(Disponível no Now em 6/2022.)
É uma beleza, uma maravilha este Budapest Noir, produção húngara de 2017 que teve seu título original mantido nos Estados Unidos, na Inglaterra, na Espanha, na Polônia (lá foi Budapeszt Noir). Um noir passado em Budapeste – Budapest Noir, portanto. Um título perfeito, universal, como a palavra táxi, por exemplo.
No Brasil virou Crime em Budapeste – mas não faz mal.
É um filme de babar. Cinema grande.
Tem tudo a ver com os noir mais clássicos dos anos 40. O clima, a atmosfera toda é de corrupção, vício, decadência, podridão. A câmara percorre em alguns momentos os lugares pobres, miseráveis da cidade, onde as imagens são feias, as pessoas são ou brutais ou miseráveis, ou as duas coisas.
O protagonista tem muito a ver com os detetives particulares hardboiled, durões, dos romances policiais de Dashiell Hammett e Raymond Chandler que se confundem com os mais autênticos filmes noir. Exatamente como Sam Spade e Philip Marlowe, Zsigmond Gordon (o papel de Krisztián Kolovratnik) convive com todo tipo de imundície de sua cidade, visita os lugares mais sombrios, soturnos, em busca de alguma pista que possa levar à solução de um crime. Exatamente como Spade e Marlowe, Gordon fuma demais, bebe demais – e apanha demais. Mas demais, demais da conta.
Até o tipo de roupa é parecido. Assim como os detetives durões da Califórnia, Zsigmond Gordon é um sujeito que acaba sendo visto com a roupa um tanto suja, um tanto mal-tratada, sempre amassada – como seu próprio dono.
Zsigmond Gordon, no entanto, não é detetive – mas é algo parecido. É jornalista investigativo, que cobre polícia, há anos e anos e anos.
A ação se passa em 1936 – e essa data, a época em que acontece a trama criada diretamente para o cinema pelos roteiristas Vilmos Kondor e András Szekér, é absolutamente fundamental. Budapeste, Hungria, em 1936. Adolf Hitler e seu Partido Nazista governavam a Alemanha e alimentavam uma gigantesca máquina militar e um antissemitismo venenoso, brutal, abissal.
O governo húngaro daquele momento flertava com o nazismo. Simpatizava com ele – ao mesmo tempo em que combatia com ferocidade todos os que demonstravam simpatia pelo outro vizinho poderoso, a União Soviética.
É com imenso talento que os autores da história e do roteiro entrelaçaram o assassinato que Zsigmond Gordon vai investigar com o momento político que a Hungria vivia.
No mesmo dia em que o país parou para dar adeus ao primeiro-ministro, morto por um câncer, aconteceu de o jornalista ter um rapidíssimo encontro com uma mulher de imensa beleza – a mulher que seria assassinada pouco depois, num crime a cuja solução Gordon passaria a se dedicar completamente.
Budapeste em 1936, aquela época absolutamente noir
A diretora Éva Gárdos (sim, este filme noir, sombrio, foi realizado por uma mulher) abriu este Budapest Noir com imagens solenes: um batalhão de soldados em trajes de ocasiões especiais aguarda na estação ferroviária central da capital húngara a chegada do caixão do primeiro-ministro Gyula Gömbös.
Tudo na cidade vai fechar para que o povo acompanhe os funerais do chefe de governo admirador de Adolf Hitler e Benito Mussolini.
Gordon se apresenta ao espectador com a voz em off; explica que é um repórter policial, que investiga crimes, assassinatos.
Nós o vemos tomando um uísque em um belo restaurante, que tem amplo salão e um mezanino sobre parte dele. O jornalista está no mezanino; no salão, uma jovem de pele muito clara e cabelos muito negros está terminando sua refeição. Por suas maneiras, seu porte, dá para perceber perfeitamente que é moça que teve boa educação, de família bem de vida. Ela será tratada por três prenomes diferentes ao longo do filme. (A atriz que a interpreta se chama Franciska Töröcsik, nas fotos acima e abaixo.)
