A Viagem Proibida / Il Viaggio

3.5 out of 5.0 stars

(Disponível no YouTube em 9/2024.)

Il Viaggio, que os distribuidores brasileiros tentaram apimentar com o título A Viagem Proibida, é um romance à moda antiga. Não é que o filme de Vittorio De Sica, de 1974 – o último dos 15 em que ele trabalhou com Sophia Loren, o último que ele dirigiu – tenha envelhecido neste meio século. Não. Ele já foi feito como um romance à moda antiga.

Os créditos iniciais informam que o filme é “livremente inspirado em um romance de Luigi Pirandello” – e isso é interessante, porque Luigi Pirandello (1867-1936) é conhecido como um escritor de histórias engraçadas, irônicas, satíricas. E a história dos sicilianos Adriana De Mauro e Cesare Braggi – os papéis de Sophia e Richard Burton – não tem absolutamente nada de engraçado, irônico, satírico. É uma história triste do começo ao fim, algo que mais seria de se esperar dos escritores do período romântico, ali entre 1800 e 1850, em que os amantes sofrem demais, demais, demais, e adoecem de tanto sofrer.

Há outra aparente estranheza, quase uma incongruência: Vittorio De Sica, um dos nomes fundamentais do neo-realismo italiano, simpatizante do PCI, o partido comunismo que foi o mais forte do Ocidente, sempre se caracterizou por fazer filmes sobre os pobres, os operários, os sem-teto, os humilhados e ofendidos – e Il Viaggio focaliza o oposto, os muitíssimo ricos, os milionários, a opulência absoluta.

(Escrevi aparente estranheza porque, naturalmente, De Sica também abordou os ricos em sua excelsa, augusta filmografia. Estão aí para comprovar isso os belíssimos O Jardim dos Finzi-Contini, de 1971, e O Condenado de Altona, de 1962 – este também com Sophia Loren. Como trabalharam juntos esses dois italianos, meu! Que maravilha isso.)

Poderia parecer também estranho que um ator anglo-saxão tivesse sido escolhido para interpretar um milionário da Sicília. Mas, bah, estrangeiro fazer papel de italiano em filmes italianos é a coisa mais comum do mundo. Burt Lancaster, Anthony Quinn, Montgomery Cliff, Alain Delon, Jean-Louis Trintignant, Dirk Bogarde, Farley Granger, Broderick Crawford interpretaram italianos, em filmes dirigidos por Luchino Visconti, Federico Fellini, Dino Risi, Valerio Zurlini…

A viagem do título só acontece perto do fim

Il Viaggio, Le Voyage, The Voyage, A Viagem Proibida de que falam os títulos do filme na Itália, França, EUA e Brasil só acontece quando o filme já se aproxima do fim. Mas o tema da história, a questão central, o cerne, o fulcro, isso é mostrado bem no início – e é fantástico, fascinante, porque tudo é absolutamente explicitado, mas não é dito em palavras.

O filme abre com a cerimônia da leitura do testamento de Don Braggi, o homem mais rico daquela pequena cidade do interior da Sicília cujo nome não é dito. Diversas pessoas se reúnem em um dos grandes salões da imensa mansão da família para ouvir a leitura do testamento, a ser feita pelo advogado, Don Liborio (Daniele Vargas). Estão ali os dois únicos filhos do milionário que havia acabado de morrer, Cesare (o papel de Richard Burton) e Antonio (outro britânico, Ian Bannen), alguns parentes, amigos mais chegados, os administradores das fazendas.

Junto de uma das portas do salão, reúnem-se para tentar ouvir uns dez, talvez 15 dos empregados da família. Os trabalhadores – os personagens centrais de tantos filmes de De Sica – neste aqui ficam de fora…

Generoso, o falecido destinou parte de seus bens para várias pessoas. Para o idoso médico do lugarejo, o dr. Mascione (Renato Pinciroli) – só para dar um exemplo –, o falecido deixou uma quantidade de dinheiro suficiente para que ele construísse uma enfermaria. A imensa maior parte do patrimônio – todas as terras, as benfeitorias, as diversas casas, os investimentos em bancos – foi deixada, claro, para os dois filhos.

Depois que termina de ler o testamento, Don Liborio pede para que todos deixem o salão, permanecendo apenas os dois filhos, Cesare e Antonio, para quem o falecido havia deixado cartas com instruções específicas.

Em seguida vem a parte que define o cerne da história. É uma sequência um tanto longa – na verdade, uma série de sequências.

A belíssima Adriana se casa – mas não com o homem que ama

O dr. Mascione passa pela casa da senhora De Mauro (Barbara Pilavin), e avisa a ela que Cesare Braggi virá visitá-la.

