[nota:3]
(Disponível na Netflix em 2/2022.)
Neruda, que o ótimo Pablo Larraín lançou em 2016, é uma bem elaborada mistura de fatos e personagens reais com outros da mais pura, deslavada, fantástica ficção.
A trama criada pelo roteirista Gullermo Calderón se passa em 1948 e 1949, quando o poeta Pablo Neruda era senador pelo Partido Comunista Chileno, e coloca como co-protagonista da história, ao lado do próprio Neruda, o comissário-chefe da Polícia, chamado Óscar Peluchonneau, que comanda as buscas pelo poeta depois que o governo decreta ilegal o Partido e seus membros caem na clandestinidade.
Ao longo dos 107 minutos do filme, acompanhamos Neruda em fuga da polícia ao lado de sua mulher, a artista argentina Delia del Carril, e os esforços de Óscar Peluchonneau e uma equipe de 300 policiais para encontrar e prender o fugitivo.
A história é toda narrada por esse policial – um anticomunista fanático.
Só que Óscar Peluchonneau é um personagem inteiramente fictício.
Ele é interpretado pelo mexicano Gael García Bernal; Neruda, por Luís Gnecco, ator chileno que ficou parecidíssimo com o poeta; e Delia del Carril pela bela, simpáticda argentina Mercedes Morán.
Todo o tom do filme, absolutamente todo, foi cuidadosamente elaborado para não parecer nada com a realidade, ou como a encenação realista de fatos. Para realçar que é não se trata da reconstituição de eventos reais – embora, repito, muitos deles tenham acontecido realmente.
Em entrevistas, o realizador Pablo Larraín cansou-se de dizer que Neruda é uma “anti-cinebiografia”, que sua intenção não era, de forma alguma, fazer uma narrativa acurada de fatos reais.
Ele poderia ter tido o cuidado de botar um letreiro antes do início da narrativa, tipo “Esta não é uma história real”, ou “Esta é uma história de ficção que usa fatos reais”? Bem, poderia. Mas na verdade um aviso desse tipo não é necessário.
A primeira sequência do filme mostra um grande salão em que estão reunidos uns 20, talvez 30 políticos – senadores e seus auxiliares. Entre eles está Pablo Neruda – e há uma discussão sobre o apoio de Neruda e do Partido Comunista Chileno à União Soviética.
É um amplo salão, como se fosse próximo ao plenário do Senado. Só que é ao mesmo tempo um banheiro. Os nobres senadores discutem e urinam ao mesmo tempo.
Não poderia haver nada mais absolutamente claro: o que estamos vendo não tem nada a ver com a realidade, o realismo. Muito antes ao contrário.
Os cinéfilos seguramente deverão se lembrar de O Fantasma da Liberdade (1974), de Luís Buñuel, a famosa sequência do jantar em que os convidados sentam-se não em cadeiras, mas em vasos sanitários.
Pablo Larraín já começa seu filme citando o cineasta que mais fugiu da realidade e do realismo em toda a História do Cinema.
O policial narrador fala de forma afetada, artificial
O roteiro de Guillermo Calderón tem ainda um detalhinho, um espoucar de fogos de artifício, que se repete algumas vezes: o diálogo entre dois personagens é mostrado em três, quatro diferentes locais. A mesma conversa se dá em três ou quatro lugares, mostrados sucessivamente, em tomadas apresentadas com montagem rápida.
É mais um detalhinho para afastar a narrativa da realidade, do realismo.
Toda a forma com que a voz em off de Óscar Peluchonneau-Gael García Bernal narra a sua história para o espectador é exageradamente distante do realismo. É um texto afetado, rebuscado, artificial – e a trilha sonora acentua essa artificialidade, dá ao filme um tom de gozação, de paródia.
Um texto afetado, rebuscado, artificial – e virulentamente anti-comunista. Babantemente anti-comunista.
– “Os comunistas detestam trabalhar. Preferem incendiar igrejas. Dizem que, assim, se sentem mais vivos”, diz a voz em off do narrador. Mas o próprio narrador só vai aparecer na tela quando já estamos com quase 15 minutos de filme. Vemos Óscar Peluchonneau-Gael Garcia Bernal descer de um carro e se encaminhar para um encontro com o então presidente chileno, Gabriel González Videla (Alfredo Castro). Ele se apresenta para nós:
– “É aqui que eu entro. Tenho que entrar. Eu venho da página em branco. Venho buscar minha tinta preta. Aqui entra o policial cheio de vida, com o peito cheio de ar. Meu presidente tem um chefe: o presidente dos Estados Unidos. Quando ele diz que temos que matar os comunistas locais, este macaco amestrado aqui aparece.”
