(Disponível no YouTube em 12/2023 com o título Dama no Nevoeiro.)
Está absolutamente escuro naquela rua de Londres, e o nevoeiro – o famosérrimo fog londrino – é espesso. Está tudo tão absolutamente escuro que não são apenas os dois personagens que não enxergam nada, naquelas primeiras tomadas de Lady in the Fog, produção inglesa de 1952: o espectador também mal consegue divisar alguma coisa na tela.
Há uma música um tanto soturna, para amplificar o clima pesado.
Uma voz masculina diz: – “Está ficando bem grosso. Vou sair e caminhar à frente do carro.” A voz de uma mulher responde: – “Sim. Pegue isto”. “Isto”, o espectador compreende logo, é uma lanterna.
Depois que o filme terminou e revi essa abertura mais de uma vez, fiquei me perguntando por que raios uma lanterna na mão do sujeito poderia ser mais efetiva do que os faróis do carro – mas tudo bem: excesso de racionalidade, de procura de explicações lógicas, isso pode atrapalhar o espectador de desfrutar o espetáculo.
Passado um rápido instante, a gente percebe que a motorista enfiou o pé no acelerador. Há um baque. A mulher desce do carro, verifica se o homem está devidamente morto, volta ao carro, dá a partida e some.
Gostei da abertura deste filme que encontrei garimpando no YouTube entre as velharias – adoro de paixão as velharias. Londres, mulher na neblina, e uma abertura sem dúvida impactante, com essa coisa de o espectador não ver direito o que está acontecendo, a tela quase inteiramente negra nessa sequência inicial, a sacada de, quando a dama da neblina acelera o carro, a câmara mostrar uma solitária lâmpada de rua que mal conseguia lançar luz através do fog espesso.
A câmara mostra a lâmpada na rua, e começam os créditos iniciais. “Cesar Romero, Lois Maxwell in Scotland Yard Inspector”.
Epa, péra lá – como assim? Não era Lady in the Fog?
É as duas coisas. Lady in the Fog foi o título no Reino Unido da produção do famoso Hammer Films em associação com a independente Lippert Films. Nos Estados Unidos, deram ao filme o título de Scotland Yard Inspector. O IMDb não registra título em Português, indicação de que o filme não foi distribuído comercialmente no Brasil; estava disponível no YouTube no final de 2023 com o título Dama no Nevoeiro.
Um americano e o barman fazem um drink doidão
Os rápidos créditos iniciais informam que o roteiro é de Orville Hampton, “adaptado da popular série da BBC de Lester Powell”. A trilha sonora, mezzo pomposa, mezzo com um tom para deixar o espectador com medo, é de Ivor Slaney, com regência de Muir Mathieson, gravada pela London Philharmonic Orchestra.
Ora, ter uma trilha executada pela London Philharmonic Orchestra não é pouca coisa, não. E Muir Mathieson (1911-1975) é um nome muito importante. Foi ele, só para dar um exemplo, que regeu a música criada pelo grande Bernard Hermann para a obra-prima Um Corpo que Cai/Vertigo (1958). Sua filmografia como músico tem nada menos de 566 títulos.
Já o diretor não é um nome muito conhecido. Mas falo um pouco de Sam Newfield, assim como do roteirista e do autor da série original mais adiante. Quero falar logo é do que vem imediatamente após os créditos iniciais.
É como se fosse outro filme. Nada de negror, de música um tanto assustadora. O tom da segunda sequência do filme é de comédia. No Crescent Bar (vemos o nome rapidamente em uma tomada da rua, que indica que estamos perto do local do assassinato do homem pela dama da neblina), um sujeito grandão, de bigodinho, usando um sobretudo, está botando mil ingredientes em uma espécie de pequena bacia, observado de perto pelo barman Sid (Wensley Pithey). O sujeito, veremos logo, se chama Philip O’Dell, é um americano, escritor – o papel de Cesar Romero (1907-1994), filho de cubanos nascido em Nova York, 202 títulos na filmografia espalhados entre 1933 e 1992, conhecido pela alcunha de Latin Lover. Na Segunda Guerra, que havia acabado sete anos antes do lançamento do filme, Philip O’Dell havia lutado ao lado de vários ingleses, entre os quais o barman ali do Crescent Bar e também o inspetor da Scotland Yard McLendon.
