(Disponível na Netflix em 5/2022.)
O dia-a-dia, as atribulações, os problemas, as chatices, e até mesmo os momentos de alguma alegria na vida de quatro grandes amigas beirando os 50 anos na Los Angeles de hoje. Tudo contado com muito bom humor, simpatia e uma bela capacidade de rir das coisas desagradáveis da vida.
Parece ter sido um trabalho coletivo esta minissérie On the Verge, no Brasil À Beira do Caos, 12 episódios (ufa!, quantos!) de apenas 30 minutos cada (aaah!, ainda bem). A idéia básica, a criação da coisa toda é creditada a Julie Delpy, aquela gracinha. Ela é uma das quatro protagonistas, ao lado de Elisabeth Shue, aquela atriz interessantíssima, e mais Sarah Jones e Alexia Landeau. Julie e Alexia Landeau assinam o roteiro de 11 dos episódios, sobrando um para outra mulher, Emily Ryan Lerner.
Um trabalho coletivo – e basicamente de mulheres.
Elisabeth Shue não escreveu – mas foi uma das produtoras executivas, ao lado de Julie Delpy e mais uma penca de gente.
Julie dirigiu, ela mesma, cinco dos 12 episódios. Mathieu Demy dirigiu quatro e David Petrarca os outros três.
Sim, Mathieu Demy. Ele mesmo, o filho dos grandes Jacques Demy e Agnès Varda. Mathieu Demy dirigiu quatro episódios e interpreta Martin, o marido de Justine, a personagem de Julie Delpy.
A sensação que se tem é que essas pessoas todas se divertiram bastante ao fazer a série. Dá para sentir que eles ficaram amigos, e trabalharam à vontade, com espírito de camaradagem, de companheirismo.
Na foto, da esquerda para a direita, Alexia Landeau (Ell), Elisabeth Shue (Anne), Sarah Jones (Yasmin) e Julie Delpy (Justine),
Quando não têm muitos problemas, elas inventam alguns
Justine, a personagem de Julie Delpy, é uma chef – competente, reconhecida, famosa. Não é a dona do seu restaurante – o dono é um amigo dela, Jerry (o papel de Giovanni Ribisi). Ela e o marido Martin se mudaram da França para os Estados Unidos faz bastante tempo; o filho do casal, Albert (Christopher Convery), um menino belo como um anjo renascentista, aí de uns 12, 13 anos, nem fala francês direito, para desgosto profundo dos pais.
Justine é competente, repito – mas não é uma profissional tranquila. Ao contrário: está tensa, na maior parte do tempo. É respeitada pelos funcionários da cozinha, mas às vezes discute, briga com eles à toa, sem motivo sério algum.
Tampouco é uma mãe tranquila. Inquieta-se com tudo o que diz respeito ao filho. Num diálogo gostoso, lá mais para a metade da série, se demonstra aflita ao saber que um professor tem admiração pelo belo Albert – e aí é o garoto que tem que dizer algo tipo “mãe, ele é pai de três filhos, não é um pedófilo, não fique grilada”.
Mas o casamento, definitivamente, não vai bem. Martin é um arquiteto, na França tinha tido uma bela carreira, mas nos Estados Unidos não havia conseguido se deslanchar. E a falta de emprego o deixava mal, e mal, e mal – e aí praticamente não havia sexo entre eles. A falta de sexo, no entanto, não era o pior dos problemas do casal. A questão é que o tal do Martin é um chato, um chato de galocha.