Na vida real, o presidente Videla, do Partido Radical, havia sido eleito com o apoio do Partido Comunista em 1946, que, pela primeira vez na História, desde sua fundação, em 1912, com o nome de Partido Operário Socialista, participou do governo chileno, com três ministros. Mas a união de Videla com os comunistas durou pouco. Após conflitos internos e pressão do governo dos Estados Unidos, Videla rompeu com o Partido – para, pouco depois, decretar sua ilegalidade e colocá-lo na clandestinidade. Eu não sabia disso ao ver o filme, e o espectador não precisa saber. O que vemos na tela é Videla dizer o seguinte para o comissário-chefe Peluchonneau:
– “Este país é cheio de comunistas inteligentes. Falam francês e gostam de construir pontes.”
Um assessor de Videla acrescenta: – “Estamos falando de alguém que só teve sapatos aos 12 anos.” Em vários momentos do filme fala-se da origem bem humilde de Neruda.
E Videla dá a ordem para o policial: – “Vá prendê-lo e humilhá-lo. Depois faremos a festa”.
Nesse momento, o filme não chegou ainda aos 20 minutos.
Cinco coisas do filme que são reais
Quando Neruda teve indicação ao Globo de Ouro de melhor filme estrangeiro, uma reportagem de Beatriz Díez no site BBC Mundo, datada de Los Ángeles, 5 de janeiro de 2017, mostrou “cinco coisas que são reais e três que nem tanto” na fita.
Vale a pena transcrever o que diz a reportagem.
* Sim, Pablo Neruda perdeu seu mandato de senador em fevereiro de 1948, por decisão da Corte Suprema, que atendeu a um pedido do então presidente Gabriel González Videla. A perda de mandato culminou uma disputa entre Videla e Neruda, que refletia o desentendimento entre o governo e o Partido Comunista.
Neruda acusou Videla, entre muitas outras coisas, de entregar “segredos militares da defensa nacional ao governo americano”. Videla o processou por injúria e calúnia, dando início ao processo que foi parar na Corte Suprema.
Houve de fato a ordem de prisão do poeta, assim como a campanha mostrada no filme para colar nele as acusações de traidor da pátria.
* Sim, Neruda conseguiu fugir do Chile para a Argentina, viajando a cavalo, no Sul do país. Isso aconteceu 13 meses depois da perda do mandato e do início da perseguição policial, e várias mudanças de endereço, exatamente como mostra o filme. Até o detalhe da barba crescida é verdadeiro – a matéria da BBC Mundo traz uma foto do poeta barbado.
* Sim, o Partido Comunista Chileno foi declarado ilegal pelo presidente Videla em 1948, com a promulgação de uma “Lei de Defesa Permanente da Democracia” – que passou a ser conhecida como “la Ley Maldita“. O contexto era o da Guerra Fria e do início do macarthismo nos Estados Unidos.
É bom lembrar que o Partido Comunista Brasileiro, tornado legal em 1945 com a redemocratização pós-ditadura do Estado Novo getulista, foi cassado e posto na ilegalidade pelo governo Dutra em 7 de maio de 1947.
* Sim, o pintor Pablo Picasso – exatamente como mostra o filme – manifestou apoio público a seu xará chileno, no Congresso dos Intelectuais pela Paz, realizado em Wroclaw, na Polônia, em 25 de agosto de 1948.
A reportagem de Beatriz Díez transcreveu a fala do Pablo espanhol:
“Tenho um amigo que deveria estar aqui, um amigo que é um dos melhores homens que conheci. Não é somente o maior poeta de seu país, o Chile, mas também o maior poeta da língua espanhola e um dos maiores poetas do mundo. É Pablo Neruda.”
Os dois Pablos voltaram a se encontrar mais de um ano depois, quando Neruda, após passagem pela Argentina, exilou-se em Paris.
* E, sim, Neruda era leitor apaixonado de novelas policiais. Isso que o filme mostra é verdadeiro.
