O ator e às vezes diretor Gilles Lellouche reuniu quatro dos mais famosos atores e às vezes diretores do cinema francês, todos entre os 45 e os 63 anos de idade, para fazer este Um Banho de Vida, no original Le Grand Bain – uma comédia sobre um grupo de homens que forma equipe de um esporte até há pouco apenas feminino, o nado sincronizado.
Temos na tela, usando sunguinhas de banho, Mathieu Amalric, 53 anos de idade em 2018, ano do lançamento do filme, Benoït Poelvoorde, 54 anos, Guillaume Canet, 45 anos, e Jean-Hugues Anglade, 63 anos, e mais uns dois ou três atores menos conhecidos. Homens branquelos, uns mais e outros menos, mas todos meio barrigudinhos – e todos assim não propriamente a imagem do David de Michelangelo, do deus Apolo.
Devem ter se divertido muito, com toda certeza, Lellouche e seus companheiros. E divertem os espectadores: Um Banho de Vida/Le Grand Bain é uma comédia bem gostosa, com ótimas piadas, um monte de boas sacadinhas, invencionices – e boas interpretações daquele bando de bons atores.
Tem defeitinhos, claro. Por exemplo: é um tanto longo, com seus 122 minutos. Um trabalhinho extra na sala de montagem, cortando um pouco e uma sequência aqui, um pouco de outra ali, poderia ter enxugado o filme e melhorado bastante o resultado final. Aquele monte de sequências em que a segunda treinadora, Amanda (o papel da bela Leïla Bekhti), berra com os pobres senhores, histericamente, irritantemente, poderia ter sido reduzido a uma única sequência, para felicidade dos espectadores.
Há alguns pontos em que o roteiro dá uma engasgada, como o afastamento e depois a volta da primeira treinadora, a suave (e ao mesmo tempo atormentada) Delphine, o papel da linda belga Virginie Efira. Mas, para não passar o carro á frente dos bois, é bom falar disso um pouco mais adiante.
Para mim, o maior defeito dessa comédia gostosa é exagerar nos dois lados – na tristeza e na alegria. Nas misérias da vida e na absoluta euforia.
Uma abertura gostosa, com texto inteligente
Começa com uma sequência inteligente, bem sacada, rápida, criativa – um tanto no espírito daquela maravilha que é O Fabuloso Destino de Amélie Poulain (2001). Uma voz em off – a de Mathieu Amalric – vai falando um texto esperto, enquanto vamos vendo tomadas bem rápidas de diversos objetos redondos ou dentro de um círculo:
– “Vocês precisam saber, desde já, que não é questão de nada. É apenas uma contradição geométrica. A história de um planetinha bobo e redondo, dando voltas ao redor de um sol bobo e redondo que arde sei lá por quê. A história de uma barriga redonda devidamente preenchida por uma coisa gosmenta e redonda…
(Vemos neste instante um feto no útero – a coisa gosmenta e redonda.)
– “… que se torna uma coisa não gosmenta…”
(Vemos as carinhas de uns bebês.)
– “… que olha para um monte de outras coisas redondas. Redondas como a liberdade. Redondas como os pingos de Sophie.”
(Vemos a letra i escrita por uma criança com um pingo bem grande.)
– “Como as curvas de Samantha. Como aqueles que usam óculos redondos. Redondos. Esta é também a história de uma curva que se faz reta e se transforma num ângulo rígido, um quadrado esmagando um círculo como uma régua… “
(Vemos uma bicicleta, alguém andando de bicicleta, uma pedra no meio do caminho, a bicicleta que vai ao chão.)
– “… a história de uma moral quadrada, de uma educação quadrada. Quadrada como a comida que servem nas cantinas da escola, do colégio, da faculdade. Quadrada como a frase de Anne…”
(Vemos o rosto de uma moça que diz: – “Não te amo mais.”)
– “Quadrada como as pessoas que usam óculos quadrados. Quadrado como jogos chatos. Quadrada como a vida no escritório. Quadrada como o câncer do seu pai. Quadrada. E aqui chegamos à contradição da nossa história.”