Anne – o papel de Elisabeth Shue – é uma figurinista, uma designer de roupas. Parece que é competente, é boa no que faz – mas ainda não encontrou uma boa posição no mercado tão competitivo. Aos poucos, vamos vendo que Anne, apesar de estar se aproximando dos 50 anos, ainda é sustentada pela mãe, uma judia podre de rica, Sandra (o papel de Stephanie Powers, meu Deus do céu e também da Terra, a atriz bonitinha que vi em vários filmes dos anos 60 e 70…)
Anne trabalha, e muito, e bem – mas na verdade é a mãe que sempre a socorre com algum dinheiro aqui, algum dinheiro ali. E o marido de Anne, George (Troy Garity), esse não faz coisa alguma na vida, a não ser ficar doidão com a mulher que o sustenta. Usam todo tipo de droga que passar pela frente – e uma droga que não passa jamais na frente de George é o ter que trabalhar. Lá pelas tantas ele vai pedir um tempo na relação – e Anne, com o dinheiro de mamãe, vai alugar um apartamento para ele.
O casal tem um filho, Sebastian (Sutton Waldman), garoto aí também na faixa dos 12 anos, que é uma figura hermafrodita – ou, a rigor, abertamente feminina. Anne não parece muito à vontade para conversar com o filho sobre sua sexualidade – lá pelo último episódio será Sebastian que puxará o assunto com a mãe.
Embora Sebastian já esteja com uns 12 anos, Anne ainda paga pelos trabalhos de uma au pair, como eles chamam adolescentes estudantes que, a rigor, trabalham como babás. A au pair da casa se chama Gretchen (Jennifer E. Gardner), é uma danada de uma folgada, preguiçosa, chata de galocha – que, eventualmente, se revelará grávida, e dirá que não suporta crianças, uma frase perfeita para ser dita por uma babá.
Dá para dizer que, de uma maneira geral, as personagens de À Beira do Caos, quando não tem muito problema, inventam mais alguns.
Ell teve três filhos de três homens diferentes
Ell (o papel de Alexia Landeau) é a mais cheia de problemas das quatro amigas.
A começar pelo número de filhos – e pelo jeito com que teve os filhos.
Filhos, todo mundo que já teve algum está cansado de saber, é a melhor coisa do mundo – mas não é algo fácil. Para começo de conversa, os danados vêm sem bula, e, depois que chegam, não deixam você despreocupado um único momento sequer. Exigem atenção total, o tempo absolutamente todo.
Pois bem: diferentemente das três grandes amigas, Ell não teve um único filho. Teve três – e cada um com um pai diferente, um negro, um branco e um japonês. Para piorar ainda mais a situação, se é que pode haver pior coisa do que uma mãe solteira de uma garota mulata, um garoto branco e um caçula japa, Ell não tem propriamente assim um talento, uma profissão que a permita ganhar a vida.
É uma pessoa de ótimo coração – mas sem jeito para tocar a vida, coitada. Até quando as amigas tentam ajudar, e arranjar um bico para ela, a mulher se mostra incompetente.
Comparada a Ell, até que Yasmin (Sarah Jones) não é uma pessoa de vida tão complicada. Ela está casada, continua casada com o pai de seu filho, e tanto o marido, Will (Timm Sharp), quanto o filho, Orion (Jayden Haynes-Starr), são pessoas legais. Na verdade, o casamento de Yasmin é o melhor das três amigas casadas: Will, que trabalha na área de informática, é um bom sujeito, e se dá muito bem tanto com a mulher quanto com o filho.
O problema, ali, é a própria Yasmin. Negra, e persa, ela tem um passado nebuloso, que esconde de todo mundo – não apenas do marido, mas também das três amigas. A série opta por não dizer explicitamente o que é afinal que ela esconde do seu passado – mas o que dá para a gente entender é que ela teve uma atuação como agente de espionagem, de serviço secreto, no Oriente Médio.
Agora, absolutamente americana, casada com americano, mãe de garoto americano, Yasmin é procurada por alguém indicado por um primo, e forçada a fazer um trabalho para uma organização secreta anti-Israel.
Uma série leve, gostosinha de se ver
Essas são as quatro protagonistas da história. Uma chef francesa com o casamento em crise. Uma figurinista que vive com o dinheiro da mãe, e está com o casamento em crise. Uma mãe solteira de três filhos que tem uma vida que é sinônimo de crise. E uma mulher bem casada que, diabo, também está em crise.