A moça observa que há aquele homem no mezanino. Sobe as escadas, com um andar elegante; senta-se diante dele, cigarro na mão, como a pedir um fósforo. Gordon acende o cigarro dela, a moça pede desculpas e vai embora. Daí a pouco ele pede a conta, e se assusta com a quantia que o garçom anuncia. – “Isso tudo por um uísque?” O garçom conta que a moça havia dito que aquele homem pagaria sua refeição.
Uma moça de maneiras finas, que não tem dinheiro pagar sua refeição, e usa um estratagema para que o garçom cobre a conta do sujeito que jamais a havia visto antes, mas que acendeu o cigarro dela. Uma moça que pede desculpas por seu pequeno golpe.
Personagens interessantes, fascinantes, num contexto histórico igualmente interessante – embora a rigor apavorante. Budapest Noir começa muito, muito, muito bem.
A polícia quer esconder a morte da moça
E continua muito bem.
Gordon recebe um telefonema de um informante, um policial: o corpo de uma mulher havia acabado de ser encontrado no chão da rua tal. Ele vai rapidamente para lá. É uma região degradada da cidade, lugar em que é comum a presença de prostitutas. O corpo estendido no chão é exatamente daquela mulher que estava no restaurante
O jornalista vai visitar o chefe de polícia da capital húngara. Informado pela secretária de que a autoridade está em reunião, o jornalista entra na sala do figurão, senta-se à mesa dele. Fuça em papéis – e vê, de tal maneira que a câmara permita que o espectador também veja, uma foto daquela mesma mulher que ele havia visto há pouco no restaurante e em seguida fora assassinada.
O espectador pode achar estranha a atitude do jornalista, tão absolutamente à vontade diante do chefe de polícia Gellért (Zsolt Anger, na foto abaixo). Tem absolutamente todo o direito. Só lá pelo meio do filme ficaremos sabendo que as reportagens de Gordon foram fundamentais para derrubar o chefe de polícia anterior, sujeito corrupto – queda que permitiu a ascensão de Gellért. A autoridade, portanto, tem uma dívida de gratidão para com o jornalista, embora na verdade não goste dele.
Gordon vai ao necrotério da polícia. É claro que ele conhece bem o legista, são amigos – e a essa altura o espectador já percebeu que, além de ter faro, talento, Gordon também recorre a gorjetas para manter seus informantes sempre falantes. O legista vai mostrar o corpo da moça encontrada morta na rua – e descobre que ele não está mais lá! Foi raptado, tirado de lá sem sua autorização. Rápido no gatilho, Gordon sai do necrotério com o laudo do legista. A bela moça estava grávida.
Fica evidente para o experiente jornalista, e também para qualquer espectador, por menos habituado que ele esteja a um filme policial, que a chefia de polícia quer esconder ao máximo o caso da moça assassinada e deixada na rua mal falada. Que algum figurão importante mandou a polícia esconder o caso.
Bela trama policial – e personagens atraentes
A trama policial é interessante, envolvente – mas os eventos na vida de Zsigmond Gordon são igualmente atraentes.
Gordon é frequentador de um bar-clube um tanto exclusivo, onde há lutas de boxe para platéias finas. Inclusive lutas entre mulheres, o que nos pareceu, a Mary e a mim, bastante interessante. Veremos que o clube pertence ao conde András Vitéz Szöllõsy (János Kulka), um empresário milionário, que tem indústrias na Alemanha e relações cordiais com autoridades do regime nazista.
O jornalista bonitão atrai as atenções de uma bela mulher que está por ali no bar-clube do barão. Veremos que se chama Mira (Hanna Pálos).
No dia seguinte, Gordon se levanta de sua cama antes de Mira. Diz que ela precisa se apressar, ele tem que sair dali a pouco – e aí toca a campainha, e diante de Gordon surge uma moça com algumas malas que a gente percebe na hora que é, se não a senhora esposa dele, no mínimo, no mínimo uma mulher de importância imensa em sua vida.