(Vemos uma criança bem pequena com aquele jogo que tem uma caixa com furos quadrados, redondos e triangulares, e pínos quadrados, redondos e triangulares para serem encaixados. A criança tenta enfiar um pino quadrado no buraco redondo.)
– “Das poucas coisas das quais podemos ter certeza, existe uma que nem os céticos mais inflexíveis podem questionar: um pino quadrado nunca vai entrar num buraco redondo. Nunca. E vice-versa.”
E então começam os créditos iniciais, enquanto vamos vendo uma rua de um bom bairro residencial, a câmara se aproximando da casa em que vive Bertrand, o personagem interpretando por Mathieu Amalric.
No grupo de bons atores, brilha um que é menos famoso
Bertrand vai mal, mas vai mal demais. O filho aborrescente é tremendamente aborrescente, mas a filhinha de uns seis anos é fofinha. A mulher dele, Claire (Marina Foïs), está visivelmente preocupada com ele. Bertrand, veremos rapidamente, está há dois anos desempregado – e está enfiado no fundo de uma depressão.
Não vê graça em absolutamente nada na vida.
Um dia qualquer, vê, no conjunto de esportes municipal, onde há uma belíssima piscina olímpica coberta, um anúncio pedindo um interessado em participar da equipe de nado sincronizado masculino. Sem saber ao certo por que, vai se apresentar à equipe.
O primeiro a recebê-lo é Thierry (o papel de Philippe Katerine), um funcionário municipal que cuida exatamente da piscina, e é um dos membros da equipe. Thierry, veremos, é uma alma boa, um coração imenso – e que muitas vezes é menosprezado pelas outras pessoas, ou até explorado por elas, exatamente por ser bom demais.
Vamos conhecendo os demais membros da equipe. Marcus (o papel de Benoît Poelvoorde) é um pequeno empresário, tem uma loja que vende piscinas pré-fabricadas. Os negócios vão mal, não há clientes, as dívidas se acumulam – e, para piorar, Marcus é um péssimo administrador. Logo se verá que a loja está indo à falência.
Simon (Jean-Hugues Anglade, com um cabelão bem comprido), o mais velho da equipe, é cantor e guitarrista, roqueiro. Já gravou mais de uma dúzia de discos, todos independentes, nenhum de sucesso qualquer, mas ele insiste, não desiste jamais. Para sobreviver, já que a música não dá dinheiro suficiente, trabalha na cantina da escola em que estuda sua filha adolescente, Lola (Noée Abita), aí de uns 15, 16 anos. Sucesso até que é secundário para Simon. Ele gostaria mesmo é de ter o amor e o respeito da filha – que não dá muita bola para ele.
Laurent (o papel de Guillaume Canet) é um daqueles tipos que vê a vida através de óculos muito, muito escuros. Tudo na vida, para ele, é um horror, o horror dos horrores. Nada nunca está bom, e nada vai melhorar. Trata mal a mulher – à toa, sem motivo algum. E é pouquíssimo cuidadoso com o filho adolescente que tem problemas psicológicos, é travado a ponto de não conseguir falar direito quando está diante de estranhos.
Veremos depois que Laurent tem a quem puxar – e quem puxa aos seus não degenera. A mãe dele (o papel de Claire Nadeau), que está em uma casa de repouso, trata o filho pior do que um sádico trataria um cachorro: sempre que o vê, passa todo o tempo xingando-o de feio, horroroso, o escambau.
Quando Bertrand começa a tomar gosto pelo tal do nado sincronizado, quando começa pela primeira vez em dois anos a ter interesse por alguma coisa, vai se pegar com Laurent: – “E eu é que sou o que sofre de depressão?”, dirá ele, coberto de razão, para o sujeito que critica tudo e todos o tempo todo.
Há mais um ou dois na equipe, mas o roteiro não quis muito saber deles – fazem figuração, apenas.
Todo o elenco está afiadíssimo – e, afinal, estão aí grandes atores, todos com experiência também na direção: Mathieu Amalric, Guillaume Canet, Benoît Poelvoorde, Jean-Hugues Anglade… Mas quem acaba brilhando mais que todos é esse Philippe Katerine, que faz Thierry, o do coração de ouro.
