(Disponível na Netflix em abril de 2022.)
Todo Va a Estar Bien, série mexicana de 10 episódios de cerca de 30 minutos cada, criada e dirigida pelo aclamado ator Diego Luna, é extraordinariamente bem realizada. Tão extraordinariamente bem realizada quanto, na minha opinião, às vezes comprida demais, às vezes não muito clara, às vezes chata em sua incessante busca por ser atualizada, moderninha, o mais uptodate que possa haver, e às vezes estranha e lamentavelmente fazendo tempestades em copos d’água que já deveríamos há muito ter sido deixado para trás.
Espero justificar mais abaixo cada uma dessas características da série. Não sei se vou conseguir…
O tema fundamental é casamento, maternidade/paternidade – mas o tom não é de drama denso, sério, pesado. Não, não, de forma alguma. O tom é bem-humorado, leve, suave – tem algum drama, sim, é claro, já que afinal de contas o tema são as relações dos pais com os filhos, que são das coisas mais difíceis que há no mundo, até porque eses locos bajitos não vêm com bula – e que ficam mais difíceis ainda quando o casamento vai mal.
O casamento dos protagonistas, Julia e Ruy – os papéis de Lucía Uribe e Flavio Medina, ótimos, excelentes –, está acabando. Mas tudo é contado bem humoradamente. Não é um drama. É uma comédia.
O casamento está acabando – e a série começa mostrando isso de maneira brilhante.
Em um fórum, um gabinete do Judiciário, que é o pior lugar para um casamento acabar, um homem está interrogando Julia ao mesmo tempo em que, em outra sala, uma mulher questiona Ruy.
– “Eu vou fazer uma série de perguntas muito pessoais para realizar um perfil psicobiográfico da sua pessoa para ajudar o juiz a tomar uma decisão sobre a guarda de Andrea”, diz o funcionário público para Julia. E põe pessoal nisso. Uma absurda, louca, sem qualquer sentido invasão do Estado sobre a vida pessoal, íntima, de um casal:
– “Com que idade começou sua vida sexual?”
– “Quantos parceiros sexuais já teve?”
– “Já usou substâncias psicotrópicas?”
– “Como descreveria a relação com seus pais?”
– “Com que idade conheceu o pai/a mãe de sua filha?”
A câmara do diretor de fotografia Damián García mostra em close-up os rostos de Julia e de Ruy. Já nestes primeiros poucos minutos de Todo Va a Estar Bien os realizadores nos desnudam quem são aquelas duas pessoas – dois jovens, ela aí na faixa dos quase 30, ele na dos 40 e poucos. (A atriz Lucía Uribe é de 1992, portanto estava com 29 em 2021, o ano de lançamento da série; Flavio Medina é de 1978, estava com 43.)
O Estado não tinha direito algum a ficar perguntando essas coisas íntimas, mas nós ficamos sabendo que Ruy não sabe dizer quantos parceiros sexuais já havia tido, enquanto Julia diz com firmeza que haviam sido quatro até então – e começara a vida sexual aos 18.
Ruy tinha 32 anos quando conheceu Julia. Ela tinha apenas 20.
Nos meses em que se passa a ação, a filhinha única do casal, Andrea (interpretada por Isabella Vazquez Morales, um amor de garotinha, coisa mais fofa do mundo) está aí com uns 6 anos.
De repente tudo vira um inferno
São um casal classe média daquela imensidão que é a Cidade do México – duas pessoas que estudaram, têm boa cultura geral. Ruy tem um emprego em uma emissora de rádio, é meio DJ, meio comunicador; Julia é designer gráfica, trabalha por conta própria, em parceria com um grande amigo – e é quem ganha mais dinheiro. Moram numa casa ampla, gostosa, que os dois compraram após se casarem. Vive com eles e com a pequena Andrea uma empregada – de origem indígena, como a empregada da família em Roma (2018), o belo filme de Alfonso Cuarón – que na verdade é da família: tinha trabalhado para a mãe de Julia, conhece a moça desde que ela era adolescente. Chama-se Idalia, é interpretada pela excelente Mercedes Hernández, e na maior parte do tempo em que a relação do casal vai ficando amarga, será a pessoa mais centrada, mais com a cabeça no lugar da casa.