A senhora De Mauro e sua filha única, Adriana (o papel de Sophia Loren, que surge pela primeira vez na tela quando o filme está com oito minutos), ficam agitadíssimas com a notícia, e apressam-se a pôr ordem na casa – o espectador percebe que as duas mulheres ganham a vida com costura e lavagem de roupa, e os aposentos estão atulhados de coisas.

Adriana está excitada – e sorridente. Sua mãe também.

A bela mulher coloca o melhor de seus poucos vestidos.

Está perfeitamente arrumada, olhando-se no espelho para conferir se não há mais nada a fazer, quando ouve o ruído das patas de cavalo e vê que é Cesare chegando em uma carruagem. A mãe diz para ela ficar em seu quarto, com a porta fechada, até ser chamada.

Adriana pergunta para a mãe se ela está bem. Uma oportunidade para que a câmara do diretor de fotografia Ennio Guarnieri faça um close-up de Adriana-Sophia Loren, aquela beleza absurda, faiscante, então no esplendor de seus 40 anos.

Pelo diálogo amável, polido, entre o herdeiro da maior fortuna da região e a costureira, ficamos sabendo que o pai de Cesare havia sido muito amigo do falecido coronel Pasquale De Mauro. Quando bem jovem, Cesare havia frequentado aquela casa.

Depois de trocarem uma série de frases amáveis, polidas, Cesare vai ao motivo de sua visita:

– “Meu pai me deixou uma carta com seu testamento”, ele diz, pegando o envelope de um dos bolsos do paletó, “na qual expressa a sua admiração pela sua família e pela sua filha Adriana. Se me permite, vou lê-la. ‘Sinto uma grande estima por Adriana de Mauro, para além de ser filha de meu amigo, o coronel Pasquale De Mauro, que me honra com a sua amizade, e que sempre me recebeu tão bem em sua casa.”

Cesare fecha a carta, e prossegue: -“A senhora certamente imagina por que vim. Estou aqui para pedir a mão de sua filha Adriana. Era o desejo de meu pai, e é também nosso desejo e dever de respeitá-lo.”

A câmara faz um suave zoom em direção ao rosto da pobre viúva que acabava de ouvir o que mais gostaria de ouvir na vida. Seus olhos ficam umedecidos.

A expressão de Cesare-Richard Burton não é alegre. De forma alguma. Para usar a magnífica expressão de Chico Buarque, ele fala como quem dá-se ao carrasco.

– “Não é necessário acrescentar que Adriana será muito bem-vinda em nossa casa com toda a consideração e afeto que ela merece. Meu irmão Antonio será um bom e fiel marido.”

Close-up do rosto da viúva. Ela não consegue esconder a surpresa. – “Antonio?”, ela murmura – e não é uma afirmação, é uma pergunta, um assombro.

Não era necessário, mas Cesare acrescenta: – “Este era o desejo de meu pai.”

Preparando-se para levantar, ele diz: – “A senhora por favor transmita minha mensagem a Adriana e nós esperaremos pela resposta.

A senhora De Mauro diz que vai chamá-la.

– “Não, não, é melhor falarem as duas a sós. Não quero dar mais incômodo.”

Ele se encaminha para a porta, mas a viúva chama pela filha. Adriana abre a porta, aquela figura de beleza absolutamente fora do comum. –“Cesare”, ela diz, com um sorriso de chacoalhar frade de pedra. Fica claríssimo para o espectador que ela não ouviu o que havia sido dito no diálogo entre a mãe e ele.

A única coisa que ele consegue pronunciar é o nome dela.

A mãe toma a dianteira: – “Adriana, Cesare nos trouxe uma grande notícia. Uma notícia fantástica, minha querida”.

Close-up no rosto de Adriana-Sophia. Ela não está conseguindo segurar um sorriso.

– “Como chefe da família depois da morte de meu pai”, diz Cesare, rosto sério, pesado, “foi meu dever vir pedir a sua mão para o meu irmão Antonio.”

A alegria desaparece imediatamente do rosto da mulher.

Assim que Cesare vai embora, Adriana diz para a mãe que não se casará com Antonio. A viúva do coronel enumera os homens para quem a filha já havia dito não: o maior advogado de Palermo, o barão Loggia, o cavalheiro bonito de Siracusa…

Estamos com 14 minutos do filme.

A sequência seguinte é a do casamento da mulher mais bela do pedaço com o filho do homem mais rico. Não o que que ela amava de paixão desde sempre, mas o outro.