Quatro mulheres quase à beira de um ataque de nervos. On the Verge, o título original, significa exatamente “à beira de”. O Almodóvar de 1988, Mulheres à Beira de um Ataque de Nevos, foi distribuído nos países em língua inglesa como Women on the Verge of a Nervous Breakdown.
Mas o “à beira” da parisiense Julie Delpy, classe 1969, tem pouquíssimo a ver com o madrilenho Pedro Almodóvar, classe 1949, de Mujeres al Borde de un Ataque de Nervios. Os problemas daquelas quatro jovens senhoras são muitíssimo mais leves do que os dos personagens almodovarianos. A rigor, a rigor, a rigor, os dramas de Justine, Anne, Ell e Yasmin são mais assim de gente que está bem de vida e então, se não tem problema, nóis inventa.
Fiquei com essa sensação enquanto víamos os episódios da série – e vimos de fato como uma série, dois episódios a cada noite, e aí, vários dias depois, mais dois episódios, sem pressa, sem qualquer tipo de urgência, de maratonagem. A sensação de que boa parte dos problemas daquelas moças não chega a ser grande – e, na verdade, as autoras tentaram criar problemas para que existisse a série.
É exatamente isso. On the Verge é uma série gostosinha de se ver, porque fala da vida de pessoas “normais”, comuns, gente como a gente, e porque tem belas atrizes, em especial essas maravilhosas Julie Delpy e Elisabeth Shue (as duas na foto acima), esplendorosamente belas ao redor dos cinquentinha, já não mais garotinhas, mas mulheres, mulheres maduras, já um tanto cheinhas nos quadris, ambas – e lindérrimas.
Gostosinha de se ver. E não muito mais que isso. Leve, gostosinha de se ver. Nada assim propriamente marcante. Mas, diacho, nem só de coisas marcantes é feita a vida, né não?
Ah, sim, só um registro: Julie e suas amigas escolheram terminar a série no momento da chegada da pandemia de Covid. Foi uma escolha muito boa, em termos de história, de trama – um momento importante na História que acaba vindo junto com um momento de decisão para cada uma das quatro protagonistas.
Anotação em maio de 2022
À Beira do Caos/On the Verge
De Julie Delpy, criadora, EUA-França, 2021
Direção Julie Delpy, Mathieu Demy, David Petrarca
Com Julie Delpy (Justine),
Elisabeth Shue (Anne),
Sarah Jones (Yasmin),
Alexia Landeau (Ell)
e Mathieu Demy (Martin, o marido de Justine), Troy Garity (George, o marido de Anne), Timm Sharp (William, o marido de Yasmin), Giovanni Ribisi (Jerry, o dono do restaurante de Justine), Kai To (Kai, o caçula de Ell), Christopher Convery (Albert, o filho de Justine), Sutton Waldman (Sebastian, o filho de Anne), Duke Cutler (Oliver, filho de Ell), Daphne Albert (Sarah, filha de Ell), Jayden Haynes-Starr (Orion, filho de Yasmin), Dhruv Uday Singh (Evan), Jennifer E. Gardner (Gretchen, a babá de Sebastian), Luke Tennie (Fred), Brady Smith (Jason), Sal Velez Jr. (Jesus), JR Bourne (Adam), Minerva García (Maria). Emily Wagner (Joan)
Argumento e roteiro Julie Delpy (criadora), Alexia Landeau, Emily Ryan Lerner
Fotografia Doug Emmett, Nicole Hirsch Whitaker
Montagem Liza Cardinale, Fabienne Bouville, Sam Seig
Casting Wendy O’Brien
Desenho de produção Celine Diano
Produção The Film TV, Canal+, Netflix, Barnstormer Productions, StudioCanal.
Cor, cerca de 360 min (6h)
**1/2