A Jornalista / Shinbun Kisha

3.5 out of 5.0 stars

(Disponível na Netflix em 2/2022.)

A Jornalista, minissérie japonesa de 2022, é extraordinária, uma beleza, uma maravilha. Tem diversas qualidades. Infelizmente, porém, não dá para fugir da verdade: para nós, brasileiros, o ponto mais impressionante de todos é a diferença absurda, gigantesca, amazônica, jupeteriana, que a série demonstra que existe entre o Brasil e o Japão, os brasileiros e os japoneses.

Não parece que pertencemos à mesma raça – a raça humana que, como Gilberto Gil sintetizou com absurda precisão e poesia, é uma semana do trabalho de Deus.

Não parece que somos do mesmo planeta. Do mesmo sistema solar. Da mesma galáxia.

Ver A Jornalista dá prazer porque é bom cinema. Mas, para nós, brasileiros, dá uma tremenda, uma abissal vergonha.

Diante do que a série mostra, somos o lixo, a escória, o horror. Somos seres de milênios antes de um ramo dos primatas ter evoluído, se tornado bípede, passado a utilizar ferramentas.

Para nós, a corrupção é uma coisa normal. Natural.

Em 2018, elegemos para a Presidência da República um ser abjeto que usava como uma de suas principais bandeiras a luta contra a corrupção – e, no poder, promoveu metodicamente um desmonte dos sistemas anticorrupção de que o Estado dispunha, e implantou, junto com lideranças do Congresso, um esquema oficial de tirar dinheiro do Tesouro para abastecer os bolsos de políticos corruptos. Isso para não lembrar que durante 30 anos o energúmeno se valeu de corrupção pequena – mas sempre corrupção – para roubar dinheiro público com esquemas de rachadinha em seu gabinete de deputado e nos dos três filhos com mandatos legislativos.

E estamos, neste início de 2022 em que a série foi lançada, prontos para eleger de novo presidente da República o sujeito que liderou o maior esquema de corrupção da História – não apenas do Brasil, mas do mundo. Um esquema estruturado, amplo, geral, irrestrito.

A Jornalista trata de dois casos de corrupção – graves, é claro, mas dois casos apenas, com princípio, meio e fim. Circunscritos. Episódicos.

Aqui em Pindorama os esquemas de corrupção são estruturados, amplos, gerais, irrestritos. E o chefe do maior de todos, o petrolão, que já havia chefiado o que havia sido o maior de todos até surgir o petrolão – o msnsalão –, será muito provavelmente, quase certamente reeleito.

A Jornalista mostra a realidade de um país em que o funcionário público que comete o crime de corrução se tortura loucamente de arrependimento. Mesmo que não tenha ele mesmo ganho um único centavo por isso. Mesmo que tenha agido apenas porque os superiores ordenaram.

Não dá para dissociar os filmes da realidade. Não dá para falar de filmes como se o que eles mostram não tivesse nada a ver com o mundo real.

Não dá para dissociar a bela série A Jornalista da realidade brasileira. Não dá. É humanamente impossível.

Isso dito, agora dá para falar especificamente da série.

A série se baseia em livro escrito por uma jovem jornalista

São apenas seis episódios de 50 minutos cada. O diretor, Michihito Fujii, ele também um dos três autores do roteiro, é extremamente jovem – nasceu em Tóquio em 1986. Apesar de tão moço, no entanto, já tem, em fevereiro de 2022, 24 títulos em sua filmografia como diretor, e 11 como roteirista. Já dirigiu filmes e séries de TV e fjlmes para o cinema – inclusive Shinbun Kisha, de 2019, baseado exatamente no mesmo livro que deu origem, três anos depois, a esta série.

O livro que o jovem Michihito Fujii transformou primeiro em filme, e depois nesta série aqui, é de autoria de uma jornalista, uma jovem nascida em 1975, Isoko Mochizuki. Dá para inferir, sem muita chance de erro, que Isoko Mochizuki é, na vida real, bastante parecida quanto a criatura que criou, a jornalista Anna Matsuda, a protagonista da história.

