(Disponível na Netflix em 10/2023.)
Resistência conta parte da vida de Marcel Marceau, o artista amplamente reconhecido como o melhor mímico do mundo – a época da Segunda Guerra Mundial, em que ele e um grupo de companheiros salvaram centenas de vidas de crianças judias.
A história é fascinante, ao mesmo tempo dura e encantadora. E o filme, uma co-produção caprichada de nada menos de cinco países, Reino Unido-França-Alemanha-EUA- China, é importante, tem muitas qualidades, e merece ser visto. Tem, no entanto, na minha opinião, alguns problemas.
O maior dos problemas talvez não seja exatamente do filme, e sim da versão disponível na Netflix. Na gigante do streaming, Resistência está disponível em três versões de áudio: inglês original, português e espanhol. É óbvio que vimos, como sempre, na versão original, com legendas – e nela todos os personagens falam em inglês! Os franceses, os alemães – todos falam em inglês! Há apenas uma sequência em que os alemães falam em alemão.
Usava-se isso nos filmes americanos até ali pelos anos 60: da maneira mais umbigocêntrica que pode existir, russos, alemães, japoneses, os antigos romanos da época de Cristo, os E.Ts, todos falavam em inglês.
Essa coisa absurda foi sendo abandonada, felizmente, a partir dos anos 70, e nas últimas décadas havia desaparecido.
Reapareceu agora neste Resistance – o que nos provocou, à Mary e a mim, uma sensação bastante desagradável.
O IMDb, no entanto, diz que os idiomas falados no filme são inglês, alemão, hebraico, latim, italiano e francês. Pode ser, então, que haja uma versão assim, em que as pessoas de cada país falam sua própria língua. Pode ser que haja – mas ela não está disponível na Netflix.
Não é uma biografia do mímico. É sobre o Holocausto
Resistência conta um trecho da vida do jovem Marcel Mangel, que depois adotou o sobrenome Marceau – porém, mais que uma cinebiografia do maior mímico do mundo, é um filme sobre a perseguição dos nazistas aos judeus, que viria a resultar no Holocausto, o Shoah, a mortandade de seis milhões de judeus.
Toda a ação, toda a narrativa é focada nessa tragédia absurda, impensável que foi o Holocausto.
Desde o início, desde a primeira sequência – até as informações que vêm em letreiros ao final da narrativa. O diretor e autor do roteiro, Jonathan Jakubowicz, abre seu filme mostrando uma família judia – pai e mãe amorosos, no quarto da filha, uma adolescente de uns 12, talvez 14 anos de idade, que se prepara para dormir. Um letreiro informa que estamos em “Munique, Alemanha nazista, 9 de novembro de 1938” – o ano anterior ao início da Segunda Guerra Mundial.
Depois que os pais a beijam e desejam boa noite, a garotinha pergunta: – “Pai, por que eles odeiam a gente?”
– “Não acho que eles nos odeiem”, diz o pai. “Hitler nos culpa pelo sofrimento da classe trabalhadora. E algumas pessoas preferem acreditar nele.”
– “Mas por quê?”, pergunta a garotinha.
– “Não há uma resposta simples. Mas eu posso dizer uma coisa. A economia está melhorando, e logo se esquecerão de procurar um culpado. E todos vão se concentrar em construir um futuro melhor. Nós temos que continuar contribuindo com a Alemanha. Como sempre fizemos.”
Os pais saem do quarto da garota. Logo depois, ela ouve barulho forte, alto. Entreabre a porta e vê soldados prendendo seu pai e o levando para fora.
Ele é fuzilado com um tiro à queima-roupa diante do prédio em que morava. Diante dos olhos da filha.
A garotinha Elsbeth (interpretada por Bella Ramsey) voltará a aparecer, e será uma das personagens importantes da trama. (Seus pais são interpretados por Edgar Ramírez e Klára Issová.)
Depois dessa sequência de abertura, vemos o título do filme, Resistance, e há mais um intróito à história de Marcel Marceau. Um grande número de soldados está reunido no que – um letreiro nos informa – é “o Kongresshalle, antigo local de comícios nazistas”, em Nuremberg, Alemanha, 1945. Após o final da guerra, portanto. O lendário general Patton, que chefiou as tropas norte-americanas no Mediterrâneo e na Europa, do alto de uma plataforma, um palco, se dirige aos soldados de pé abaixo dele.
