O Tempo Que Te Dou / El Tiempo Que Te Doy

3.0 out of 5.0 stars

(Disponível na Netflix em 8/2023.)

Moça encontra rapaz, apaixonam-se, passam a morar juntos, são muito felizes por um tempo, surgem problemas, a relação se desgasta, vem a separação, a moça sofre, come o pão que o diabo amassou, mas depois – fazer o quê, né? – começa a se refazer.

A história contada pela microssérie espanhola O Tempo Que Te Dou, de 2021, é simples como dizer bom dia, quase tão antiga quanto os dinossauros, previsível como a chegada da noite. O que a torna diferente, atraente, é a forma com que os três criadores resolveram contá-la.

São três os criadores, duas mulheres e um homem. Além de escrever a história, Inés Pintor e Pablo Santidrián também dirigiram os dez episódios. E, além de escrever, Nadia de Santiago também interpreta a protagonista, Lina – e Lina é o centro, o cerne, o fulcro de tudo. A história do começo, meio e fim de sua relação com Nico (Álvaro Cervantes) é toda contada através dos olhos dela.

Sendo assim, a interpretação da atriz é fundamental, é condição essencial para que a série funciona. Felizmente para todos, Nadia de Santiago trabalha muito bem, é bonita, simpática. (Embora veja muitos filmes e séries espanhóis, eu não a conhecia, nem nenhum outro dos atores e autores da série. O que só confirma o que tenho achado já faz muitos anos – que o cinema espanhol é hoje um dos melhores do mundo, logo depois do feito nas Ilhas Britânicas.)

Moça encontra rapaz, apaixonam-se, essa coisa mais velha que andar pra frente.

Pois é. A questão é que El Tiempo Que Te Doy conta essa história manjada fugindo da ordem cronológica feito o diabo foge da cruz, em 10 episódios de 11 minutos cada, em um rigorosíssimo esquema que faz lembrar um poema concreto ou o “Bat Macumba” de Gilberto Gil, em que o passado, as lembranças, as recordações de Lina vão diminuindo – e o presente, a dureza da vida sem Nico, vão ocupando mais e mais espaço.

É visual, é gráfico – sai o passado, fica o presente

O exemplo de “Bat Macumba” parece estranho? Pois não é, não. A letra de “Bat Macumba” é visual, gráfica, assim como alguns poemas concretos. Para lembrar:

Bat Macumba ê ê, Bat Macumba obá
Bat Macumba ê ê, Bat Macumba obá
Bat Macumba ê ê, Bat Macumba obá
Bat Macumba ê ê, Bat Macumba oh
Bat Macumba ê ê, Bat Macumba
Bat Macumba ê ê, Bat Macum
Bat Macumba ê ê, Batman
Bat Macumba ê ê, Bat
Bat Macumba ê ê, Ba
Bat Macumba ê ê
Bat Macumba ê
Bat Macumba
Bat Macum
Batman
Bat
Ba
Bat
Bat Ma
Bat Macum
Bat Macumba
Bat Macumba ê
Bat Macumba ê ê
Bat Macumba ê ê, Ba
Bat Macumba ê ê, Bat
Bat Macumba ê ê, Batman
Bat Macumba ê ê, Bat Macum
Bat Macumba ê ê, Bat Macumba
Bat Macumba ê ê, Bat Macumba oh
Bat Macumba ê ê, Bat Macumba obá
Bat Macumba ê ê, Bat Macumba obá
Bat Macumba ê ê, Bat Macumba obá.

Os títulos de cada um dos dez episódios de O Tempo Que Te Dou mostram com clareza gráfica como as lembranças, as recordações, vão dando lugar à realidade da vida sem o companheiro amado:

1 . 1 minuto de presente y 10 minutos de recuerdo

2 ∙ 2 minutos de presente y 9 minutos de recuerdo

3 ∙ 3 minutos de presente y 8 minutos de recuerdo

4 ∙ 4 minutos de presente y 7 minutos de recuerdo

5 ∙ 5 minutos de presente y 6 minutos de recuerdo

6 ∙ 6 minutos de presente y 5 minutos de recuerdo

7 ∙ 7 minutos de presente y 4 minutos de recuerdo

8 ∙ 8 minutos de presente y 3 minutos de recuerdo

9 ∙ 9 minutos de presente y 2 minutos de recuerdo

10 ∙ 10 minutos de presente y 1 minuto de recuerdo

É isso aí. Como diria outro baiano, o João, é só isso o baião deles, e não tem mais nada, não.