A única pessoa no bar além dos dois veteranos de guerra, cada um de um lado do balcão, se divertindo ali preparando um estranhíssimo drink, é uma moça bonitinha, que estava ali aguardando a chegada do irmão, Danny, que havia marcado encontro com ela ali naquele lugar. Veremos que se chama Heather McMara (o papel de Bernadette O’Farrell, na foto abaixo).
Curiosa com aqueles dois homens colocando um grande número de coisas num recipiente, a mocinha se aproxima deles, e logo estão conversando na boa. O cliente e o barman explicam que aquilo é um detonador Dusseldorf. E não é que, daí a pouco, a coiseirada de fato explode, fazendo tremer as garrafas do bar? Philip e Sid enchem copos com o drink, oferecem a Heather, e a moça a princípio sabiamente recusa, mas acaba aceitando provar.
E estão nisso quando entra um policial londrino e pede para usar o telefone do bar. Ao telefone, requisita uma ambulância, e diz que há uma vítima, um homem que morreu atropelado.
Heather fica achando que pode ser Danny, seu irmão. Ela e Philip saem do bar acompanhando o policial, e a moça prontamente não apenas identifica a vítima como seu irmão como também garante achar que ele não foi atropelado acidentalmente, e sim assassinado.
Não tem prova alguma, é claro – mas garante que é sua intuição.
Um superior daquele policial vai encontrar Heather no bar, a interroga. Diante das respostas dela, diz que, caso ela fique sabendo de algo que possa comprovar sua suspeita de que foi assassinato, compareça à delegacia mais próxima.
Uma trama complexa, mas nada ruim
Solícito, Philip O’Dell se oferece para ir à Scotland Yard, a polícia metropolitana, onde tem um velho companheiro de campo de batalha, o inspetor McLendon.
Os dois vão até lá – e ficam sabendo que McLendon havia se aposentado alguns anos antes. No seu lugar está o inspetor Rigby (Campbell Singer), que, depois de ouvir o que Heather tem a dizer, responde com algo parecido com o que ela e O’Dell já haviam ouvido antes: se ficarem sabendo de alguma informação, por favor, voltem para nos informar.
O inspetor Rigby percebe que O’Dell demonstra vontade de dar uma de detetive – e comenta com seu auxiliar, o sargento Reilly (Alastair Hunter) o que talvez seja a melhor frase do filme: – “De todos os mitos perpetuados pelo cinema, o mais evidentemente inacurado é a invencibilidade do detetive amador.”
Bem, mas isto aqui, afinal de contas, é um filme – e o filme vai fazer exatamente o que o inspetor Rigby disse. Vai perpetuar o mito de que o detetive amador consegue descobrir o culpado.
A trama que virá a partir daí – O’Dell e a bela Heather saem da Scotland Yard quando o filme está com apenas 13 minutos – será complexa, envolvendo um produtor cinematográfico, Christopher Hampden (o papel de Geoffrey Keen), uma dona de nightclub, Margaret Maybrick (Lois Maxwell), um incêndio ocorrido muitos anos antes, um asilo, um louco internado lá que não parece nada louco…
Não é uma trama ruim, na verdade.
Mas eu não me encantei com o filme, apesar daquela abertura que parecia bem promissora. E não sei muito bem explicar por quê.
Teria sido o excesso de tentativa de fazer humor? Mas combinar crime e algum senso de humor é, afinal de contas, uma tradição inglesa, como o guarda-chuvas e o chapéu coco. Está na obra de dois velhinhos geniais, bem marotos e bem ingleses, Agatha Christie, Dame of the British Empire, e Alfred Hitchcock, Knight of the British Empire.
Teria sido a figura desse Cesar Romero?