_ – “Boa noite, soldados”, diz o general Patton, depois que a câmara faz um travelling em volta do rosto do ator escolhido para o papel, o grande Ed Harris. (Depois da interpretação de George C. Scott no filme Patton, de 1970, de Franklin J. Schaffner, com roteiro, entre outros, de Francis Ford Coppola, tinha necessariamente que ser um grande ator…)
– “Se aceitarmos a definição consagrada de coragem como qualidade de não conhecer o medo, então nunca vi um homem corajoso. Todo homem tem medo. Coragem é o medo se segurando por mais um minuto. Imagine que você fosse um civil lutando nessa guerra. Imagine que você não soubesse usar uma arma e desafiasse os nazistas para salvar vidas. Acabo de ouvir uma história incrível. Quero compartilhá-la com vocês. Porque é a história de um desses seres humanos únicos, excepcionais, que fazem com o sacrifício de vocês, o seu heroísmo, tenham valido a pena.”
O que vem a seguir é a história que o general Patton conta aos soldados.
Começa em um cabaré – o letreiro informa que estamos em Estrasburgo, França, 14 de novembro de 1938. O jovem Marcel Mangel (o papel de Jesse Eisenberg) está apresentando um número de mímica em que imita Charlie Chaplin, segurando um bigodinho parecido com o do Vagabundo, mas parecido também com o de Adolf Hitler.
Quase ao final da apresentação, surge na platéia o pai do rapaz, Charles Mangel (o papel de Karl Markovics), um açougueiro, filho e neto de açougueiros, que naturalmente queria que o filho fosse açougueiro. Há um diálogo delicioso entre os dois.
– “Gostou do meu espetáculo?”, pergunta o rapaz.
– “Um palhaço fantasiado de Hitler em um prostíbulo!”
– “Papai, não é o Hitler, e é um cabaré.”
Por uma imensa ironia destas de que a vida é capaz, o velho Charles Mangel, judeu polonês que havia emigrado para a França fugindo das perseguições aos judeus, vai surpreender bastante o filho – e também o espectador – bem mais adiante na narrativa.
Um grupo acolhe as crianças judias sem pais
Estrasburgo, a cidade que Charles havia escolhido para se estabelecer com sua família ao chegar à França, fica bem próximo da fronteira com a Alemanha. É bem mais próxima, por exemplo, de Stuttgart que de Paris. E logo um grupo de pessoas do bem consegue retirar da Alemanha e levar para Estrasburgo uma centena de crianças judias que haviam perdido os pais na Alemanha nazista – entre elas a garotinha Elsbeth, da sequência de abertura.
O grupo que recebe as crianças inclui Alain (Félixs Moati), o irmão mais velho de Marcel, e as irmãs Emma e Mila (os papéis de Clémence Poésy e Vica Kerekes). Marcel se une a eles – e seu talento de mímico, sua veia cômica, fazem com que eles meninos órfãos comecem a perder o medo, a estranheza diante daquelas pessoas desconhecidas.
E são emocionantes as sequências em que Marcel vai se aproximando daquelas crianças que haviam perdido seus pais, suas casas, seu país.
Alain e Mila vão se aproximar, namorar. Marcel e Emma também vão se aproximar, mas, como diria Chico Buarque, vão ficar num balé esquisito, que nunca se transforma de fato em um namoro.
Com a invasão da Polônia pelos nazistas em 1º de setembro de 1939, o governo francês pede a retirada das populações vizinhas à fronteira com a Alemanha. As famílias de Marcel e de Emma, assim como dezenas de outras, se muda para Lyon. O grupo que ajuda as crianças órfãs consegue levá-las também.
A cidade de Lyon era o centro da resistência à ocupação da França pelos nazistas.
Em uma sequência, o que pode haver de pior na humanidade
Quando o filme está com 40 de seus 120 minutos de duração, há uma sequência em que surge em bar frequentado por alemães – entre os quais, aparentemente, há vários gays –, um homem que é um nazista radical, um nazista raiz, que faz um discurso em defesa da raça pura ariana, uma elegia da xenofobia, do racismo, da homofobia. Ao final do discurso, ele espanca com uma brutalidade impressionante um alemão que estava no bar.
