilo: “Dorothy Lamour / Com amor te matei / Sereia na areia do cinema. / Dorothy Lamour / Com ardor te adorei / O drama da primeira fila / Adorei o drama / O teu sabor azul / Estranho como a primeira / A primeira Coca-Cola / Era miragem / Fantasia de um mundo blues / E eu fui chorar / Na areia, Dorothy Lamour”.
Dorothy estudou secretariado – consta que era uma excelente datilógrafa, algo um tanto raro entre as mulheres das primeiras décadas do século XX. Aos 17 anos, em 1931. foi eleita Miss Nova Orleans e, precoce, já se apresentava como vocalista da orquestra de Herbie Kay, com quem se casaria em 1935. Foi um casamento curto – terminou em 1939.
Cantava em um nightclub bem popular no Greenwich Village de Nova York quando foi vista pelo ator e comediante Bob Hope – e em 1936 fez seu primeiro longa-metragem, Princesa da Selva. Para a personagem-título, Ulah, uma jovem criada no meio dos animais numa floresta da Malásia, a célebre Edith Head criou um sarongue que permitisse a visão das coxas da atriz. O sarongue virou sua marca registrada.
A estréia prometia: nos cartazes de The Jungle Princess, o nome da novata aparecia acima do já famoso Ray Milland. Mas, apesar da beleza – ou talvez exatamente por causa dela -, Dorothy Lamour não teve uma carreira fabulosa. Diz o livro Actors and Actresses, editado por James Vinson:
“Dorothy Lamour foi uma importante figura da Paramount Pictures durante os anos 1940, aparecendo em oito filmes entre os que deram mais dinheiro ao estúdio em seus respectivos anos. Surpreendentemente, ela nunca conseguiu ser uma estrela maior, servindo sempre para ajudar o brilho de astros mais famosos, especialmente Bob Hope e Bing Crosby. Os cinco filmes ‘Road’ dos anos 40 que fez com Hope e Crosby (…) contribuíram com milhões para os cofres da Paramount, mas nunca alteraram sua imagem inicial de uma bela mulher enrolada em um sarongue.”
Os filmes “Road” a que o livro se refere são Road to Singapore (1940), Road to Zanzibar (1941), Road to Marocco (1942), Road to Utopia (1945) e Road to Rio (1947) – no Brasil, respectivamente A Sereia das Ilhas, A Tentação de Zanzibar, A Sedução de Marrocos, Dois Malandros e uma Garota e A Caminho do Rio.
Segundo Maltin, é um musical “sassy”: animado e ousado
Cantora desde bem cedo, neste Era Somente Amor Dorothy Lamour canta quatro canções. Uma delas – apresentada já em alguns acordes durante os créditos iniciais – é o standard “Let’s Fall in Love”, de Harold Arlen-Ted Koehler, que foi gravada por, entre muitos outros, Nat King Cole, Ella Fitzgerald, Frank Sinatra, Louis Armstrong, Diana Krall.
Let’s Fall in Love foi o título do filme de 1933 em que este Era Somente Amor/Slightly French aqui se baseia. No Brasil, o original se chamou É Hora de Amor. Ao refilmar a história criada por Herbert Fields, o roteiro de Karen DeWolf apenas alterou a nacionalidade da estrela que precisava ser substituída. No original, a personagem central – interpretada por Ann Sothern – tem que fingir que é sueca, como a estrela do filme que estava sendo feito pelo diretor interpretado por Edmund Lowe. O diretor foi David Burton.
Leonard Maltin deu 2.5 estrelas 4 para esta refilmagem da história, e gastou uma única linha com ela: “Musical sassy sobre diretor artista e trapaceiro Ameche fazendo Lamour se passar por uma estrela francesa”. “Sassy”, palavra de que eu não me lembrava, é, segundo o Dictionary of English Language and Culture, é “lively and bold”, animado e ousado, audacioso, corajoso. Lá isso é bem verdade: o filme é isso aí mesmo.
Um último registro: esta comédia romântica musical veio, na filmografia de Douglas Sirk (1897-1987), o diretor que foi reconhecido e admirado como o rei do melodrama, depois do noir Emboscada/Lured (1947) e antes do policial Agonia de uma Vida/Thunder on the Hill (1951).
Anotação em novembro de 2024
Era Somente Amor/Slightly French
De Douglas Sirk, EUA, 1949
Com Dorothy Lamour (Mary O’Leary/Rochelle Olivia),
Don Ameche (John Gayle),
Janis Carter (Louisa Gayle, a irmã de John), Willard Parker (Douglas Hyde, o produtor), Adele Jergens (Yvonne La Tour, a atriz original do filme), Jeanne Manet (Nicolette, a professora), William Bishop (a voz de J.B., o chefão do estúdio), Frank Ferguson (Marty Freeman), Myron Healey (Stevens), Leonard Carey (Wilson)
Roteiro Karen DeWolf
Baseado em história de Herbert Fields
Fotografia Charles Lawton Jr.
Música George Duning
Direção musical Morris Stoloff
Montagem Al Clark
Direção de arte Carl Anderson
Coreografia Robert Sidney
Figurinos Jean Louis
Produção Irving Starr, Columbia Pictures.
P&B, 81 min (1h21)
**1/2
Título em Portugal: “Francesa Feita à Pressa”.