Sei lá. Um daqueles casos em que a gente simplesmente não entra em plena sintonia com o filme.
O detetive inglês foi transformado em escritor americano
O IMDb, essa fonte inesgotável de informação, conta que a coisa do detonador Dusseldorf – o coquetel literalmente explosivo – é assim uma espécie de piada interna, como as piadas da firma, que só os funças daquela firma entendem. Está lá no site enciclopédico:
“Logo após os créditos iniciais, em uma cena cômica, Cesar Romero prepara um coquetel que explode. Misturar coquetéis, ou ‘flair bartendering”’, como é conhecido nos Estados Unidos, era um hobby dele, e ele participava de competições. Minha Secretária Brasileira (1942) também tem uma cena cômica em que ele tenta impressionar Betty Grable e John Payne com suas habilidades com coquetéis.”
Vejam só…
Minha Secretária Brasileira, no original Springtime in the Rockies, evidentemente tem Carmen Miranda. Nos cartazes, a ordem dos atores, o billing, é a seguinte: Betty Grable, John Payne, Carmen Miranda, Cesar Romero e Harry James and his Music Makers. A direção é de Irving Cummings. O americano descendente de cubanos Cesar Romero e a brasileira nascida em Portugal Carmen Miranda já haviam trabalho juntos, e também com o mesmo John Payne, um ano antes, em Aconteceu em Havana/Week-End in Havana – mas, diacho, isso é outra história.
Uma palavrinha sobre o diretor, o americano Sam Newfield (1899-1964), Era prolífico – dirigiu mais de 250 longa-metragens em uma carreira longa, iniciada ainda na era do cinema mudo e concluída em 1958. Foi especializado em produções B, os filmes de orçamento baixo e atores menos famosos, principalmente westerns, terror e crime.
E, finalmente Lester Powell, o autor da “popular série da BBC” em que o roteirista americano Orville Hampton (1917-1997) se baseou. Lester Powell (1912-1993) foi um escritor e roteirista inglês que trabalhou para rádio e televisão, autor de roteiros para várias das séries de maior sucesso da TV britânica, como The Big M, The Inch Man, Terminus, The Avengers. Foi para a rádio BBC que ele criou o detetive Philip Odell, personagem de aventuras levadas ao ar do final dos anos 1940 até a década de 1960.
Para que o detetive inglês pudesse ser interpretado por Cesar Romero, o roteirista Hampton, pelo jeito, o transformou em um escritor norte-americano em visita a Londres que, a pedido da moça Heather McMara, se mete a investigar quem poderia ter matado o irmão dela.
Assim, poderíamos parafrasear o investigador Rigby da Scotland Yark: “De todos os mitos perpetuados pelo cinema, um dos mais constantes é a invencibilidade do detetive amador.”
Anotação em dezembro de 2023
Lady in the Fog
De Sam Newfield, Reino Unido, 1952
Com Cesar Romero (Philip O’Dell)
e Bernadette O’Farrell (Heather McMara, a irmã do morto), Lois Maxwell (Margaret Maybrick, a dona da boate), Geoffrey Keen (Christopher Hampden, o produtor de cinema), Campbell Singer (inspetor Rigby), Alastair Hunter (sargento Reilly), Mary Mackenzie (Marilyn Durant), Lloyd Lamble (Martin Sorrowby), Frank Birch (Boswell, da linha aérea), Wensley Pithey (Sid, o bartender), Reed De Rouen (Connors), Peter Swanwick (Smithers), Lionel Harris (Allan Mellon), Betty Cooper (dra. Campbell, a superintendente do asilo)
Roteiro Orville Hampton
Baseado em personagem da série da BBC de Lester Powell
Fotografia Walter J. Harvey
Música Ivor Slaney, com a London Philharmonic Orchestra regida por Muir Mathieson
Montagem James Needs
Casting Michael Carreras
Direção de arte C. Wilfred Arnold
Produção Anthony Hinds, Hammer Films, Lippert Films
P&B, 73 min (1h13)
**1/2