Chama-se Krisztina Eckhardt (o papel da interessantíssima Réka Tenki, na foto abaixo). Uns seis meses antes, havia abandonado Gordon e ido exatamente para a Alemanha. Fotógrafa profissional, mulher independente, inteligente, no entanto, Krisztina não havia ido para lá por admirar o regime – muito antes ao contrário. Havia feito carradas de fotos que mostravam como estava ali se criando o regime mais odioso, mais criminoso da História da humanidade.
Num rápido diálogo entre os dois amantes que haviam se separado e voltavam a se unir naquela Budapeste que tentava esconder um crime que tinha a ver com figurões, assim, bem em passant, Gordon diz que nenhum jornal húngaro publicaria aquelas fotos. E Krisztina revela então que teve convite da Inglaterra para mostrar lá seu trabalho.
Um país que se dirigia para o abismo
Uma bela jovem, de maneiras educadas, encontrada morta numa região de prostituição – um assassinato que obviamente mexia com gente bem próxima do poder. Um jornalista que investe tudo para encontrar os autores e a motivação do crime. E que está ele mesmo vivendo um momento importante, decisivo, talvez, no relacionamento com a mulher que ama.
Tudo tendo como pano de fundo um dos momentos mais pavorosos da História – o ovo da serpente prestes a ter a casca quebrada.
Os roteiristas Vilmos Kondor e András Szekér e a diretora Éva Gárdos espalharam por este Budapest Noir diversos momentos que vão nos mostrando a chegada do nazismo. Como era inexorável que o nazismo viesse e dominasse tudo.
Há uma sequência impressionante, de uma beleza apavorante, que me fez lembrar Cabaret, a obra-prima de Bob Fosse passada na Berlim daqueles anos. Krisztina e Zsigmond estão em um bar, um belo bar, e um cantor está se apresentando. De repente, um rapaz no meio da audiência berra, insulta o cantor, diz que ele não pode apresentar aquelas merdas judias em um bar húngaro.
Essa é apenas uma das sequências impressionantes que mostram essa coisa apavorante: a Hungria de governo simpático ao nazifascismo estava prestes a ser tomada, dominada por ele, pelo regime criminoso. A ditadura louca, absurda, inimaginável, do racismo absoluto estava chegando, estava chegando, cada vez mais perto – e não se enxergava o que seria possível para deter a maré da insanidade.
Aqueles momentos em que a gente vê claramente que está se dirigindo para o abismo, e não consegue enxergar como impedir a queda anunciada.
O Brasil vive um pesadelo exatamente assim, no momento em que escrevo esta anotação, final junho de 2022, com um presidente da República dizendo – anunciando, prometendo – há meses e meses e meses que vai dar o golpe.
Um visual deslumbrante, caprichadíssaimo
Todo o visual deste Budapest Noir é um deslumbre.
Direção de arte, decoração de interiores, figurinos, é tudo de primeiríssima qualidade. A direção de fotografia – de Elemér Ragályi e Marci Ragályi – é impressionante.
Foi dito lá em cima que a câmara percorre lugares pobres, miseráveis da cidade – e é verdade, isso acontece em alguns momentos. Mas durante a maior parte do filme o que vemos são os locais mais ricos, mais centrais de Budapeste, e as tomadas externas confirmam o que dizem todos os que conhecem a capital húngara, Mary inclusive: é uma das mais belas cidades do mundo. As construções são maravilhosas, suntuosas, de fazer cair o queixo, de babar.
A diretora e seus diretores de fotografia fizeram questão de mostrar em tomadas de beleza extasiante a maravilha que é a Ponte Széchenyi Lánchíd, ou Ponte das Correntes, que cruza o Danúbio e une Buda e Peste, os lados oriental e ocidental da cidade. É bem junto da estrutura da ponte que há um diálogo impressionante entre o jornalista Gordon e o chefe de polícia Gellért. Este último exige que Gordon pare de xeretar, de investigar a morte da moça. E faz ameaças.
É claro que Gordon não vai desistir.
Zsigmond Gordon, um Philip Morlowe da capital húngara…
Enquanto via o filme, encantado com a beleza visual, com a trama muitíssimo bem urdida, não pude deixar de me incomodar um pouco com a forma com que o filme trata o personagem central.