Não que a trama do livro, e da série, seja baseada em fatos reais. Não, de forma alguma – não há qualquer indicação disso. A trama – dá para dizer isso sem sombra de dúvida – se inspira em histórias semelhantes que há no mundo todo, também e inclusive no próprio Japão. A corrupção é absolutamente planetária, existe em todos os lugares – o que varia é como cada país, cada sociedade reage a ela.

Mas o que de fato dá para inferir é que esta Anna Matsuda tem muito a ver com a jornalista que a criou.

Anna Matsuda (interpretada, e bem interpretada, pela bela Ryoko Yonekura) é o que qualquer governo consideraria uma chata, um porre, uma pentelha, uma inimiga a combater. Exatamente o que qualquer bom editor consideraria uma ótima repórter: insistente, que não desiste nunca, que fuça, fuça, fuça até encontrar os podres que o governo tenta esconder.

Na abertura do primeiro dos seis episódios da série, estamos em uma coletiva de imprensa do porta-voz do governo japonês. Uma sala bem ampla que parece um teatro, uma grande platéia de jornalistas civilizadamente sentados, e o porta-voz lá no alto de um tablado, um palco.

Ela pede a palavra antes que o espectador veja seu rosto lindo: – “Matsuda, jornal Touto. A população está intrigada com um recente boato de que um ministro está recebendo pagamentos em troca de favores para uma construtora.”

O porta-voz pateticamente contesta a forma, não o conteúdo: – “Faça perguntas breves”.

Anna Matsuda: – “O ministro afirma que foi o secretário quem negociou. Como saber se ele não estava seguindo ordens do ministro?”

O porta-voz: – “Por favor, seja direta.”

Anna Matsuda: – “O primeiro-ministro é responsável, mesmo que indiretamente. Qual é a posição do governo?”

O porta-voz: – “A decisão é do primeiro-ministro.”

Tomada do rosto do porta-voz, seus olhos procurando na platéia por algum outro jornalista disposto a fazer uma pergunta sobre qualquer outro assunto.

Tomada, pela primeira vez, do rosto de Anna Matsuda-Ryoko Yonekura, o braço levantado.

Corta, e vemos um grande jato aproximando-se do momento do pouso.

Uma jornalista que é uma inimiga a combater: lá pela metade da série, os estrategistas do governo vão promover, com a ajuda de órgãos de imprensa manipulados pelo poder central, uma campanha de difamação da moça.

Um bom funcionário, forçado a adulterar documentos

Na verdade, essa sequência da entrevista coletiva do porta-voz do primeiro-ministro em que ficamos conhecendo a protagonista da história, e ela já se define para nós como a repórter chata, pentelha, competente, fuçadora, é apenas uma de três ações que se desenrolam paralelamente nos primeiros minutos deste primeiro episódio da minissérie.

Paralelamente, simultaneamente, vemos também estas duas ações:

* Um jato está aterrissando no aeroporto de Narita, em Tóquio. Policiais aguardam o desembarque de um passageiro específico, que, veremos depois, se chama Shinjiro Toyoda (o papel de Yusuke Santamaria), é um poderoso empresário que tem ligações com o primeiro-ministro e era suspeito de uma fraude que custou 10 bilhões de ienes aos cofres públicos. Quando os policiais se preparam para prendê-lo, à saída do aeroporto, chega por telefone uma nova orientação: a ordem de prisão foi suspensa.

* Um jovem funcionário do governo, assistente pessoal da primeira-dama, leva ao diretor-geral do Ministério da Fazenda um pedido de sua chefe, a mulher do primeiro-ministro. Ela quer que haja uma negociação de um instituto privado, chamado Eishin, para a compra de um terreno em Nagóia – e exige que haja uma dedução no preço de cerca de 1,2 bilhão de ienes.

Esses três eventos – a coletiva de imprensa, o cerco da polícia no aeroporto e a conversa entre o assistente da primeira-dama e o diretor-geral do Ministério da Fazenda – são mostrados simultaneamente, repito. E de uma maneira bem rápida: tudo dura cinco minutos, até que começam os créditos iniciais. Tomadas de cada um dos três eventos se misturam desordenadamente. É de deixar o espectador um tanto confuso – o que é bastante interessante, porque todo o resto da narrativa será apresentado, bem diferentemente desse início, de forma suave, clara, calma.

