Conclave

4.0 out of 5.0 stars

(Disponível no Amazon Prime Video em 3/2025.)

Conclave é um filmaço, uma beleza, uma maravilha. As interpretações são primorosas, os diálogos são acachapantemente marcantes, impressionantes – e que trama, meu Deus! Conclave consegue transformar aquele milenar e absolutamente secreto ritual de escolha de um novo papa em um thriller, uma excitante narrativa de história policial – com todo o respeito.

Sim, com todo o respeito – e isso me pareceu uma das características mais fantásticas da caprichada e premiada co-produção Reino Unido-EUA. Não houve acordo para que sequer algumas partes do filme fossem rodadas dentro do Vaticano, onde se passa praticamente toda a ação. Tudo teve que ser recriado nos históricos estúdios de Cinecittà, na periferia de Roma, a uns tantos quilômetros da Praça São Pedro e da Capela Sistina, onde todos os cardeais da Igreja Católica Apostólica Romana há séculos se reúnem para eleger um novo Sumo Pontífice.

Sim, há – ali na Capela Sistina da história fictícia criada pelo imaginativo escritor britânico Robert Harris, no ambiente fechado, lacrado, para que o colégio de cardeais possa decidir sem influência do mundo externo – manobras, jogos políticos, mentiras, traições, ambição, corrupção, até mesmo um escândalo sexual. Mas Conclave nem de muito longe ofende a religião católica, o cristianismo como um todo.

Só pessoas cegas por fanatismo podem enxergar neste filme ofensas à religião, a Cristo, a Deus.

Conclave é um filme pesado, denso, sério. Um drama para platéias adultas – esse tipo de coisa que não costuma levar multidões às salas de cinema, mas que enche a alma de quem admira essa beleza de arte que a humanidade inventou cerca de 130 anos atrás.

Há a clara divisão entre os progressistas e os conservadores

Cerca de 130 anos atrás…

Quando os irmãos Louis e Auguste Lumière exibiram para a primeira platéia pagante o curtíssima metragem A Saída dos Operários da Fábrica Lumière, no Grand Café do Boulevard des Capucines, em Paris, em 28 de dezembro de 1895, o bispo de Roma, o Sumo Pontífice, o líder espiritual de milhões de católicos do mundo inteiro era Leão XIII. Depois dele vieram dez papas – e é bastante estranho pensar que, poucas semanas após a estréia de Conclave no Brasil, em 23 de janeiro de 2025, o décimo papa após Leão XIII, o jesuíta argentino Jorge Mario Bergoglio, papa Francisco, ficaria hospitalizado por 38 dias. Ele ainda estava internado, com grave pneumonia, quando Mary e eu vimos o filme.

Ao longo destes últimos 130 anos, a Igreja Católica se viu dividida entre uma tendência conservadora e outra progressista. Só para lembrar uma transição marcante, fundamental: depois de um período conservador, sob Pio XII (1939 a 1958), a Santa Madre passou por uma quase revolução sob João XXIII (1958 a 1963). Ele convocou, para surpresa de muitos, o Concílio Vaticano II, para uma tentativa de renovação das ações da Igreja e uma adaptação do relacionamento dos religiosos com o mundo moderno.

Sob a influência das mudanças trazidas por João XXIII, parte da Igreja adotou o que foi chamado de Teologia da Libertação – que teve amplo apoio nos países da América Latina nos anos 60. A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) foi uma das instituições que ousaram enfrentar a ditadura militar iniciada em 1964 – apesar de estar, ela mesma, dividida entre moderados e progressistas.

A divisão entre conservadores e progressistas no seio da Igreja Católica é o ponto fundamental da trama criada por Robert Harris em seu romance lançado em 2016.

O papa que acabou de morrer quando o filme começa era um progressista, assim como o decano do colégio de cardeais, Lawrence (o papel de um Ralph Fiennes em interpretação extraordinária, fantástica) e também o cardeal Bellini (Stanley Tucci, igualmente maravilhoso).

Ao cardeal Lawrence cabe organizar o conclave. A tarefa de dirigir cada passo da reunião de todos os cardeais que escolherá o sucessor do falecido no trono de Pedro é pesadíssima, duríssima.

