(Disponível na Netflix em 1/2023.)
Cinco Dias Sem Nora, produção mexicana de 2008, abre com caprichados close-ups de objetos – pratos, talheres, guardanapos – sendo colocados em uma grande mesa, forrada por uma bela toalha de linho, para dez pessoas. É tudo cuidadoso, feito com esmero, carinho, competência – tanto a forma com que a mesa está sendo posta quanto o jeito com que aquilo é filmado.
Me ocorreu que a equipe tinha gente – o diretor de arte, o diretor de fotografia, talvez o próprio realizador – que vinha do cinema de publicidade, um meio que privilegia cada pequeno detalhe de um close-up. E me ocorreu também, só de ver aquela sequência de abertura, enquanto iam rolando os créditos iniciais, que estávamos diante de um filme bem realizado, feito com competência, por gente talentosa e experiente.
Errei feio nesse último detalhe, o adjetivo “experiente”. Conforme vimos depois, a diretora Mariana Chenillo – que é também autora da história e do roteiro – era uma jovem de apenas 31 anos de idade no ano em que 5 Días Sin Nora foi lançado. E esta foi sua estréia na direção de longa-metragem – antes, havia dirigido apenas três curtas.
Meu Deus do céu e também da Terra: que talento tinha já essa moça, com apenas 31 anos!
Muitíssimo bem realizado em cada quesito técnico, Cinco Dias Sem Nora é uma delícia de filme. Uma história de família que começa com um suicídio mas não é, de forma alguma, um drama pesado – é uma gostosíssima comédia, daquelas feitas não para que o espectador dê grandes gargalhadas, mas para que desfrute do filme com um quase permanente sorriso.
E é um daqueles filmes que gostam de seus personagens, que simpatizam com eles – mesmo com seus defeitos e problemas, pois problemas e defeitos todos nós temos.
Um filme feito com carinho.
Um filme que fala com bom humor dos hábitos dos judeus
A Nora do título e todos os seus parentes e amigos próximos são judeus. Cinco Dias Sem Nora, assim, pertence àquela linhagem de filmes das mais diversas partes do mundo em que se fala – em geral com muito bom humor – dos costumes judaicos.
Como, por exemplo, o americano Sete Dias Sem Fim/This is Where I Leave You (2014), em que, quando morre o marido, um judeu não praticante da religião, a mãe não judia de quatro filhos adultos, interpretada por Jane Fonda, convoca a família para um Shiva, um ritual em que a família de um morto se reúne para um velório de sete dias.
Ou o suíço O Despertar de Motti/Wolkenbruchs wunderliche Reise in die Arme einer Schickse (2018), em que o Motti do título, um rapaz simpático de uns 18 ou 20 anos, tem a vida atormentada pela mãe, que não o deixa quieto um minuto, liga para o celular dele a cada meia hora para saber se está tudo bem – e tem a obsessão de arranjar o casamento dele com a filha de uma boa família judia ortodoxa como ela.
Ou os filmes do argentino Daniel Burman, quase todos ambientados na comunidade judaica de Buenos Aires, como O Abraço Partido (2004). As Leis de Família/Derecho de Família (2006), O Décimo Homem/El Rey Del Once (2016).
Ou ainda o excelente brasileiro O Ano em Que Meus Pais Saíram de Férias (2006), passado na comunidade judaica do bairro do Bom Retiro, em São Paulo. Isso só para citar alguns poucos.
Um suicídio planejado meticulosamente
Nora (o papel, quando maduira, de Silvia Mariscal) escolheu e preparou tudo cuidadosa, meticulosamente, até mesmo – ou sobretudo – o dia exato em que seu corpo seria encontrado, a quinta-feira em que se iniciavam as festividades da Pessach, a Páscoa judaica.
Na quarta-feira, ela terminou de deixar pronta ou bem encaminhada uma imensa quantidade de pratos de comida – vários tipos de entradas, de pratos principais, de sobremesas. Pregou etiquetas com os nomes dos pratos em diversas vasilhas na geladeira. Preparou cartas de despedida para José (Fernando Luján), o ex-marido, que morava no prédio em frente ao dela e que ela espiava com o binóculo, para Rubén (Ari Brickman), o único filho do casal, e para a empregada, pessoa de confiança dela, Fabiana (Angelina Peláez). Recolheu cartas, fotografias, agendas, diários e os reuniu todos numa escrivaninha que trancou com chave. Havia dito ao porteiro que estaria fora de casa e que, quando um portador chegasse na manhã de quinta-feira para entregar várias caixas com carne, o mandasse entregar no apartamento de José. E, antes de se deitar, tomou todo o conteúdo de três frascos de remédio, mais do que o suficiente para levá-la desta para melhor.