Costumes antigos, quase medievais, no começo do século XX

O cinema sempre mostrou a Sicília – a ilha que a bota parece chutar, bem ao Sul – como um lugar atrasado, com uma sociedade retrógada, machista, patriarcal e moralista ao extremo, em que até algumas décadas atrás ainda era costume pendurar em janela que dá para a rua o lençol manchado de sangue após a noite de núpcias, para provar para os vizinhos que a noiva era virgem. Alguns exemplos disso são O Belo Antonio/Il Bell’Antonio (1960), de Mauro Bolognini, Divórcio à Italiana/Divorzio all’italiana (1961) e Seduzida e Abandonada/Sedotta e Abbandonata (1964), ambos de Pietro Germi.

Jovens de hoje em dia com toda certeza teriam dificuldade em compreender aquela realidade que Vittorio De Sica mostra em seu filme – um homem de uns 50 anos e uma mulher de 40 sendo obrigados a abrir mão da paixão porque o pai dele determinou que a mulher deveria casar com o irmão mais novo.

Bem, mas a História é assim mesmo, as coisas mudam, muitas até mesmo para melhor, como no caso do respeito aos direitos das mulheres. Quem sabe daqui a um século o neto da minha neta – se é que minha neta terá neto, se é que a humanidade ainda existirá em 2124 – não conseguirá compreender como era possível que apenas dez décadas antes o direito ao aborto e à eutanásia ainda não existiam na maior parte dos países.

Viajandão à parte, este Il Viaggio é de fato, repito, um romance à moda antiga. Me peguei, no início do filme, sem saber exatamente quando se passava aquela história de costumes velhos, quase medievais. Mas a dúvida dura pouco: o roteiro – assinado por Diego Fabbri, Massimo Franciosa e Luisa Montagnana – vai dando várias, várias pistas da época da ação.

Por exemplo: em uma das viagens de Cesare a Milão, há um cartaz anunciando Madama Butterfly. (Sim, com essa grafia. O nome original da ópera que estreou em 1904 no Teatro Scala de Milão é assim.) E, quando alguém ali naquele hotel pergunta quem é aquela pessoa que acabava de passar, Cesare responde que é Giacomo Puccini, o compositor.

Mais adiante, de novo em Milão, Cesare vai com sua bela amante milanesa, Simona (o papel de Annabella Incontrera), assistir a algo muito novo: um filme! Embevecido, embasbacado diante daquelas imagens em movimento projetadas em uma tela, Cesare exclama: – “Um milagre! Fico pensando o que o homem haverá de inventar depois disso…”

(Não consegui ficar sabendo o nome do filme a que Cesare e Simona – assim como, por um momento, o espectador de Il Viaggio – assistem. É uma fantasia, um visual rico, bonito, avançado, uma coisa à la Georges Meliès.)_

No porto de Palermo, a maior cidade e a capital da ilha, Cesare recebe outra grande novidade que havia importado: um automóvel.

Na viagem que dá o título do filme, há, em uma casa de espetáculos em Nápoles, uma apresentação de can-can. E, finalmente, pouco depois, ainda na viagem, os jornais anunciam o assassinato do arquiduque Ferdinando em Sarajevo – o estopim para o início da Primeira Guerra Mundial.

Madama Butterfly, o cinema, o automóvel, o can-can, o arquiduque Ferdinando. Il Viaggio mostra clarissimamente que a ação começa na primeira década do século XX e vai até 1914.

De Sica morreria meses depois da estréia do filme

Um registro. A cópia que vi, a que estava disponível no YouTube em setembro de 2024, é a versão falada em inglês, para distribuição no Reino Unido, Estados Unidos e demais países de língua inglesa. Não é o ideal de se ver – claro que melhor seria a versão em italiano. Mas admiti ver porque, afinal de contas, o que ouvimos é a voz inconfundível de Richard Burton, e as legendas são corretas, embora em português de Portugal.

O filme manteve o título do livro de Luigi Pirandello em que se baseia o roteiro escrito por Diego Fabbri, Massimo Franciosa e Luisa Montagnana      . Il Viaggio foi lançado em 1910 – o que torna evidente que foi dos roteiristas a idéia de fechar a história nos dias que antecederam o início, em 1914, da Grande Guerra, a que diziam que vinha para acabar com todas as guerras.

Em 1921 houve uma primeira versão cinematográfica da história, com o mesmo título, Il Viaggio, com direção de Gennaro Righelli (1886-1949). A atriz que interpretou Adriana, Maria Jacobini (1892-1944), foi casada com o diretor.

Esta refilmagem da história foi dirigida por um amigo e velho parceiro da atriz que faz Adriana, e produzida pelo marido dela, Carlo Ponti. Ponti, gorducho, 22 anos mais velho que Sophia, foi casado com ela durante meio século, de 1957 a 2007, e produziu boa parte de seus filmes.

