A Senda do Temor / The Chase

Nota: ★★★☆

(Disponível no YouTube em 12/2023.)

É bem interessante este The Chase, de 1946, lançado no Brasil como A Senda do Temor e hoje disponível no YouTube em uma versão colorizada com o título que recebeu em Portugal, Sós Contra o Mundo. Deve seguramente ser ainda melhor na versão original em preto-e-branco, porque é um autêntico filme noir.

O diretor, Arthur Ripley (1897-1961), de filmografia bem pequena, é pouco conhecido – mas o filme se baseia no livro The Black Path of Fear, de Cornell Woolrich, o autor das histórias que resultaram, para mencionar só alguns, em Janela Indiscreta (1954), A Noiva Estava de Preto (1968), A Sereia do Mississipi (1969), Casei-me com um Morto (1950), A Dama Fantasma (1944).

E quem adaptou a história para a linguagem cinematográfica foi Philip Yordan (1914-2003), um dos grandes roteiristas de Hollywood, três indicações ao Oscar, uma vitória (pela história original de A Lança Partida, 1955), autor, entre muitos outros, do roteiro do lendário Johnny Guitar (1954).

A única característica de filme noir que este The Chase não tem, creio, é a femme fatale. Sim, o filme tem uma personagem linda e loura, e por ela o protagonista da história vai correr duríssimos riscos. São três características das femmes fatales do noir – ser linda, loura e fazer um homem correr riscos.

Mas Lorna Roman, ao contrário das femmes fatales, não é aproveitadora, ambiciosa, cínica, safada. Muito ao contrário. É uma vítima: cometeu a besteira de se casar com um sujeito de bela aparência, mas na verdade um gângster brutal, que a mantém prisioneira, sob severa vigilância.

O protagonista da história, Chuck Scott (o papel de Robert Cummings), é um pobretão, um ex-combatente da Marinha (o filme, repito, é de 1946, o ano após o fim da Segunda Guerra Mundial) que estava desempregado, e, por um desses acaso de que a vida é cheia, tanto na ficção quanto na realidade, aconteceu de encontrar na rua de Miami, diante de uma lanchonete, uma carteira recheada de notas e contendo um cartão de visitas. Ao se dirigir ao endereço, Chuck se deparou com uma mansão com todos os sinais evidentes de dinheiro saindo pelo ladrão.

O dono da casa e da carteira era Eddie Roman (o papel de Steve Cochran), que, apesar da má vontade de seu guarda-costas e faz-tudo Gino (Peter Lorre, à esquerda na foto acima, em uma bela interpretação), resolve contratar o sujeito honesto que teve o trabalho de procurar seu endereço para devolver a carteira encontrada na rua.

Lorna, a esposa e prisioneira do gângster Eddie Roman, é interpretada por ,, – e a atriz de mais de 70 títulos, rodados tanto nos Estados Unidos quanto na sua França natal, está lindérrima. Especialmente quando, aos 20 minutos dos curtos 86 de duração do filme, está de pé em um estrado diante do mar da Flórida, o olhar perdido no infinito, e pergunta para o novo motorista do marido: – “O que fica lá adiante, bem à frente?”

– “Havana, eu acho”, responde o ex-fuzileiro naval.

É uma beleza de sequência, uma beleza de diálogo. É quando se define o rumo que a história criada por Cornell Woolrich vai tomar.

A mulher do gângster oferece uma fortuna para fugir dele

What’s out there straight ahead?

Havana, I think.

Lorna então pergunta: – “Você já foi lá?”

Chuck: – “Sim, uma vez, muito tempo atrás.”

Lorna: – “E que tal?”

Chuck: – “Bem, para mim eram hotéis baratos, restaurantes baratos, amigos baratos… Todos os lugares são parecidos quando você não tem dinheiro.”

Meu, que bela frase! “Todos os lugares são parecidos quando você não tem dinheiro.”

Lorna: – “Valeria mil dólares me levar a Havana.”

Chuck: – “Mil dólares?” – e a expressão de Chuck- Robert Cummings é de quem sequer consegue imaginar o que é essa fortuna.

Lorna: – “Sim!”

Chuck: – “Uma passagem de navio custa uns 30 dólares.”

Lorna: – “Eu jamais conseguiria ir sozinha.”

Chuck: – “Por que não?”

Lorna: – “Alguma vez você já teve medo? Medo de verdade?”

Chuck: – “O que você quer que eu faça?”

Lorna: – “Quero que você me leve para Havana.”

Chuck: – “Mas por que eu?”

Lorna: – “Acho que eu posso confiar em você.”

Chuck: – “Você quer é dizer que você pensa que eu pareço um cara que precisa de mil dólares…”

O roteiro prega uma grande peça no espectador

Esse diálogo – repito – acontece quando o filme está com 20 minutos. Aos 30 minutos, o roteiro de Philip Yordan faz uma pegadinha, sem que o espectador perceba, é claro. Mas “pegadinha”, palavra assim no diminutivo, parecendo coisa pequena, é pouco. O que acontece aos 30 minutos do filme é uma grande trapaça de quem conta a história – e só quando o filme chega aos 60 minutos, faltando apenas mais 26 para acabar, é que o espectador percebe que estava sendo enganado.

Relatar exatamente em que consiste essa trapaça do roteiro seria, é claro, um spoiler absurdo. Mas acho que é fundamental registrar que a pegadona existe.

Depois que terminei de ver o filme, voltei para checar os dois momentos – aquele em que a trapaça começa, e aquele em que fica claro que houve a pegadona. Ficam algumas dúvidas, creio – mas, aos 30 minutos, há uma tomada que a rigor é uma indicação de que a história teria ali um desvio de curso.