Ele é interpretado por Matthias Schweighöfer – mas o nome do personagem demora bastante para ser mencionado. Pelo fato de a ação se passar naquele momento em Lyon, me lembrei do epíteto “o carniceiro de Lyon” dado a Klaus Barbie, o oficial nazista brutal que desapareceu depois da guerra – até ser encontrado na Bolívia, no final dos anos 60 ou início dos 70. A descoberta de Barbie na Bolívia foi inicialmente noticiada com exclusividade pelo Jornal da Tarde, em uma série de matérias assinadas pelo extraordinário jornalista Ewaldo Dantas Ferreira – um dos grandes feitos do jornal em que comecei a trabalhar naquela mesma época, 1970.
Klaus Barbie, o carniceiro de Lyon, é um personagem importantíssimo na trama de Resistência.
É a representação do Mal em Si.
Resistência é um filme de muitos diálogos sérios, pesados, densos, importantes, impactantes. O autor e diretor Jonathan Jakubowicz seguramente poderia ter se dedicado à literatura – tem um talento fantástico com as palavras.
Há um diálogo entre Klaus Barbie e Emma, depois que ela e sua irmã Mila são presas e levadas à sede da Gestapo em Lyon, que deixou chocado, paralisado, este velho assistidor de filmes aqui, que acreditava já ter visto tudo possível e imaginável sobre o Mal em Si.
Barbie pergunta a Emma se ela sabe o que é despelar – e em seguida explica a técnica de retirar a pele de uma pessoa, provocando a maior dor imaginável mas ao mesmo tempo em que se mantém a pessoa viva durante um bom tempo, para que ela sofra tudo o que é permitido um ser humano sofrer antes de passar desta para melhor.
E em seguida diz que fará a despelação de Mila diante dela, Emma. A jovem e bela atriz Clémence Poésy (na foto abaixo) está excelente quando interpreta a Emma que sai do prédio da Gestapo após ser forçada a assistir à tortura da irmã até a morte.
A Emma que viu aquele horror inimaginável parece um zumbi, um ser vivo sem vida, uma morta-viva – com a diferença fundamental de que, ao contrário de um filme de horror como A Noite dos Mortos-Vivos, este aqui é um filme que conta uma história real.
O diálogo que acontece entre Emma e Marcel logo em seguida é tão impressionante quanto o entre Emma e o carniceiro de Lyon.
Emma defende que eles se dediquem às ações da Resistência que visam à morte dos nazistas. Marcel diz que o mais importante é que todo o esforço vá para a salvação de vidas, a luta para que as crianças sejam levadas até lugares seguros, a salvo dos nazistas.
O ideal de Emma é a vingança, a morte dos criminosos. O ideal de Marcel é a salvação, a vida dos inocentes.
Um desnecessário exagero, situações implausíveis
O problema que, na minha opinião, o filme apresenta – além da questão que abordei no início de todos os personagens falarem em inglês – é um certo exagero dramático. Para emocionar fortemente o espectador, o roteiro escrito por Jonathan Jakubowicz cria algumas situações exageradas, pouco plausíveis, pouco verossímeis – que ficam muito estranhas em um filme que conta uma história real.
Um exemplo é toda a sequência em que o trem levando Marcel, Emma e uma dezena de crianças pára na estação de Lyon, e vários nazistas, inclusive o próprio Klaus Barbie, o chefe da Gestapo na região, sobem e inspecionam os passageiros. Emma, que sofrera a duríssima tortura psicológica de ver a irmã sendo despelada pelo carniceiro, se esconde no banheiro do vagão, e o nazista conversa com Marcel a poucos centímetros dela – e a porta do banheiro ainda se abre, para elevar o suspense à estratosfera.
E outro exemplo dessa coisa de exagerar demais, na tentativa de assustar, emocionar o espectador é a sequência bem no final da narrativa, em que Emma, Mila, Marcel e Alain levam o grupo de crianças pela floresta e pela montanha rumo à fronteira com a neutra Suíça.