Dá para perceber que Ruy e Julia foram bastante apaixonados um pelo outro no passado. Quando, depois daquela abertura brilhante com os dois falando intimidades para funcionários públicos de uma vara de família, no meio de uma disputa sobre a guarda da filhinha Andrea, há uma volta para três meses antes, os dois ainda estão bem. Com os problemas de sempre de todos os pais, é claro, mas basicamente estão bem um com o outro – e se mostram bons pais, amorosos, que sabem dividir as tarefas, os cuidados com a garotinha.
Mas as coisas na relação entre eles vão se degringolando muito rapidamente – a tal ponto que Julia acaba procurando um advogado, o que força Ruy a também procurar um. Como as coisas sempre vêm em ondas como o mar, Ruy tem um problema gravíssimo na rádio, ao ser acusado de assédio, ao vivo, por uma colega de trabalho, Rebeca (Ruth Ramos). Vira saco de pancada nas redes sociais e perde o emprego, ao mesmo tempo em que a mulher está querendo a separação – e Julia ainda por cima começa um relacionamento com o dentista da filhinha, Fausto (Pierre Louis).
Tudo de repente vira um gigantesco inferno.
Pessoas inteligentes, safas, fazendo besteira
Uma série extraordinariamente bem realizada – mas às vezes fazendo tempestades em copos d’água muito antigos.
Mary, mais que eu, ficou bastante incomodada quando, ali pelo segundo e terceiro dos dez episódios, Ruy e Julia, pessoas legais, inteligentes, modernas, começaram a cair naquelas besteiras tão antigas de não conseguir resolver seus problemas entre eles mesmos, e recorrer à Justiça – a pior coisa que pode acontecer a um casal.
Todo Va a Estar Bien, de fato, dá um mergulho no túnel do tempo e vira uma espécie versão mexicana de Kramer x Kramer.
Diabo: não é achar que, por estarmos nos anos 2020. não há mais problemas quando o casamento acaba, o casal se separa e discute quem fica com a casa, quem fica com a guarda da filhinha. É claro que os problemas existem, e são muitos, e são pesadíssimos. Epa: sou doutor nisso! Passei por duas separações, dois fins de casamento – e separação, fim de casamento, isso é uma das barras mais pesadas que pode haver na vida. Quando a mãe da minha filha e eu nos separamos, éramos jovens demais da conta, e vivemos nada menos que dois longos anos de muita angústia até finalmente conseguirmos ficar amigos e seguir em frente – mas durante os dois anos de muita discussão e briga, sempre conseguimos preservar nossa relação com a filhinha, e conseguimos fazer com que ela tivesse uma rotina tranquila de convivência com o pai que havia saído de casa.
Não é que, por terem se passado 42 nos de Kramer vs. Kramer, não haja mais problemas quando o casamento acaba. Mas, diabo, a série mostra um Ruy e uma Julia muito mais inteligentes, espertos, safos do que aquilo que eles viram ali pela metade dos dez episódios.
Não combina com aquelas pessoas tão descoladas, tão na boa, a coisa absurda de entregar a decisão sobre a vida deles a um juiz.
Dez episódios. Vai aí o segundo item que critiquei lá no início do texto. Uma comédia dramática sobre o fim de um casamento e os problemas com a filhinha linda e fofa com dez episódios… Meu, é comprido demais!
Tudo bem, os episódios não são longos, 30 minutos cada, mas, diabo… Dez episódios! É loooongo demaaaaais…
Às vezes comprida demais, às vezes fazendo tempestades em copos d’água muito antigos.