Delphine, a treinadora, frequenta os AA
A treinadora daquele exército de Brancaleone é Delphine (Virginie Efira, como já foi dito). Lá pelo meio do filme, vemos Delphine em uma sessão dos AA, ela contando sua história – mais uma história triste, entre tantos personagens de histórias tristes. No passado, ela participara de uma dupla que havia conquistado muitas e belas vitórias no nado sincronizado. No entanto, houve um acidente terrível com a sua companheira, e a dupla se desfez. Foi então que Delphine havia mergulhado na cachaça.
Com os AA, havia conseguido sair do vício, e agora estava bem. Só que, lá pelas tantas, diante de um momento de dura adversidade, Delphine, como tantos e tantos e tantos viciados, tem uma recaída.
E surge para ocupar seu lugar exatamente a mulher que havia sido a par dela nas piscinas – e, pelo que se depreende, também na cama. É Amanda (Leïla Bekhti, como já foi dito), que até então treinava o time, muitíssimo mais prestigiado, respeitado, de pólo aquático. Amanda tinha ficado paraplégica naquele acidente mencionado por Delphine na reunião dos AA.
De repente, do nada, surge na vida daquela equipe brancaleônica de nado sincronizado essa Amanda – e, bem ao contrário de Delphine, Amanda berra com aqueles coroas, insulta-os, bate neles. Essas sequências são bastante grotescas.
É o ponto mais fraco do filme, na minha opinião. Os três roteiristas – o próprio diretor Gilles Lellouche, mais Ahmed Hamidi e Julien Lambroschini – não conseguiram bolar uma forma de explicar por que Delphine e Amanda romperam, pararam de se falar, viraram inimigas. Nem por que raios de repente, não mais que de repente, Amanda deixa de lado o time vencedor de pólo aquático para se dedicar àqueles coroas que ela faz questão de xingar de barrigudos a cada minuto.
De repente, o que era negro vira cor-de-rosa choque
Tudo muito triste, muito pesado. Um negror total, sem, aparentemente, qualquer luz no fim do túnel. Naquela equipe ali, o que parece estar melhor, ao lado do sempre bom e sempre explorado Thierry, é justamente Bertrand, o que sofre de depressão e toma medicamentos pesados contra ela.
E aí, num passe de mágica… tcham-tcham-tcham-tcham…
Do pior dos mundos, passamos à absoluta glória.
Le Grand Bain, que começara triste, lúgubre, sombrio, dark, nefasto, soturno, tenebroso como o mais triste, lúgubre, sombrio, dark, nefasto, soturno, tenebroso drama existencial francês, de repente vira uma alegria de musical hollywoodiano!
Diretamente de Biafra à Suíça! Do inferno ao paraíso! Da Rocinha ao Leblon! Do Jardim Ângela à Vila Nova Conceição!
É impossível não lembrar da fantástica afirmação feita pela personagem de Juliette Binoche em Fuso Horário do Amor/Décalage Horaire (2002), deliciosíssima comedinha romântica de Danièle Thompson. Rose, a esteticista interpretada por Juliette Binoche, filha de pais comunistas que a proibiam de ver filmes americanos, faz para o espectador uma maravilhosa definição do que é o cinemão de Hollywood – numa mistura de ironia e amor:
“Meu pai dizia que (os filmes americanos) eram estúpidos, e minha mãe dizia que eles davam uma idéia errada da vida. Tudo bem: os pobres ficam ricos, os ricos têm uma vida dura, os sem-documento encontram os documentos, as guerras terminam, os mortos voltam a viver e as putas se casam com milionários. (…) Eu sempre achei que merecia um dia em que minha vida fosse igual a um filme americano.”
Gilles Lellouche fez exatamente como os filmes americanos!
O roteiro se inspira em uma história real
Vejo no IMDb que Gilles Lellouche e seus companheiros Ahmed Hamidi e Julien Lambroschini escreveram o roteiro desse filme sobre um bando de coroas nada atléticos que se reúnem para formar uma equipe de nado sincronizado… inspirados numa história real ocorrida na Suécia!