Foi feito uma ampla pesquisa sobre os fatos reais
A repórter Beatriz Díez usou como fontes de sua matéria, entre outros, um membro da Academia Chilena de História, Jaime González Colville, e a jornalista investigadora Lorena Penjean, que foi contratada pela produção de Neruda para fazer um levantamento de fatos históricos. Lorena contou que tanto ela quanto outras pessoas da equipe se apoiaram também em testemunhos de pessoas que ainda estavam vivas e estiveram com o poeta na clandestinidade. Segundo ela, essas pessoas “foram muito generosas nos detalhes e nas histórias, assim como na descrição dos apartamentos pelos quais Neruda passou, as coisas que chamaram sua atenção e que são mostradas no filme”.
Na sua página de Trivia sobre o filme – informações, curiosidades –, o IMDb usou dados dessa reportagem da BBC Mundo. Dá para perceber isso facilmente. Mas o grande site enciclopédico deu outras informações complementares.
Informa-se ali que vários dos personagens mostrados no filme foram de fato baseados em pessoas reais. Delia del Carril, a segunda mulher do poeta, viveu até os 104 anos. Morreu em 1989; sua casa em Santiago, na Avenida Lynch, virou um centro cultural. Álvaro Jara (interpretado por Michael Silva), que foi incumbido pelo partido de acompanhar Neruda e sua mulher em casas de amigos, era então um jovem estudante; virou um historiador, e morreu em 1998, aos 75 anos de idade. Victor Pey Casado (interpretado por Pablo Derqui), o jovem engenheiro espanhol que ofereceu seu pequeno apartamento para o casal se esconder, e ajudou a copiar e distribuir os poemas de Neruda escrito nos meses de clandestinidade, morreu em 2018, os 103 anos de idade.
E é verdadeiro também aquele detalhinho que o filme mostra bem en passant: sim, quando jovem oficial do Exército, um tal Augusto Pinochet Ugarte foi o responsável pelo presídio de Piságua, quase um campo de concentração para onde foram levados líderes sindicais e pessoas do povo ligadas aos movimentos populares e ao Partido Comunista ali por volta de 1948.
A parte final do filme é “quase delirante”. E chata
A ótima reportagem de Beatriz Diez na BBC Mundo fala também de três pontos em que o filme de Pablo Larraín se afasta bastante da verdade dos fatos:
* “A aventura final. O filme adquire um tom cada vez mais surrealista a partir da segunda metade, em que começamos a duvidar a existência real do policial que persegue Neruda, que vai cobrando protagonismo até se converter no centro das cenas finais.”
Um historiador espanhol ouvido pela repórter, Mario Amorós, usou a expressão “quase delirante” para descrever a parte final do filme, em que Neruda começa a empreender a viagem a cavalo que o levaria a atravessar a fronteira e chegar à Argentina.
Eu, pessoalmente, não me importaria em absoluto com o fato de a narrativa se afastar dos fatos históricos de maneira quase delirante. Para mim, assim como para Mary, desde o início tinha ficado bastante claro que não era mesmo a intenção do realizador fazer um relato fiel aos fatos – muito ao contrário.
O que achei é aquela parte final do filme, a fuga pela paisagem gelada do Sul do Chile a cavalo, ficou foi longa demais. Looonga – e chaaaata. Poderiam ter sido cortados uns bons dez minutos ali, que o resultado final só teria a ganhar.
* “O personagem do comissário de polícia Óscar Peluchonneau.”
A reportagem mostra o que filme deixa claro: aquele personagem é fictício. É invenção. E, como disse o diretor Pablo Larraín, “Neruda no fundo é um filme sobre um policial que faz da perseguição ao poeta o sentido de sua vida”.
O que a reportagem revela é que de fato existiu um policial chamado Óscar Peluchonneau – só que o nome é a única coisa que têm em comum a figura real e o personagem do filme. Ouvido pela repórter, Jorge Peluchonneau Cádiz, o filho do detetive da polícia chilena que tem esse nome, reagiu assim: “Por que usar o nome de uma pessoa real se todo o resto é ficção?”
* O terceiro ponto tido como afastado da realidade é o papel desempenhado pela segunda esposa de Neruda, Delia del Carril. Bernardo Reyes, um sobrinho-neto de Neruda, disse à repórter que Delia foi mal representada no filme. “Omitir, por exemplo, que Delia Del Carril não era uma simples dona de casa, empenhada em transcrever seus poemas, é imperdoável.”
Aí eu acho que é bobagem pura. O filme não reduz Delia a uma simples dona de casa, de forma alguma. Mostra-a como uma mulher culta, educada, com uma boa visão da política, um perfeito entendimento do mundo – além de uma artista, uma pintora.