O filme mostra que ali não há um santo

Para sair da chaminé sobre o Vaticano a fumacinha branca do “habemus papam”, é necessária uma maioria sólida, e por isso há em geral vários escrutínios. O cardeal Bellini parece, no início da narrativa, ter boas chances de ser o escolhido ao final das sucessivas votações – mas ele terá três concorrentes poderosos.

Tremblay (John Lithgow) é ambicioso, desassombrado. Adeyemi, da Nigéria, tem o apelo de poder se tornar o primeiro papa vindo da África. Mas o grande perigo é o italiano Tedesco (o papel de Sergio Castellitto). Tedesco (que ironia um italiano chamado Alemão…) não é apenas conservador. É violenta, virulentamente reacionário. Não apenas quer a volta das missas em Latim, como ocorria desde Pedro, mais de 2 mil anos atrás, até o Concílio Vaticano II – quer uma guerra santa para exterminar os muçulmanos da Itália, da Europa, se possível do planeta.

Conclave mostra que ali na alta cúpula da Igreja Católica, ali entre os candidatos a novo Sumo Pontífice, não há santos. Todos esses que têm chances de ser eleitos, falados logo acima, têm seus defeitos, maiores ou menores. A única figura que o filme mostra de forma inapelavelmente negativa é esse Tedesco.

– “Eu não quero ver Tedesco como papa”, diz o cardeal Lawrence para o cardeal Benitez (o papel de Carlos Diehz). “Ele levaria a Igreja de volta para uma era lá do passado.”

Bem no início do conclave, todos os cardeais do mundo juntos na Capela Sistina, sob o afresco pintado há 500 anos por Michelangelo Buonarroti, o cardeal Lawrence dirige a seus pares uma fala impressionante:

– “Nossa fé é algo vivo precisamente porque ela anda de mãos dadas com a dúvida. Se houvesse apenas certeza e nenhuma dúvida, não haveria mistério algum. E, assim, nenhuma necessidade de fé. Oremos para que Deus nos conceda um papa que duvide. E que ele nos conceda um papa que peque e peça perdão e vá em frente.”

Por falas como essa, por suas atitudes firmes mas ponderadas, o cardeal Lawrence acaba recebendo alguns votos no primeiro escrutínio, dividindo a votação da ala progressista. O que leva o cardeal Bellini a criticá-lo duramente, a dizer que ele tem, sim, a ambição de ser papa – algo que Lawrence havia negado com o que o espectador entende como absoluta franqueza, total honestidade.

Bem no início da narrativa, em conversa com Bellini, Lawrence já havia dito que tinha tido uma crise de fé – não em Deus, mas na Igreja. E, em um diálogo importantíssimo, ele pede ao cardeal Benitez que não vote mais nele, e convença seus amigos a fazer o mesmo.

– “Você gentilmente me disse que havia votado em mim”, diz ele para o mexicano. “Não sei se você fez isso novamente, mas, se fez, então eu tenho que pedir que não o faça mais.”

E, à pergunta de Benitez de por quê, Lawrence responde:

– “Bem, em primeiro lugar, eu não tenho a profundidade espiritual para ser papa. Em segundo lugar, eu não ganharia, de forma alguma. Um conclave longo, prolongado, seria visto pela imprensa como prova de que a Igreja está em crise.”

Toda a sequência, todo o diálogo, tudo é extraordinário. Benitez então pergunta se o outro está pedindo para ele votar em Tremblay.

Lawrence: – “Sim, e que peça a seus apoiadores que façam o mesmo.”

Benitez: – “O cardeal Tremblay já me falou sobre isso.”

Lawrence: – “Tenho certeza disso.”

Benitez: – “Você quer que eu vote em um homem que você vê como ambicioso?”

E é então que Lawrence explica: – “Eu não quero ver Tedesco como papa; Ele levaria a Igreja de volta para uma era lá do passado.”

Esse cardeal Benitez demora um tanto para surgir na trama e na tela – ele só aparece depois que o espectador já teve contato com os cardeais Lawrence, Bellini, Tremblay, Adeyemi e Tedesco. É uma surpresa para todos eles: não havia sido anunciada a nomeação, feita pelo Santo Padre que acabara de morrer, daquele religioso nascido no México, que havia passado por áreas conflagradas na África, como Ruanda, e recentemente estava em Cabul, Afeganistão. O local em que Benitez desempenhava suas funções era o motivo pelo qual o papa havia tido o cuidado de não divulgar sua elevação de bispo a cardeal – para protegê-lo, para evitar que fosse perseguido e morto pelos radicais do taliban.