Não há fatos extraordinários – é vida de gente como a gente

Pois é. Dez episódios de 11 minutos cada, somando portanto 110 minutos – a duração de tantos e tantos e tantos filmes. Mas, se fosse um filme, não teria a graça que tem a história contada assim, com os minutos do passado diminuindo e os do presente aumentando a cada episódio.

Talvez por ter que seguir esse esquema rígido de tantos minutos para o presente, tantos minutos para as lembranças, por ter que se mover dentro dos limites impostos pela forma, os criadores deste El Tiempo Que Te Doy não se aprofundam muito no perfil psicológico de Lina e Nico. Mas, diabo, eles não pretenderam fazer um baita drama psicológico, e sim contar, de uma forma diferente, inusitada, uma história de amor.

Quando acontece a separação, Lina está com 32 anos – nós a vemos no dia do aniversário, em que as amigas aparecem com um bolo com as velinhas com os números. É no sexto episódio – e Lina não comemora com alegria. Muito ao contrário. Está no fundo do poço da dor, morrendo de saudade de Nico.

Logo no primeiro episódio vemos a discussão, a briga entre os dois que determina que Nico sai de casa – e estamos cansados de saber que, durante as brigas, a gente “diz tanta coisa que não quer dizer”, como lembra a letra de Dolores Duran. Pois é: na hora da briga, Nico diz que desperdiçou nove anos de sua vida com Lina.

O que indica que Lina tinha apenas 23 anos quando eles se conheceram.

Diacho: aos 23 anos – a idade que eu tinha quando Suely e eu nos casamos, a gente é jovem demais, absurdamente jovem demais.

Conheceram-se num hotel à beira-mar, numa das belas ilhas espanholas que a série não se preocupa em dizer qual é. Lina trabalhava como arrumadeira, auxiliar de serviços gerais durante a madrugada. Um pouco mais velho, Nico era biólogo, mergulhador por paixão e por ofício. Rolou clima, rolou sexo, e não demorou para que estivessem morando juntos.

Esforçada, Lina fez curso de Enfermagem, formou-se, virou uma enfermeira respeitada entre os colegas.

O casal soube aproveitar muito bem a vida, viajou bastante nas férias, se divertiu, se amou muito.

A série não se preocupa em mostrar como, quando e por que começaram a surgir os problemas, a relação foi se esgarçando. Mostra-se que, após algum tempo, ela se mostrava mais apaixonada do que ele. Lá pelas tantas, ele teve um caso com uma colega. E aí veio a separação.

Os realizadores não se preocuparam em usar o artifício de colocar datas ou qualquer coisa parecida em letreiros para ajudar o espectador a entender o que é “presente” e o que é “recuerdo” em cada um dos episódios, mas a rigor isso não é necessário. Dá perfeitamente para sacar o que é o antes e o que é o agora.

A atuação dos dois atores centrais é uma das grandes qualidades da microssérie. Outro ponto alto, na minha opinião, é a ausência de grandes fatos, de eventos de grande impacto. Ao contrário, a série mostra que tudo na vida de Lina e Nico era sempre absolutamente “normal”, usual, comum. Vida de gente como a gente.

“Una agradable sorpresa en la ficción española”

Nadia de Santiago é de Madri, de 1990; começou a carreira com apenas 10 anos de idade, em 2000, e ainda em 2008 teve uma indicação ao Goya, o prêmio mais importante do cinema espanhol, na categoria de mejor actriz revelación. Em meados de 2023 tinha 52 títulos na filmografia como atriz, entre séries de TV, curtas e longas-metragens.