E ás vezes não muito clara, às vezes chata em sua incessante busca por ser atualizada, moderninha, o mais uptodate que possa haver. No começo, em especial, tanto Julia quanto a própria garotinha Andrea usam bastante aquelas formas neutras, nem masculinas nem femininas – boneques em vez de bonecas, nós mesmes em vez de nós mesmos ou nós mesmas, esse tipo de bobagem, esse modismo babaca, tolo, sem qualquer tipo de sentido, me Deus de Céu e também de Terre!
Não fica muito claro se afinal de contas a série está indicando que gosta desse modismo – ou se, ao contrário, está fazendo uma tremenda gozação em cima da bobagem.
Aí passa-se o tempo… e a série parece que se esquece desse troço da linguagem neutra, e todos voltam a falar como sempre se falou, com uma terminação de palavra para designar o macho e outra terminação para designar a fêmea.
A série se esquece de alguns temas
A série se esquece de algo que levantou. Essa é outra interessante característica de Todo Va a Estar Bien.
Quando, no episódio 5, a ação – que havia voltado para três meses antes, e aí veio vindo para a frente em ordem cronológica – chega de volta ao dia fatídico em que Ruy e Julia vão à vara de família, surge um elemento surpreendente, forte. Corrupção. Corrupção dentro de uma vara de família! O advogado de Julia dá uma graninha para um funcionário para que os dois possam subir de elevador até o andar em que serão atendidos! A advogada de Ruy – uma mulher duríssima, daquele tipo que destrói a parte contrária, expõe os segredos mais íntimos e delicados para prejudicar a parte contrária –, diferentemente, não paga propina, e então ela e Ruy, ele um fumante inveterado, têm que subir vários lances de escada.
Ao se sentar diante do funça que irá fazer aquele questionário com perguntas absolutamente invasivas, a pobre Julia, instruída pelo advogado, dá para ele um presentinho, uma caixa de caros chocolates.
Mas o pior está por vir: lá pelas tantas, o advogado informa Julia que o juiz está querendo uma boa quantidade de pesos para dar uma decisão favorável a ela.
Um juiz de vara de família pedindo dinheiro a uma das partes!
Mary, que andava reclamando que eram episódios demais, até se animou: pô, a série vai entrar agora numa exposição da corrupção na Justiça mexicana!
Mas que nada! Qual o quê! Fica por isso mesmo. A série vai em frente e não dá qualquer importância a esse fato absurdo, louco, demente, inimaginável até no Brasil, este país que convive com corrupção em diversos níveis.
Tem mais, nessa coisa de a série levantar alguma coisa e depois se esquecer dela. É um detalhinho que achei fantástico.
Na falta da graninha de Julia – ela, com toda razão, se recusa a pagar suborno –, o tal juiz dá uma sentença favorável a Ruy nas questões financeiras. Mas, quanto à guarda da garotinha Andrea, não toma decisão: determina que uma psicóloga vá entrevistar a garota e os pais.
Ficamos então, nós, os espectadores, à espera da visita da psicóloga.
Ruy e Julia falam sobre a visita da psicóloga, marcada para determinado dia.
Na véspera do dia da visita da psicóloga, Ruy, Julia e Fausto, o dentista, namorado dela, tomam um porre de álcool e maconha.
Fiquei pensado: cacete, vai dar merda na visita da psicóloga.
Não dá merda, não dá nada, porque… Os realizadores se esqueceram da visita da psicóloga. Não se fala mais do assunto!
Pode?
Todo o elenco está bem. Lucía Uribe é fantástica
A fotografia é perfeita, a direção de arte é um luxo. Há graça, bom humor, boas falas. Os atores estão todos maravilhosamente bem – em geral, bons atores, como Diego Luna, quando viram diretores se revelam grandes diretores de atores.
Por falar em bons atores, Gael García Bernal – que trabalhou ao lado de Diego Luna em E Sua Mãe Também / Y Tu Mamá También (2001), o belo, forte, pesado, denso, desconcertante filme de Alfonso Cuarón – é um dos produtores executivos da série.