É, provavelmente, o único defeitinho do filme. Esse Zsigmond Gordon criado pelos realizadores e vivido por Krisztián Kolovratnik é um tanto heróico demais, corajoso demais, bonitão demais, sedutor demais. É muito exagero para criar um protagonista. Ele é famoso demais, respeitado demais. Não há mulher que não se derrame por ele.
Exagero demais…
Vejo que Krisztián Kolovratnik é um rapaz jovem. Nasceu em 1977, em Budapeste; é ator e também diretor e produtor. Sua filmografia como ator tem 31 títulos, entre filmes e séries.
A atriz Réka Tenki, que faz Krisztina, o amor da vida do jornalista Gordon, também é muito jovem, de 1986. Já fez 25 filmes e/ou séries, inclusive Atrás da Porta/The Door (2012), co-produção Hungria-Alemanha dirigida por István Szabó, o mais conhecido internacionalmente dos realizadores húngaros.
Éva Gárdos, a diretora, tem uma história de vida absolutamente impressionante, que ela mesma contou, ao menos em parte, no filme Uma Rapsódia Americana/An American Rhapsody, de 2001, escrito e dirigido por ela, com Scarlett Johansson no papel de Suzanne, alter ego da própria Éva, e Nastassja Kinski no papel da mãe.
Éva nasceu em Budapeste, em 1950; sua família – pai, mãe, uma irmã mais velha – fugiu da Hungria comunista quando ela era criança bem pequena, um bebê; por uma circunstância determinada, no momento da fuga através de fronteira duramente controlada por militares, a garota ficou para trás. Uma família amiga ficou com ela, deu-lhe nova identidade, e a criou até os 7 anos, no meio rural.
De repente, os pais – então radicados no Canadá – fizeram contato com os pais adotivos, e Éva foi posta num avião rumo a um país desconhecido e uma família desconhecida.
A adaptação – ela mostra isso em Uma Rapsódia Americana, pelo que se diz do filme, que infelizmente não tive a oportunidade de ver – não foi nada, nada, nada tranquila.
Adulta, construiu sua carreira no cinema americano nos departamentos de montagem – como Robert Wise, para dar apenas um exemplo definitivo. Trabalhou como montadora em mais de 20 filmes a partir de 1982, inclusive Barfly: Condenados pelo Vício (1987), de Barbet Schroeder, e Marcas do Silêncio (1996), de Anjelica Huston.
Pelo imenso talento que demonstra neste Budapest Noir, é de se lamentar que Éva Gárdos não tenha tido oportunidade de dirigir mais filmes.
Anotação em 6/2022
Crime em Budapeste/Budapest Noir
De Éva Gárdos, Hungria, 2017
Com Krisztián Kolovratnik (Zsigmond Gordon)
e Réka Tenki (Krisztina Eckhardt, a fotógrafa, namorada de Gordon), János Kulka (conde András Vitéz Szöllõsy, o empresário milionário), Adél Kováts (Irma Szöllõsyné, a mulher do conde milionário), Zsolt Anger (Andor Gellért, o chefe de polícia), Kata Dobó (Margó Vörös, a dona do bordel de luxo), Franciska Töröcsik (a moça morta, Fanny), Szabolcs Thuróczy (Skublics, o fotógrafo), Zoltán Schneider (Csuli), Tamás Fodor (Mór), Zoltán Mucsi (Vogel), Zoltán Rátóti (ministro Kuzma), Sándor Szûcs (Dr. Pazár), Mari Nagy (Teréz Ökrös, a velha costureira), István Hunyadkürthy (Mester), Imre Sipos (Pojva, o boxeador bandido), Hanna Pálos (Mira, a moça do bar que trepa com Gordon)
Roteiro Vilmos Kondor, András Szekér
Fotografia Elemér Ragályi, Marci Ragályi
Música Atti Pacsay
Montagem Matyas Fekete
Casting Helga Mandel
Desenho de produção Pater Sparrow
Figurinos Andrea Flesch
Produção Ildiko Kemeny, Pioneer Pictures
Cor, 95 min (1h35)
***1/2