Na manhã de quinta-feira, o entregador de carne bateu então na porta de José, explicando que o porteiro do prédio em frente havia dito para ele deixar as caixas ali.
Eram muitas caixas – não cabiam todas na geladeira de José. E lá foi ele, carregando as caixas, atravessar a rua e subir ao apartamento da ex-mulher – haviam se separado 20 anos antes. Como Nora não atendia, José usou a chave que guardava consigo para emergências.
Não demorou a dar com a ex-mulher morta, deitada em sua cama, uma expressão tranquila no rosto.
Nora já havia tentado se matar 14 vezes. A existência das várias tentativas é mencionada várias vezes ao longo do filme; não se diz expressamente o motivo, mas dá para o espectador inferir que Nora sofria de distúrbio bipolar, a doença até algumas décadas atrás conhecida como psicose maníaco-depressiva.
O corpo só poderia ser enterrado daí a quatro dias
Logo depois de encontrar o corpo, José liga para Rúben, deixa recado no celular do filho, pede que ele dê retorno assim que possível. Rubén estava em viagem aos Estados Unidos, com a mulher e as duas filhinhas ainda crianças. Em seguida liga para Alberto, médico e amigo do casal fazia décadas. Alberto rapidamente vai até o apartamento de Nora.
Logo depois chega o rabino Jacowitz (Max Kerlow). Havia recebido a notícia da morte de Nora do sogro de Rubén, o pai de sua mulher Bárbara (o papel da bela, fascinante Cecilia Suárez). Os diálogos bem feitos, inteligentes, demonstram rapidamente para o espectador que o pai de Bárbara é um homem muito rico, influente, respeitadíssimo pelo rabino Jacowitz – até porque é um dos principais doadores para as obras de reforma da sinagoga.
O rabino Jacowitz expõe para José e Alberto – e para o espectador, é claro – a situação. Como estão para se iniciar as festividades da Pessach, ou bem Nora seria enterrada até as 15 horas daquela quarta-feira – o que seria impossível, já que o filho dela estava fora do país e não teria forma alguma de chegar a tempo –, ou seria preciso esperar as duas primeiras noites da Pessach, a de quinta e a de sexta. Mas depois viria o sábado, e não se enterra ninguém no Shabat.
Assim, seria necessário esperar até domingo. – “Ou seja”, especifica o rabino, “quase quatro dias após a morte da sua esposa.” Ao que José acrescenta, mais uma vez: – “Ex esposa”.
Mas há ainda uma outra questão, lembra o rabino Jacowitz. Seria necessário afirmar que Nora havia morrido de um ataque cardíaco, ou algo assim. Não poderia haver menção a suicídio.
E o rabino providencia o envio para o apartamento de Nora de um assistente seu, um jovem que pretende vir a ser rabino, chamado Moisés (Enrique Arreola, à direita na foto acima), para ficar rezando junto do corpo de Nora e cuidando para que ele estivesse sempre coberto de gelo seco.
Vai acontecer todo tipo de problema com a família
Sou detalhista, acabei me alongando no relato dos fatos – mas não houve qualquer tipo de spoiler até aqui. Esses fatos todos contados aí ocorrem antes que o filme chegue a 15 minutos. Cuidarei para que também não haja spoilers daqui para a frente.
É necessário registrar apenas que José Kurtz é um judeu não religioso. Mais ainda: é ateu. É um tanto rebelde, não gosta de seguir muitas das tradições judaicas. Recusa-se a mentir sobre a causa da morte de Nora – o que causará problemas seriíssimos daí para a frente. E ainda agride os costumes do rabino Jacowitz ao oferecer para ele algo duplamente proibido, por causa da massa e do tipo de carne – uma pizza de linguiça.
Todo tipo de problema vai acontecer a partir daí com a família. Até porque José vai ficar sabendo de segredos que Nora havia escondido dele muito bem.
Os suicidas são enterrados junto com os criminosos
Não sei dizer se é de conhecimento amplo, geral e irrestrito entre os góis, os não judeus, essa questão de que os suicidas não podem ser enterrados junto com os demais mortos. Segundo as leis judaicas – e o filme fala muito disso –, os suicidas cometeram um crime contra a vida, um grave pecado, e por isso só podem ser enterrados em locais no fundo do cemitério, perto dos muros externos. Junto com os criminosos.