“Um homem cheio de contradições”
Entendo por que ridicularizar a figura do policial. Sim. Isso é claro, não se discute. O policial está ali representando a extrema direita burra, estúpida, idiota – o pinochetismo, cujo ocaso o diretor Pablo Larraín mostrou com brilho no filme No, estrelado pelo mesmo Gael García Bernal.
O que eu não consegui entender foi por que pintar Pablo Neruda da forma como ele é pintado no filme.
O Pablo Neruda que o ator Luis Gnecco compõe, a partir do roteiro de Guillermo Calderón e da direção de Pablo Larraín, não é de forma alguma um homem simpático.
Muito antes ao contrário. É um sujeito de ego gigantesco, inflado, um sujeito que se vê com um rei na barriga, rempli de soi-même, como diriam os franceses, egoísta, fechado em si mesmo, pouco afetuoso com a bela mulher que tem e pouco se importando, a rigor, a rigor, com as pessoas do povo que diz que seu partido defende.
É um bom filme, bem elaboradíssimo, e fala de um personagem fundamental, num período importante da História de seu país. Mas de fato não consegui entender por que se pintou o grande poeta como essa figura tão desprezível.
Como sempre acho necessário ter no mínimo uma outra opinião, aqui vão trechos do que escreveu a crítica Wendy Ide no site do irrepreensível British Film Institute, em abril de 2017:
“O diretor chileno Pablo Larraín volta à Quinzena dos Realizadores (ele já havia apresentado na Quinzaine des Realizateurs do Festival de Cannes Tony Manero, de 2008 e No, de 2012, o que por si só prova de sua importância) com uma reviravolta inesperada e divertida em um drama histórico. Neruda segue a fuga do perseguido poeta, político e diplomata comunista Pablo Neruda do Chile usando uma combinação de fatos históricos e ficção. Num toque de bravura, Larraín reconhece o artifício dos elementos ficcionais, mergulhando um dos personagens-chave em uma crise existencial com a revelação de que ele na realidade não existe.
“No tom, o filme tem algumas semelhanças com Il Divo, de Paolo Sorrentino, tanto na representação dos gostos decadentes da elite política quanto na densidade de idéias que empacota em cada quadro. Este é um filme que exige um nível de comprometimento de seu público, mas retribui generosamente o foco necessário para acompanhar essa exibição ágil de ginástica narrativa.
“No papel de Neruda, Larraín escalou o comediante chileno com quem havia trabalhado antes em No e na minissérie da HBO Latin America Prófugos. Encorpado para o papel, Gnecco fica fisicamente muito bem como o poeta, e captura corretamente a forma com que ele recitava seus versos. De forma mais importante, porém, Gnecco demonstra o magnetismo pessoal do homem que se tornou um espinho contra os fascistas graças à sua popularidade com as pessoas comuns.
“O personagem de Neruda é apresentado como um homem cheio de contradições. Um socialista chegado ao champagne, com uma queda por prostitutas, ele dificilmente parece uma voz autêntica do proletariado. Ele aceita a adoração como algo que lhe é devido.”
Bem, é esse mesmo o Pablo Neruda que Pablo Larraín mostra. É exatamente esse.
Anotação em fevereiro de 2022
Neruda
De Pablo Larraín, Chile-Argentina-França-Espanha-EUA, 2016
Com Luis Gnecco (Pablo Neruda),
Gael García Bernal (comissário Óscar Peluchonneau),
Mercedes Morán (Delia del Carril)
e Diego Muñoz (Martínez), Alejandro Goic (Jorge Bellet), Pablo Derqui (Víctor Pey), Marcelo Alonso (Pepe Rodríguez), Michael Silva (Álvaro Jara), Francisco Reyes (Bianchi), Jaime Vadell (Arturo Alessandri), Néstor Cantillana (o ministro do Interior), Alfredo Castro (Gabriel González Videla), Amparo Noguera (mulher bêbada), Emilio Gutiérrez Caba (Pablo Picasso), Roberto Farías (La Gorda, o cantor)
Argumento e roteiro Guillermo Calderón
Fotografia Sergio Armstrong
Música Federico Jusid
Montagem Hervé Schneid
Casting Alejandra Alaff
Direção de arte Estefania Larrain
Figurinos Muriel Parra
Produção Renan Artukmac, Christian Cardoner e outros; Fabula, Participant, Funny Balloons, Setembro Cine, AZ Films, Reborn Production, Televisión Federal e outras.
Cor, 107 min (1h47)
***
2 Comentários para “Neruda”