A parceria de De Sica e Sophia também foi bastante longa – abrangeu cerca de 20 anos – e profícua. Fizeram 15 filmes juntos, conforme já foi dito en passant no começo desta anotação. Em sete deles, trabalharam juntos como atores – à parte sua respeitável carreira de diretor, De Sica foi um ator requisitadíssimo, com sua bella faccia, e estrelou dezenas de filmes, muitos deles comédias leves como plumas. O primeiro filme em que os dois trabalharam juntos foi Nossos Tempos/ Tempi nostri – Zibaldone n. 2, de 1954.

Entre os oito dirigidos por De Sica, há dramas pesados, romances, comédias escrachadas. Alguns são ótimos, são grandes filmes. Vale o registro:

O Ouro de Nápoles/L’Oro di Napoli, episódio “Pizze a Credito” (1954);

Duas Mulheres/La Ciociara (1961),

Boccaccio ’70, episódio “La Riffa” (1962),

O Condenado de Altona/I Sequestrati di Altona (1962),

Matrimônio à Italiana/Matrimonio all’italiana (1964),

Ontem, Hoje e Amanhã/Ieri Oggi Domani (1964),

Os Girassóis da Rússia/I Girasoli (1970),

A Viagem Proibida/Il Viaggio (1974).

Por sua interpretação em dois destes filmes – o drama de guerra Duas Mulheres e a comédia Matrimônio à Italiana –, Sophia recebeu indicações ao Oscar de melhor atriz. Pelo primeiro deles, levou o prêmio para casa.

Il Viaggio foi filmado em diversas cidades: Milão, Veneza, Roma, Nápoles, Palermo e Noto – esta última, um pequeno vilarejo na Sicília, no município de Siracusa. Durante a produção, em agosto de 1973, Vittorio de Sica ficou sabendo que tinha um tumor no pulmão. “Não obstante”, diz a Wikipedia em italiano, “De Sica continuaria a trabalhar naquele que seria seu último filme. A primeira projeção italiana seria em março de 1974, e a francesa em Paris no dia 13 de novembro de 1974, exatamente a mesma data, na vizinha Neuilly-sur-Seine, da morte do diretor.” (Na foto abaixo, a atriz e o diretor durante as filmagens.)

Muitas vezes a vida é mais surpreendente que os filmes.

A morte paira sobre este último filme de De Sica”

Vou transcrever o que dizem de The Voyage/Le Voyage os guias do americano Leonard Maltin e do francês Jean Tulard. Creio que Maltin não fica muito bem na comparação entre as duas formas de ver uma obra.

Maltin: “Adaptação apática de história de Pirandello sobre amantes mal afortunados Burton e Loren, proibidos de casar e marcados pela tragédia. Estrelas e cenários atraentes, mas um filme arrastado.”

Guide des Films: “A morte paira sobre este último filme de De Sica, que é assim seu adeus ao cinema. Filme nostálgico, delicado e terno, com belas imagens de um mundo antigo, com dois atores completos e críveis, É um melodrama, mas ele envolve um charme comovente.”

Anotação em setembro de 2024

A Viagem Proibida/Il Viaggio

De Vittorio De Sica, Itália-França, 1974

Com Sophia Loren (Adriana De Mauro),

Richard Burton (Cesare Braggi),

Ian Bannen (Antonio Braggi), Barbara Pilavin (sra. De Mauro, a mãe de Adriana), Renato Pinciroli (Dr. Mascione, o médico da cidadezinha), Annabella Incontrera (Simona, a amante de Cesare), Paolo Lena (Nandino, o filho de Adriana), Daniele Vargas (Don Liborio, o advogado), Sergio Bruni (Armando Gill), Ettore Geri (Rinaldo), Olga Romanelli (Clementina, a governanta), Isabelle Marchall (a florista), Riccardo Mangano (dr. Carlini), Antonio Anelli (Giacomo Puccini),

Roteiro Diego Fabbri, Massimo Franciosa, Luisa Montagnana

Baseado no romance homônimo de Luigi Pirandello     

Música Manuel De Sica

Fotografgia Ennio Guarnieri

Montagem Franco Arcalli

Casting Jose Villaverde

Direção de arte Luigi Scaccianoce    

Figurinos Marcel Escoffier, Bruno Raffaelli

Produção Carlo Ponti, C.A.P.A.C., Compagnia Cinematografica Champion

Cor, 102 min (1h42)

***1/2

2 Comentários para “A Viagem Proibida / Il Viaggio”

  1. Olá Sergio! Eu tenho uma cópia deste filme e faz tempo que assisti, gostei muito na época, apesar de ser muito triste. Após ler sua resenha, preciso ver novamente. Você explicou muito bem.

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