Exageros implausíveis – e desnecessários. A história já tem dramaticidade saindo pelo ladrão.
Exatamente como Marcel Marceau, o diretor e roteirista Jonathan Jakubowicz é descendente de judeus poloneses. Nasceu em Caracas, Venezuela, em 1978. Resistência foi o sétimo título em sua filmografia como diretor. O primeiro deles foi feito ainda na Venezuela, um documentário curta-metragem, Los Barcos de la Esperanza, sobre dois navios que saíram da Europa em 1939 levando 251 judeus para a América. Ele foi também um dos diretores – ao lado de, entre outros, o talentoso chileno Pablo Larrain – da elogiada série Prófugos (2011-2013).
No site agregador de opiniões Rotten Tomatoes, Resistance tem 57% de aprovação da crítica e 79% de aprovação dos leitores. O “consenso dos críticos” me pareceu exato, irretorquível:
“Imperfeito, mas honrado, Resistance supera performances e execução irregulares para prestar uma homenagem sincera ao seu protagonista.”
Registro aqui as informações que são dadas em letreiros ao final da narrativa, antes dos créditos finais. São dados importantes – e dão perfeitamente o tom de todo o filme.
“Por sua contribuição à Resistência Francesa, Marcel recebeu o título de ‘Grand Officier de la Légion d’Honneur’ e foi premiado com a Ordem Nacional do Mérito. O pai de Marcel, Charles Mangel, foi deportado para o campo de concentração de Auschwitz, onde foi morto em 1945.
“Depois da guerra, os caçadores de nazistas Beate e Serge Klarsfeld encontraram Klaus Barbie escondido na Bolívia. Extraditado para a França, foi condenado por crimes contra a humanidade. Morreu na prisão em 1991.
“Os grupos de Resistência Judia na França salvaram dez mil crianças durante a Segunda Guerra Mundial. Os nazistas defendiam a morte de crianças de ‘grupos perigosos’ como parte de seu plano para ‘purificar a raça ariana’. Eles mataram 1,5 milhão de crianças, inclusive dezenas de milhares de ciganos, crianças com deficiências físicas ou mentais, e mais de um milhão de crianças judias. Este filme é dedicado a elas. Jamais esqueceremos.”
Anotação em outubro de 2023
Resistência/Resistance
De Jonathan Jakubowicz, Inglaterra-França-Alemanha-EUA- China, 2020.
Com Jesse Eisenberg (Marcel Marceau)
e Clémence Poésy (Emma),
Félix Moati (Alain, o irmão de Marcel), Vica Kerekes (Mila, a irmã de Emma), Matthias Schweighöfer (Klaus Barbie), Géza Röhrig (Georges), Bella Ramsey (Elsbeth), Martha Issová (Flora), Karl Markovics (Charles Mangel, o pai de Marcel e Alain), Arndt Schwering-Sohnrey (Max Rheinemert), Alex Fondja (Frederique), Aurélie Bancilhon (Dominique), Alicia von Rittberg (Regine), Louise Morell (a mãe de Marcel e Alain), Wolfgang Czeczor (o velho no trem), Philip Lenkowsky (padre Montluc), Edgar Ramírez (Sigmund, o pai de Elsbeth), Klára Issová (Judith, a mãe de Elsbeth), Felicity Montagu (Mrs. Garner, a mãe de Emma e Mila), Werner Biermeier (o caçador suíço)
e, em participação especial, Ed Harris (general Patton)
Roteiro Jonathan Jakubowicz
Fotografia Miguel I. Littin-Menz
Música Angelo Milli
Montagem Alexander Berner, Jonathan Jakubowicz
Casting Maya Kvetny
Desenho de produçãoTomas Voth
Figurinos Katharina Ost
Produção Marco Beckmann, Carlos Garcia de Paredes, Claudine Jakubowicz, Jonathan Jakubowicz, Dan Maag, Stephanie Schettler-Köhler, Thorsten Schumacher, Matthias Schweighöfer, Lars Sylvest, Patrick Zorer, Pantaleon Films, Vertical Media, Bliss Media, Epicentral Studios, Ingenious Media.
Cor, 120 min (2h)
**1/2
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