O empresário Toyoda terá alguma importância na trama – mas uma importância apenas relativa. Todo o foco da série será essa transação imobiliária de interesse da primeira-dama envolvendo o tal Instituto Eishin que resultará num prejuízo de 1,2 bilhão de ienes.

O jovem funcionário se chama Shinichi Murakami (Go Ayano), e será um dos personagens centrais da história, logo abaixo da própria jornalista Anna Matsuda, que irá cobrir a história da transação imobiliária com dedicação absoluta, total.

Um terceiro núcleo fundamental da trama, além de Anna e de Murakami, é formado pelo casal Suzuki e um sobrinho. Kazuya Suzuki (Hidetaka Yoshioka) é um funcionário público sério, competente, dedicado, que havia sido recentemente transferido para a Secretaria da Fazenda de Chubu, na cidade de Nagóia.

O chefe dele, Kurosaki (Keisuke Hoashi), é o funcionário graduado que recebe a ordem do diretor-geral do Ministério da Fazenda para providenciar a transação imobiliária ordenada pela mulher do primeiro-ministro – o que demandará a adulteração de uma série de documentos oficiais.

E Kurosaki delega a função criminosa de adulterar documentos oficiais exatamente a Suzuki.

Suzuki cumpre as ordens, com zelo, cuidado e competência – mas com uma amargura gigantesca, incomensurável. Entra em parafuso, sofre como um escravo remador nas galés romanas.

Sua mulher, Mayumi (o papel de Shinobu Terajima), uma pessoa simpática, afável, profundamente apaixonado pelo marido, terá importância imensa, fundamental, na trama.

O roteiro, de maneira esperta, demora bastante para revelar ao espectador que o jovem estudante que aparece ainda bem no início do primeiro episódio, que faz bico como entregador de jornal – exatamente do jornal Touto, em que trabalha a repórter Anna Matsuda –. é sobrinho de Mayumi, filho da irmã dela, e muito apegado também ao tio, Kazuya Suzuki.

Uma defesa apaixonada, emocionante dos jornais

Uma característica fascinante da série é que ela focaliza basicamente os funcionários públicos de carreira, dos estratos intermediários ou secundários da hierarquia da máquina estatal – e não os que estão no topo, os que de fato mandam e articulam os grandes esquemas de corrupção. O primeiro-ministro e sua mulher, a primeira-dama, não aparecem na tela em momento algum. A Jornalista vai fundo no que sentem os funcionários públicos como Kazuya Suzuki e Shinichi Murakami – como eles reagem por estarem cumprindo ordens que ferem as leis e a moral, como isso provoca profundo impacto sobre eles e suas famílias.

O esquema de corrupção visto e vivido não pelos chefões em seus gabinetes elegantes, e sim pelas pessoas comuns, gente normal, gente honesta, que quer fazer um bom trabalho, ser pago por isso e viver em paz.

Isso é uma absoluta maravilha.

Outra característica fascinante, é, claro, a defesa que a série faz do jornalismo e dos jornais.

É uma defesa assertiva, vigorosa, extremamente apaixonada – e por isso emocionante.

Nisso, a série faz lembrar os grandes filmes americanos que mostram como a imprensa é tão fundamental para a democracia quanto o ar é necessário para cada um de nós – “como el aire que exigimos trece veces por minuto”, como diz a canção de Paco Ibañez. Todos os Homens do Presidente (1976), de Alan J. Pakula. Spotlight: Segredos Revelados (2015), de Tom McCarthy. The Post: A Guerra Secreta (2017), de Steven Spielberg, para citar três dos melhores.

A defesa que a série faz do jornalismo, da importância fundamental do jornalismo, não é apenas da imprensa como um todo, mas especificamente do jornal diário, do jornal de papel – e isso é interessantíssimo numa série lançada em 2022, vinda de um país de tecnologia absolutamente avançada como é o Japão. E que, além de tudo, traz uma história passada não nos anos 70, como dois dos belíssimos filmes citados no parágrafo anterior, e sim agora há pouco, às vésperas da Olimpíada de Tóquio, quando o planeta já enfrentava a pandemia da covid-19 – os dois acontecimentos, a Olimpíada e a pandemia, são citados várias vezes, fazem parte da trama da série.