O cardeal Benitez demora a aparecer – mas seu personagem passa então a ter grande importância na trama.

Reviravoltas, surpresas – uma delas incrível, impensável

Como em um thriller policial, de mistério, há surpresas, reviravoltas. Logo se comprova que a ambição de Tremblay não tem limites, e que essa ambição o fez cometer atos absurdos, impensáveis, inadmissíveis.

O cinema é imagem em movimento, mas, diacho, é também palavras, como as artes narrativas que vieram antes dele, a literatura e o teatro – e, cacete, como é brilhante o texto que o escritor Robert Harris e o roteirista Peter Straughan puseram na boca desses personagens muitíssimo bem construídos, interpretados por grandes atores em um momento especial de suas carreiras.

O cardeal Lawrence obtém provas – de uma maneira não convencional, talvez até reprovável – dos atos criminosos de Tremblay e pretende exibi-las ao colégio de cardeais. Conversa sobre isso com Bellini, que, segundo ele, seria o beneficiário da decisão. O diálogo é impressionante:

Bellini (na foto acima, Stanley Tucci): – “Eu não poderia me tornar papa nestas circunstâncias. Um documento roubado, a difamação de um irmão cardeal. Eu seria o Richard Nixon dos papas.”

Lawrence: – “Então fique fora disso, deixe para mim. Eu enfrento as consequências.”

Bellini: – “Sabe quem mais vai se beneficiar disso? Tedesco. A base de sua candidatura é que o Santo Padre levou a Igreja para o desastre com suas tentativas de reforma. Se você revelar esse relatório, não será a reputação de Tremblay que ficará sacrificada, é a Igreja. Acusar a Cúria de corrupção institucional…”

Lawrence: – “Eu achava que nós estávamos aqui para servir a Deus, não à Cúria.”

Ah, meu, que coisa espetacular!

Como em um thriller policial, de mistério, há novas surpresas, reviravoltas no final da história – e uma delas é absolutamente, mas absolutamente inesperada. Tão inesperada quanto sensacional, de aplaudir de pé como na ópera – mas não pelos católicos ou demais cristãos que sejam reacionários como o cardeal Tedesco.

Não sei se o papa Francisco terá visto Conclave – mas seria capaz de apostar que, se visse, gostaria muito, assim como disse que gostou de Dois Papas (2019), aquela outra obra-prima, dirigida por Fernando Meirelles, com Anthony Hopkins como o papa Bento XVII e Jonathan Pryce como o papa Francisco.

Um escritor de livros de tramas impressionantes

O autor dessa fantástica trama, Robert Dennis Harris, não é um jovenzinho. Nasceu em 1957, em Nottingham, e começou a escrever ainda adolescente – enquanto fazia o secundário, escreveu peças de teatro e foi escolhido como editor da revista de sua escola. Estudou Literatura Inglesa em Cambridge e foi editor do Varsity, o mais antigo jornal feito por estudantes daquela universidade.

Depois de formado, começou a carreira de jornalista logo na BBC; com apenas 30 anos de idade, em 1987, virou o editor de política do The Observer e, mais tarde, foi colunista do Sunday Times e do Daily Telegraph. Seus primeiros livros, de não-ficção, foram trabalhos de jornalista..

Ao passar da realidade para a ficção, Harris escolheu um ponto de partida ao mesmo tempo apavorante, insano e desafiador: Hitler havia vencido a Segunda Guerra Mundial. A ação se passa na fictícia Alemanha nazista dos anos 1960, em guerra contra a União Soviética e recorrendo à ajuda dos Estados Unidos. Fatherland, esse seu primeiro romance, foi lançado em 1992 – e virou best-seller. Em 1994, a HBO filmou a história; aqui, chamou-se A Nação do Medo.

O segundo romance, Enigma, de 1995, também virou filme, em 1991, com direção de Michael Apted e Kate Winslet no elenco.