De fato não sei se este é um fato conhecido por todos. Minha geração ficou sabendo disso por causa do jornalista Vlado Herzog e do rabino Harry Sobel, essas duas maravilhosas figuras. Quando Vlado morreu torturado, nos porões do DOI-Codi, na Rua Tutóia, em São Paulo, em outubro de 1975, apenas três meses depois do nascimento da minha filha, a versão oficial dada pelo Exército foi de que ele havia se matado.
Se ele fosse enterrado no canto distante do cemitério, a comunidade judaica de São Paulo estaria admitindo como verdadeira a mentira deslavada da ditadura. Por interferência pessoal do rabino Harry Sobel, e em desafio ao regime militar, o corpo de Vlado foi enterrado em área nobre no Cemitério Israelita do Butantã.
O filme levou oito prêmios da Academia mexicana
É admirável o trabalho dos atores deste Cinco Dias Sem Nora. Todos estão muito bem, mas, naturalmente, quem mais impressiona é Fernando Luján, já que José Kurtz é o protagonista da história e está presente em praticamente todas as sequências do filme. Filho de um casal de atores, ela mexicana, ele argentino radicado no México, Fernando Luján (1938-2019) nasceu na Colômbia, onde os pais estavam em uma turnê – é um mexicano nascido em Bogotá! Sua filmografia tem 123 títulos, a partir de 1953, e inclui, por exemplo, Ninguém Escreve ao Coronel (1999), adaptação do romance de Gabriel García Márquez dirigida por Arturo Ripstein, em que interpretou o papel título.
A única outra pessoa do elenco que reconheci é a linda, interessante Cecilia Suárez, que faz Bárbara, a mulher de Rubén, o filho único de José e Nora. Tínhamos visto Cecília Suárez alguns meses antes na ótima série Alguém Tem Que Morrer/Alguien Tiene que Morir (2020), bela co-produção México-Espanha, em que ela faz o papel principal, da mulher mexicana que, jovem, se apaixonou por um espanhol que viria a se revelar um sádico torturador a serviço da ditadura de Franco.
Cinco Dias Sem Nora teve nada menos de 12 indicações ao Ariel, o prêmio da Academia Mexicana de Artes e Ciências Cinematográficas – e levou oito das estatuetas, entre elas as de melhor filme, melhor ator para Fernandez Luján, melhor atriz coadjuvante para Angelina Peláez e melhor roteiro original para Mariana Chenillo.
Uau, meu! Isso é que é estréia!
Depois deste aqui, Mariana Chenillo dirigiu mais quatro longa-metragens e também quatro séries de TV. Gostaria muito de ter a oportunidade de ver alguns dos trabalhos dessa moça de imenso talento.
Anotação em janeiro de 2023
Cinco Dias Sem Nora/5 Días Sin Nora
De Mariana Chenillo, México, 2008
Com Fernando Luján (José Kurtz)
e Ari Brickman (Rubén Kurtz, o filho de José e Nora), Juan Carlos Colombo (dr. Alberto Nurko, o médico amigo da família), Enrique Arreola (Moisés, o assistente do rabino Jacowitz), Max Kerlow (rabino Jacowitz), Silvia Mariscal (Nora Kurtz idosa), Marina de Tavira (Nora Kurtz jovem), Juan Pablo Medina (José Kurtz jovem), Angelina Peláez (Fabiana, a empregada), Cecilia Suárez (Bárbara Kurtz, a mulher de Rubén), Arantza Moreno (Paola, filha de Rubén e Bárbara), Vanya Moreno (Laura, filha de Rubén e Bárbara), Verónica Langer (tia Leah), Martin LaSalle (rabino Kolatch), Fermín Martínez (o porteiro), Jaime Titkin (o rabino substituto)
Argumento e roteiro Mariana Chenillo
Fotografia Alberto Anaya
Música Daria González Valderrama
Montagem Mariana Chenillo, Óscar Figueroa
Casting Alejandro Reza
Desenho de produção Alejandro García
Figurinos Gabriela Fernandez
Produção Mariana Chenillo, Laura Imperiale, Cacerola Films, Fidecine, Instituto Mexicano de Cinematografía (IMCINE)
Cor, 92 min (1h32)
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Título nos EUA: Nora’s Will.