Gostaria, claro, de ver como é no romance de Cornell Woolrich – se o escritor faz algo parecido, ou se foi uma invenção do roteirista Philip Yordan.

Cornell George Hopley Woolrich (1903–1968) foi um escritor prolífico, que às vezes usava os pseudônimos de William Irish e George Hopley. Seu primeiro romance, Cover Charge, foi publicado em 1926 – e o último, em 1960.

The Black Path of Fear é de 1944 – Hollywood levou portanto apenas dois anos para levá-lo para as telas. Vejo em um comentário de leitor sobre o livro que Woolrich usa muitos flashbacks. Não para transcrever o comentário porque é cheio de spoilers.

Eis o que diz sobre o diretor Arthur Ripley o Dicionário de Cineastas de Rubens Ewald Filho:

“Diretor americano, pseudônimo de Gregg Tallas, de esparsos e curiosos filmes. Nasceu em 12 de janeiro (de 1897), em Nova York. Começou como aprendiz no estúdio Kalem. Passou pela Metro e Vitagraph e nos anos 20 foi contratado por Mack Sennett, como ‘gag writer’, para criar junto com Frank Capra situações para os filmes de um novo comediante, Harry Langdon. Continuou com Capra durante alguns anos, se tornando eventualmente roteirista e produtor.”

Em seu Dicionário de Cinema – Os Diretores, Jean Tulard é ainda mais sucinto:

“É conhecido principalmente como roteirista dos filmes de Langdon, como, por exemplo, Long Pants; mas seus filmes, embora muito mal distribuídos, gozam de uma pequena reputação.”

O Guide des Films de Jean Tulard traz uma sinopse de L’évadeée, a fugitiva, como o filme se chamou na França, que revela fatos fundamentais da história – inclusive o final. Em seguida, faz a seguinte avaliação:

“Uma sólida realização dentro da linha dos filmes noirs americanos dos anos 40 em que o tema do sonho premonitório é muito habilmente utilizado. Iluminações estudadas para criar um clima de angústia e de irrealidade.”

Angústia e irrealidade. Perfeito. É exatamente isso.

Leonard Maltin deu 2.5 estrelas em 4: “Levemente divertido melodrama com o azarado veterano Cummings se envolvendo com um bandido brutal (bem interpretado por Cochran) e sua melancólica esposa. Roteiro de Philip Yordan, baseado em um livro de Cornell Woolrich.”

Em seu livro O Outro Lado da Noite: Filme Noir, o estudioso carioca A.C. Gomes de Mattos escreve:

“O filme, apreciado no seu conjunto, tem algumas falhas, porém é bastante fiel ao universo e às obsessões de Cornell Woolrich, conservando os elementos oníricos e a atmosfera dark e opressiva que caracteriza sua ficção. Como costuma acontecer nos romances de Woolrich, um acontecimento fortuito arrasta o herói para uma aventura, na qual ele não tem controle de nada.”

Gomes de Mattos cita duas sequências de fato importantes e impressionantes. Em uma delas o bandidão Eddie Roman aciona o acelerador do carro, usando um dispositivo especial, enquanto Chuck está dirigindo. O protagonista da história fica apavorado, não compreende o que está acontecendo – e o gângster se diverte. A outra sequência é a do assassinato de um armador que se tornou inimigo de Eddie Roman, Emmerick Johnson (o papel de Llody Corrigan), dentro da gigantesca adega da mansão. É de fato uma cena marcante, memorável, em que a câmara não mostra o pobre homem sendo atacado pelo cachorrão gigantesco do bandido – focaliza a garrafa de conhaque caríssimo que a vítima segurava, e que deixa cair no chão.

Gostei bem deste The Chase. E fiquei com vontade de ver outros filmes com a bela Michèle Morgan…

Anotação em dezembro de 2023

A Senda do Temor/The Chase

De Arthur Ripley, EUA, 1946.

Com Robert Cummings (Chuck Scott),

Michèle Morgan (Lorna Roman)

e Steve Cochran (Eddie Roman), Peter Lorre (Gino), Lloyd Corrigan (Emmerrich Johnson), Jack Holt (comandante Davidson), Don Wilson (Fats), Alexis Minotis (tenente Acosta), Nina Koshetz (Madame Chin), Yolanda Lacca (Midnight), James Westerfield (Job, o mordomo), Jimmy Ames (o assassino), Shirley O’Hara (a manicure)

Roteiro Philip Yordan   

Baseado no livro “The Black Path of Fear”, de Cornell Woolrich       …

Fotografia Franz Planer

Músic a Michel Michelet

Montagem Edward Mann

Direção de arte Robert Usher

Produção Seymour Nebenzal, Nero Films. Distribuição United Artists.

Cor, 86 min (1h26)

***

Título na França: “L’évadée”. Em Portugal: “Sós Contra o Mundo”.

3 Comentários para “A Senda do Temor / The Chase”

  1. Olá. Li o romance do Cornell Woolrich. Então, sobre a questão que você levantou, as decisões tomadas quanto ao curso da história ao longo do filme são apenas do roteirista. Woolrich conduz a história de forma mais convencional.

  2. Olá, Charles!
    Muitíssimo obrigado pela informação! Muita gentileza sua!
    Espero que você volte ao site para ler sobre outros filmes.
    Um abraço, bom fim de semana.
    Sérgio

  3. Sérgio, sou um leitor assíduo do site já há algum tempo. Mas é a primeira vez que comento. Um forte abraço.

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