Álvaro Cervantes nasceu em Barcelona, em 1989. Também começou a carreira bem cedo, em 2005, com apenas 16 anos, e em meados de 2023 tinha 54 títulos na filmografia como ator. Vejo que teve um pequeno papel em Hanna (2011), o filme de ação que reuniu Joe Wright e Saoirse Ronan quatro anos após Desejo e Reparação/Atonement, aquela maravilha. Ele esteve também na série Criminal: Espanha (2019), como um jovem investigador da polícia. Exatamente como Nadia de Santiago, ele também teve uma indicação ao Goya de melhor revelação, em 2009, por El Juego del Ahorcado; em 2021, teve indicação ao Goya de melhor ator coadjuvante por Adu.

Por mero acaso, fui dar com uma boa crítica sobre a série em site que tem um título delicioso, “No es cine todo lo que reluce”. O texto, assinado por Daniel Farriol, termina assim: “El Tiempo Que Te Doy es una agradable sorpresa en la ficción española de la que esperamos no cometan el error de darle continuidad en una segunda temporada donde se perdería el sentido de la estructura narrativa que aquí se propone. ¿Qué mejor final podrían hallar que escuchar la melodía de ‘Tumbado en mi moqueta azul’ de la malagueña Anni B. Sweet?”

Bem, este brasileño aqui é claro que nunca tinha ouvido falar na malaguenha Anni B. Sweet, e não tem idéia do que quer dizer a letra dessa canção – mas concordo em gênero, número e degrau: pelamordeDeus, que não venham inventar de fazer uma segunda temporada desta microssérie!

E, já que o espanhol aí falou de uma canção, e eu falei em “Bat Macumba” e em “Castigo”, registro que o finalzinho, a sequência final de El Tiempo Que Te Doy

Calma, calma. Não vou fazer um absoluto spoiler, não, diabo!

O finalzinho da série, a sequência final, aquilo me fez lembrar de outra canção, uma que ouvi muito na época em que estava começando meu segundo casamento, com Regina, e Suely e eu estávamos mergulhados no poço da angústia da separação. É uma linda, triste canção de Georges Moustaki, do disco de 1974, cujo título parece que já diz tudo: “Les amours finissent un Jour”. O filho da mãe vai cantando que é isso mesmo, que os amores terminam, acabam, é a coisa mais natural do mundo. Mais ou menos isto aqui, só que naquela língua em que cada palavra tem um som especialmente belo:

Os amores terminam um dia, os amantes não se amam mais do que durante um certo tempo. Por que se arrepender, meu belo amor de um verão? Eis que está chegando o inverno, e logo o céu estará coberto de grossas nuvens mais pesadas que nossa dor de amor. Para que pensar em mim? Há tantos outros para dizer as palavras que você espera, para te oferecer novas primaveras, para esquecer o passado, para recomeçar…

Ah, meu, que absurda beleza isso. “À quoi bon penser à moi / Il y a d’autres que moi / Pour dire les mots que tu attends / Pour t’offrir de nouveaux printemps / Pour oublier le passé / Pour le faire recommencer…”

E por aí ele vai, mostrando que, afinal de contas, o amor acabar é a coisa mais absolutamente natural do mundo. Para então, nos dois versos finais, surpreender, mudar tudo, inverter : “Mais nous deux, c’était différent / On aurait pu s’aimer longtemps, longtemps, longtemps”.

Mas conosco era diferente, e a gente poderia ter se amado por muito, muito, muito, muito tempo.

Anotação em agosto de 2023

O Tempo Que Te Dou/El Tiempo Que Te Doy

De Nadia de Santiago, Inés Pintor, Pablo Santidrián, criadores, Espanha, 2021

Direção Inés Pintor, Pablo Santidrián

Com Nadia de Santiago (Lina),

Álvaro Cervantes (Nico)

e Cala Zavaleta (Inés), Nico Romero (Julio), Carla Linares (Laura), Prince Ezeanyim (Pedro), Sara Vidorreta (Ariadna Castro), Moussa Echarif (Samir), David Castillo (Santi), Ramón Rados (Vicente), Mariví Carrillo (Mavi)

Argumento e roteiro Nadia de Santiago, Inés Pintor, Pablo Santidrián, criadores.

Fotografia Alberto Pareja, Jose Martín Rosete

Música Iñigo Ugarteburu

Montagem Buster Franco

Desenho de produção Laura Matas

Figurinos Sandra Gimeno       

Produção Oriol Maymó, Corte y Confección de Películas. Distribuição Netflix.

Cor, 110 min (1h50)

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