O Criminoso Não Dorme / Gunman in the Streets / Le Traqué

2.0 out of 5.0 stars

(Disponível no YouTube em 9/2023.)

No dia em que está sendo levado do presídio de La Santé para julgamento, o famoso gângster Eddy Roback consegue fugir, após um tiroteio violento entre bandidos amigos dele e a polícia, em plena Île de la Cité, pertinho do Palais de Justice, da Sainte-Chapelle e da Notre Dame, no coração Paris. Le Traqué, (o procurado, o rastreado), de 1950, começa com a sequência do tiroteio e da fuga, e mostra toda a grande caçada policial atrás do fugitivo.

Ou, como diz o início da sinopse do Guide des Films de Jean Tulard:

“Eddy Robback foge do veículo de transporte de presos que o conduz. Embora ela agora ame Franck, um jovem jornalista, Denise Vernon, a antiga amante de Eddy, vai em seu socorro.” E a partir daí a sinopse relata os principais fatos da trama, até e inclusive o finalzinho – algo que eu não faço de jeito algum.

É preciso registrar que tanto Eddy Roback (o papel de Dane Clark) quanto Frank (Robert Duke) são americanos. Eddy – o espectador fica sabendo por um depoimento dado à imprensa pelo comissário de Polícia Dufresne (Fernand Gravey) – era soldado das forças norte-americanas que combateram os nazistas na Segunda Guerra Mundial. Desertou do Exército e passou a se dedicar à carreira de crimes, a partir do mercado negro do imediato pós-guerra, alcançando depois os píncaros da profissão. Já Frank era bem o oposto – um jovem jornalista boa pessoa, bom caráter, correspondente de um jornal norte-americano na Paris que ressurgia cinco anos após fim da guerra.

Dane Clark no papel do bandido, Robert Duke no papel do mocinho. Os nomes desses atores não me dizem absolutamente nada (embora neste momento em que escrevo tenha verificado que este último foi o ator principal de Ao Cair da Noite/Moonrise, 1948, um filme de Frank Borzage elogiadíssimo pela crítica). Foi o nome de Simone Signoret que me fez querer ver o filme, disponível no YouTube de graça que nem passeio pelo parque.

Simone Signoret aos 29 anos, esplendorosamente bela

Simone Signoret faz o papel de Denise Vernon, a amante do gângster que no momento da ação está apaixonada pelo jovem jornalista bom caráter – mas ainda gosta do outro, e, sobretudo, sente que tem a obrigação moral de ajudá-lo, porque ele não tem mais ninguém.

Está linda, esplendorosamente bela, os olhos claros faiscantes, os cabelos longos ora presos, ora soltos. Tinha 29 anos de idade e 22 filmes no currículo, iniciado ainda durante a guerra, em 1942, mas em muitos deles, no início, havia feito papéis bem pequenos. Como diz sua biografia no Baseline, “projetando ao mesmo tempo cinismo obstinado e sensualidade, Signoret começou a aparecer nos anos 1940 em papéis de mulheres caídas, gananciosas ou sem sorte, e imbatível como uma mulher apaixonada”;

No mesmo ano em que fez este policial aqui, trabalhou em La Ronde, de Max Ophüls – o filme que é o melhor sinônimo de comédia romântica elegante, sofisticada, envolvente, apaixonante, com um elenco que tinha mais estrelas que muitas constelações: Gérard Philipe, Danielle Darrieux, Anton Walbrook, Serge Reggiani, Simone Simon, Jean-Louis Barrault.

No ano seguinte, 1951, Simone se casou com o ator, cantor, one man show e ativista político Yves Montand. O casal 20 da arte da esquerda européia viveu junto até a morte dela, em 1985, aos 64 anos; Montand ainda viveria mais seis anos, até 1991.

Tá, mas e o filme?

Não é um bom filme, de forma alguma

O filme, bem… O filme não é bom, nem importante.

Há belos lances de câmara, detalhinhos que demonstram um cuidado formal e um domínio firme do fazer cinema. A câmara várias vezes deixa de lado o tema central da sequência para se fixar em um pequeno detalhe – como o andar do gato pelo apartamento de Max Salva (Michel André), para onde Denise leva Eddy para que ele se recupere um pouco depois de ter levado um tiro no braço durante o tiroteio na Île de la Cité.

Volta e meia há coisas assim, que denotam paixão por cinema, apego a detalhes formais interessantes.

A sequência após a do tiroteio, em que Eddy se esconde em uma grande loja de departamentos, é muito boa, muitíssimo bem encenada.

Mas o conjunto da obra é fraco. O personagem de Eddy não é muito bem composto – na verdade, não é nada composto. Não é um personagem, é um estereótipo. Não tem três dimensões, como costumavam dizer velhos críticos de cinema. É plano, chato, como os loucos acham que é a Terra – não fica de pé. E esse ator Dane Clark ajuda muito a tornar o filme ruim. Meu Deus, como trabalha mal o sujeito!