The Ghost Writer, de 2010, também foi filmado – lançado no Brasil como O Escritor Fantasma, teve roteiro do próprio Harris e do sujeito que quis dirigir o filme, ninguém menos que Roman Polanski. O grande cineasta e o escritor repetiram a dobradinha em J’Accuse, no Brasil O Oficial e o Espião, de 2019, baseado no romance An Officer and a Spy, lançado naquele mesmo ano, sobre o caso do capitão Alfred Dreyfuss, injustamente acusado de traição à França no final do século XIX.

Um total de 325 indicações a prêmios

O diretor de Conclave, Edward Berger, alemão da classe 1970, vinha do sucesso extraordinário da refilmagem do romance de Erich Maria Remarque de 1928, Nada de Novo no Front, 89 indicações e 60 prêmios, inclusive quatro Oscars. E conseguiu mais um grande sucesso de público e crítica: Conclave amealhou 315 indicações e 86 prêmios.

Foi o grande vencedor do Bafta, com 12 indicações e 4 vitórias, nas categorias de melhor filme, melhor filme britânico, melhor roteiro adaptado para Peter Straughan e melhor montagem para Nick Emerson.

Ao Oscar, foram oito indicações, inclusive nas categorias de melhor filme, melhor ator para Ralph Fiennes e melhor atriz coadjuvante para Isabella Rossellini. Levou o prêmio de melhor roteiro adaptado. (Isabella Rossellini interpreta a irmã Agnes, que tem importância na trama; é ela que fortalece a denúncia do cardeal Lawrence sobre os abusos de Tremblay.)

No site agregador de opiniões Rotten Tomatoes, o filme estava, em março de 2025, com aprovação de 93% entre os críticos e de 86% entre os leitores. O “consenso da crítica”, segundo o site, é o seguinte: “Levando adiante o encantamento popular pela figura papal com execução imaculada e trabalho de destaque na carreira de Ralph Fiennes, Conclave é uma dádiva divina para o público que anseia por entretenimento inteligente”. Dos leitores, o Rotten Tomatoes destacou esta definição: “Conclave é um drama papal instigante que proporciona suspense de deixar qualquer um emocionado, com um venerável Ralph Fiennes”.

Concordo, assino embaixo. Conclave é um filmaço, uma obra-prima.

Anotação em março de 2025

Conclave

De Edward Berger, Reino Unido-EUA, 2024.

Com Ralph Fiennes (Lawrence, o cardeal decano),

Stanley Tucci (Bellini, o cardeal progressista),

John Lithgow (Tremblay, o cardeal ambicioso),

Carlos Diehz (Benitez, o cardeal mexicano de Cabul), Jacek Koman (Wozniak, um dos últimos a ver o papa em vida), Lucian Msamati (Adeyemi, o cardeal da Nigéria), Sergio Castellitto (Tedesco, o cardeal ultraconservador), Isabella Rossellini (irmã Agnes), Bruno Novelli (o papa morto), Thomas Loibl (Mandorff), Brían F. O’Byrne (O’Malley), Rony Kramer (Mendoza), Valerio Da Silva (padre Haas), Joseph Mydell (Nakitanda), Vincenzo Failla (Guttoso), Garrick Hagon (Krasinski), Merab Ninidze (Sabbadin), Madhav Sharma (Landolfi), Loris Loddi (Villanueva). Roberto Citran (Lombardi)

Roteiro Peter Straughan

Baseado no livro de Robert Harris

Fotografia Stéphane Fontaine

Música Volker Bertelmann

Montagem Nick Emerson       

Casting Nina Gold , Martin Ware      

Desenho de produção Suzie Davies  

Direção de arte Carlo Aloisio, Roberta Federico

Figurinos Lisy Christl

Produção Alice Dawson, Robert Harris, Juliette Howell, Michael Jackman, Indian Paintbrush, Access Entertainment, FilmNation Entertainment, House Productions

Cor, 120 min (2h)

****

2 Comentários para “Conclave”

  1. Isabella foi ao Oscar de veludo azul, usando brincos que a mãe usou em um filme dirigido por seu pai – e que também usou ao ganhar o Oscar por “Assassinato no Expresso do Oriente”.
    A Academia deveria entregar um Oscar para ela todo ano, só por ela existir.

  2. Senhorita, você é fantástica. Você é hors-concours. Você é como Deus: “Si tu n’existait pas, il faudrait t’inventer”. Quem é que dizia isso mesmo? Voltaire? E será que acertei a grafia?
    Um abraço, caríssima!
    Sérgio

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