Que delícia! Essa informação torna tudo mais agradável, mais engraçado ainda. Lellouche deveria ter feito como nos filmes americanos e botado logo de cara um letreiro assim: “Inspirado em uma história real”!
Vejo no AlloCiné, o site que tem tudo sobre os filmes franceses e em língua francesa, que Lellouche já pensava em fazer um filme que falasse desse imenso drama que é a depressão antes mesmo de ouvir falar dos suecos do nado sincronizado da vida real.
“Nesse percurso um pouco individualista em que nos encontramos todos, esquecemos o coletivo, o entusiasmo, o gosto do esforço”, contou o realizador em entrevista, que frequentou reuniões dos Alcoólicos Anônimos como preparação para seu papel de um alcoólatra em Un Singe sur Les Dos (2009), e ficou impressionado com “o calor humano, o diálogo, sem qualquer tipo de julgamento”. “Vivemos numa sociedade em que, na televisão, os debates são cheios de julgamentos e de opiniões sobre tudo, e então eu adorei aquela coisa de partilha.”
Lellouche queria escrever sobre esse tema, mas faltavam os elementos dramáticos – ou cômicos –, os elementos cinematográficos. Foi então que um produtor seu amigo, Hugo Selignac, sugeriu que ele vissse um documentário a respeito de um grupo de sueco que resolveu fazer uma equipe de natação sincronizada. “Um grupo de homens mais ou menos desencantados que corriam atrás de sonhos desfeitos”, definiu ele. E em seguida chamou Ahmed Hamidi para dividir o trabalho, e depois Julian Lambroschini.
Fascinante: da mesma forma com que a história real dos suecos inspirou Gilles Lellouche a fazer este filme, inspirou também a realização, no mesmo ano de 2018, do filme inglês Swimming With Men, até agora, novembro de 2019, não lançado no Brasil. O filme é dirigido por Oliver Parker, e os únicos nomes do elenco que este fã do cinema inglês reconhece são Rupert Graves e Jim Carter.
Gilles Lellouche deve ter sentido, na cerimônia de entrega dos Césars, o mesmo que Steven Spielberg seguramente sentiu na cerimônia dos Oscars de 1985, quando A Cor Púrpura concorria a 11 prêmios – e não levou nem sequer um.
Le Grand Bain foi indicado a 10 Césars – inclusive os de melhor filme, melhor direção, melhor roteiro original, melhor atriz coadjuvante tanto para Leïla Bekhti quanto para Virginie Efira, e melhor ator coadjuvante tanto para Jean-Hugues Anglade quanto para Philipe Katerine, que faz o coração de ouro Thierry. Só Philippe Katerine levou o prêmio.
Anotação em novembro de 2020
Um Banho de Vida/Le Grand Bain
De Gilles Lellouche, Bélgica-França, 2018
Com Mathieu Amalric (Bertrand), Guillaume Canet (Laurent), Benoît Poelvoorde (Marcus), Jean-Hugues Anglade (Simon), Virginie Efira (Delphine, a treinadora), Leïla Bekhti (Amanda, a treinadora brava), Marina Foïs (Claire, a mulher de Bertrand), Philippe Katerine (Thierry), Félix Moati (John), Alban Ivanov (Basile), Balasingham Thamilchelvan (Avanish), Jonathan Zaccaï (Thibault), Mélanie Doutey (Clem), Noée Abita (Lola, a filha de Simon), Claire Nadeau (a mãe de Laurent)
Argumento e roteiro Ahmed Hamidi, Julien Lambroschini, Gilles Lellouche
Diálogos Gilles Lellouche
Fotografia Laurent Tangy
Música Jon Brion
Montagem Simon Jacquet
Casting Sandra Durando
Produção Trésor Films, Chi-Fou-Mi Productions, Cool Industrie, StudioCanal, TF1 Films Production. Distribuição Netflix.
Cor, 122 min (2h02)
**1/2
Título nos EUA: Sink ou Swimm. Em Portugal: Ou Nadas ou Afundas.
Seu texto é muito bom… gostei muito da análise e das referências. Gostaria de escrever no meu portal sobre arte também?