Nestes tempos em que a cada dia se proclama a morte iminente dos jornais de papel, nestes tempos em que a crise dos jornais é um fenômeno mundial, global, A Jornalista faz a elegia das velhíssimas impressoras, aquele espetáculo único que é a rodagem de uma edição de jornal, a impressão, o corte, a formatação dos jornais, sua colocação nos caminhões de distribuição, o trabalho de formiguinha que é sair entregando o jornal de casa em casa.

É de tirar o chapéu para os realizadores pela forma apaixonada com que a série defende não apenas o jornalismo, mas os jornais.

O jovem é criticado por não ler jornal

E é fantástico que a ode, à elegia ao jornalismo e aos jornais não se concentra apenas na jornalista que dá o título à série, essa repórter incansável, séria, batalhadora que é Anna Matsuda – mas também no jovem estudante que, para garantir algum dinheiro para pagar as contas básicas, trabalha com sua moto na distribuição de exemplares do jornal para os assinantes em uma região de Tóquio.

Os realizadores da série fizeram questão de mostrar que o garotão Ryo Kinoshita nunca jamais em tempo algum lia os jornais que distribuía de madrugada. Um veterano senhor que trabalha numa das pequenas agências de distribuição do jornal Touto fala sobre isso com os colegas, inclusive com a também muito jovem garota que se mostra muito mais séria, atenta, estudiosa e bem informada do que Ryo, Mayu (não consegui encontrar o nome da atriz que faz essa estudante, que terá papel importante na história).

Ryo se defende dizendo que se informa pelo celular. O senhorzinho que chefia a agência e também Mayu demonstram que aquilo está errado, que Ryo deveria ler o jornal que distribui.

Os realizadores se utilizam desse jovem casal, Ryo e Mayu, para falar dessa característica importante, fundamental, da sociedade japonesa, de que a gente sempre ouve falar, que é s duríssima competição dos estudantes por uma vaga no mercado de trabalho.

Estudar, aprender, ralar muito para tentar assegurar uma vaga no mercado de trabalho – mostra a série, com Ryo e Mayu como exemplos – é tão fundamental quanto el aire que exigimos trece veces por minuto, para usar de novo a beleza de verso de Paco Ibañez.

É muito interessante que a série nos mostre essa realidade, nos revele como essa questão é de fato fundamental na sociedade japonesa.

E, é claro, é óbvia, é uma maravilha a defesa emocionada e emocionante do jornalismo e dos jornais.

Mas o que mais fica na cabeça da gente, sem dúvida, é aquela questão que abordei no início deste texto: a forma com que a sociedade japonesa repele a corrupção.

É uma coisa arraigada, faz parte da formação das pessoas: lá, corrupção é crime, tem que ser exposto, combatido, punido.

Processo civilizatório. Civilização.

Será que algum dia os netos da minha neta vão viver em um Brasil que tenha isso?

Anotação em fevereiro de 2022

A Jornalista/Shinbun Kisha

De Michihito Fujii, Japão, 2022

Com Ryoko Yonekura (Anna Matsuda, a jornalista), Go Ayano (Shinichi Murakami, o assistente da primeira-dama), Hidetaka Yoshioka (Kazuya Suzuki, o funcionário da Secretaria da Fazenda de Chubu, em Nagóia), Shinobu Terajima (Mayumi Suzuki, a mulher de Kazuya), Ryusei Yokohama (Ryo Kinoshita, o estudante sobrinho de Mayumi),

e Tokio Emoto (Sato), Kaho Tsuchimura (Yashiro), Yusuke Santamaria (Shinjiro Toyoda, o empresário e auxiliar do primeiro-ministro), Shiro Sano (o conselheiro do primeiro-ministro), Keisuke Hoashi (Kurosaki), Johanna Yukiko Haneda (Kumagai)

Roteiro Michihito Fujii, Kazuhisa Kotera, Yoshitatsu Yamada

Baseado no livro de Isoko Mochizuki

Produção Star Sands, Aeon Entertainment.

Cor, cerca de 300 min (5h)

***1/2

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