Fiquei bastante impressionado com as atuações das três atrizes principais, Mercedes Hernández, que faz a maravilhosa empregada Idalia, essa fantástica garotinha Isabella Vázquez e, sobretudo, Lucía Uribe, que faz a protagonista Julia.
Lucía Uribe se mostra uma atriz extraordinária.
Tinha, em abril de 2022, 18 títulos em sua filmografia – na maior parte séries de TV. Parece que uma delas, Desenfrenadas, no Brasil Aceleradas, nos EUA Unstoppables, de 2020 – dez episódios sobre quatro amigas em uma viagem durante um fim de semana – fez muito sucesso.
Lucía Uribe tem uma fantástica característica: é feia.
A rigor, a rigor, ser feio é a coisa mais natural do mundo. Seguramente muito mais da metade dos 8 bilhões de seres humanos que andam na casca deste planeta em perigosa via de autodestruição são pessoas feias. Mas em geral as atrizes são escolhidas entre as mais bonitas.
Lucía Uribe é feia. Não é que ela não seja linda, deslumbrante: ela é feia. Como a imensa maior parte da humanidade.
Mas é tão charmosa, tão absolutamente simpática, e se produz para, em vez de esconder, realçar sua feiura, que transforma a feiura em beleza.
E é uma extraordinária atriz.
Finalmente, um registro sobre o título. Todo Va a Estar Bien. Que coisa.
Há diversos títulos de filmes semelhantes, no mesmo tom – e todos desmentem o que próprio título. A ver…
Em 1990, Giuseppe Tornatore fez Stanno Tutti Bene, no Brasil Estamos Todos Bem.
A mesma história foi refilmada nos Estados Unidos em 2009, por Kirk Jones, como Everybody’s Fine, no Brasil Estão Todos Bem.
Não, ninguém estava bem.
Em 2006, Phillioppe Lioret fez Je Vais Bien, Ne t’en Fais Pas, no Brasil Não se Preocupe, Estou Bem!
Era para todos se preocuparem muito, porque não, não estava nada, nada, nada bem.
Em 2015, o grande Wim Wenders filmou no Canadá Every Thing Will Be Fine, no Brasil Tudo Vai Ficar Bem.
Não estava nada bem, nem iria ficar.
Em 2018, Gabrielle Muccino fez A Casa Tutti Bene, no Brasil Aqui em Casa Tudo Bem.
Lá naquela casa não ia nada, nada bem.
Isso para não falar de A Cidade Está Tranquila/La Ville est Tranquille, que Robert Guédiguian lançou em 2000. Nunca ninguém está tranquilo nos filmes do grande Robert Guédiguian.
Pois é. O título Todo Va a Estar Bien, ao contrário de todos esses citados aí acima, não é ironia.
Nesta série mexicana, todo va a estar bien. Mesmo. Mismo.
Até demais. Moderninha, essa série. Moderninha que só ela.
Anotação em abril de 2022
Todo Va a Estar Bien
De Diego Luna, criador, diretor, México, 2021
Com Lucía Uribe (Julia),
Flavio Medina (Ruy),
Isabella Vázquez (Andrea, a filha),
e Ruth Ramos (Rebeca), Mercedes Hernández (Idalia), Pierre Louis (Fausto), Úrsula Pruneda (Raiza), Silverio Palacios (Néstor), Vicky Araico (Romina), Verónica Langer (Ana Luisa), Carmen Beato (Laura), Paloma Woolrich (Minerva), Alberto Lomnitz (Don Manuel), Mónica Bejarano (professora), Hernan Del Riego (Fabricio), Sofia Engberg (jornalista da rádio), Hector Kotsifakis (Silvio)
Roteiro Diego Luna, Augusto Mendoza, Lucero Sánchez Novaro, Jimena Montemayor
História original Diego Luna
Fotografia Damián García
Montagem Fabiola Flores, Miguel Musálem
Figurinos Gabriela Fernandez
Produção Diego Luna, Mariana Rodriguez Cabarga, Exile Content Studio, La Corriente del Golfo.
Cor, cerca de 300 min (5h)
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