E a trama, os caminhos da fuga de Eddy, tudo é assim bastante desconjuntado, desconexo.

Recorro à avaliação do Guide des Films de Jean Tulard:

“Um gângster traqué (rastreado, caçado), uma mulher arrependida, um homem honesto… Esta aventura policial não brilha por sua originalidade. Embora o filme seja realizado corretamente, não se retém essencialmente coisa alguma a não ser a beleza sensual de Simone Signoret.”

Uma versão francesa, uma versão americana

O que torna o filme curioso é o fato de que ele foi feito em duas versões, com dois diretores diferentes – uma versão francesa, uma versão americana.

A versão que está disponível no YouTube, que Mary e eu vimos, é a americana. Os créditos iniciais informam que o diretor é Frank Tuttle.

O filme é todo passado na França, em Paris, como fiz questão de acentuar no parágrafo de abertura deste texto – mas todos os atores falam em inglês. Isso é algo insólito, esquisito, ilógico – mas era absolutamente comum, até pelo menos os anos 80. Nos filmes de Hollywood até os anos 80 todo mundo falava em inglês: soldados alemães, gente comum na França, na Itália, na Espanha, no México. Os personagens históricos do passado falavam todos em inglês, de Jesus Cristo a Júlio César, dos czares russos a rainhas escandinavas.

Essa coisa horrorosa – que denota um etnocentrismo, um entendimento de que o universo gira em torno dos U.S. of A. – foi felizmente sendo abandonada. Hoje em dia são raros os filmes de Hollywood em que todo mundo fale em inglês.

Claro: como tudo tem que ser visto dentro de seu contexto, achei normal, natural – embora grotesco – que Denise Vernon conversasse com o comissaire Dufresne em inglês.

Mas me grilou a informação de que o filme era uma produção francesa.

E no IMDb, o grande site enciclopédico que tem absolutamente tudo sobre filmes, há (ou pelo menos havia, neste mês de setembro de 2023 em que vimos o filme) algo estranhíssimo, misterioso. O site traz dois verbetes diferentes – um sobre O Criminoso Não Dorme/Gunman in the Streets, de Frank Tuttle, com Dane Clark, Simone Signoret, Fernand Gravey, Robert Duke, e outro sobre O Criminoso Nunca Dorme/Le Traqué, de Boris Lewin, com Dane Clark, Simone Signoret, Fernand Gravey, Robert Duke.

O Guide des Films não faz qualquer referência a duas versões; credita a direção a Frank Tuttle e Boris Lewin, apenas. Le Petit Larousse des Films não traz Le Traqué, e o guia de Leonard Maltin não traz Gunman in the Streets. Pauline Kael não fala do filme em seu 5001 Nights at the Movies.

Mas o Cinéguide, um guia francês precioso, que tem mais de 18 mil títulos, com sinopses curtíssimas, fantásticos exemplos de capacidade de síntese, confirma que é uma produção francesa, e registra: “Realisateurs: Boris Lewin, Frank Tuttle”. “A perseguição de um gângster americano fugitivo se transforma em verdadeira caçada ao homem. Rodado em duas versões: uma francesa por Boris Lewin, a outra americana por Frank Tuttle.”

E a Wikipedia em francês confirma: “Le Traqué (título inglês Gunman in the Streets) é um filme francês de Frank Tuttle (versão inglesa) e Borys Lewin (versão francesa) sobre um roteiro de Jacques Companéez, lançado em 1950”.

Se Frank Tuttle apenas dirigiu a dublagem dos atores para o inglês, ou se algumas sequências, ou todas, chegaram de fato a ser filmadas duas vezes, isso não fiquei sabendo.

Anotação em setembro de 2023

O Criminoso Não Dorme/Gunman in the Streets/Le Traqué

De Borys Lewin, Frank Tuttle, França, 1950

Com Dane Clark (Eddy Roback),

Simone Signoret (Denise Vernon),

Fernand Gravey (comissário Dufresne), Robert Duke (Frank Clinton), Michel André (Max Salva), Fernand Rauzéna (um agente), Pierre Gay (Mercier), Edmond Ardisson (Mattei), Albert Dinan (Gaston)

Roteiro Jacques Companéez   

Diálogos André Tabet; diálogos adicionais Maximilien Ilyin, Henry Kane, Victor Pahlen, Jack Palmer White      

Fotografia Claude Renoir, Eugen Schüfftan

Música Joe Hajos

Montagem Steve Previn

Ptodução Victor Pahlen, Films Sacha Gordine.

P&B, 92 min (1h32)

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