The English Game

3.0 out of 5.0 stars

The English Game, minissérie inglesa de 6 episódios, conta um pouco da história dos primórdios do futebol, no ano de 1879. Usa personagens reais, e mostra como o futebol surgiu como um esporte dos aristocratas e dos muito ricos – e como a classe alta resistiu ao avanço dos mais pobres sobre o esporte.

Na verdade, a série faz uma grande mistura entre o esporte e a luta de classes na Inglaterra daquele final do século XIX. E demonstra imensa simpatia, é claro, pela working class, muito mais do que pelos ricos.

Como é um produto britânico, é extremamente bem realizado, com capricho em todos os detalhes técnicos – fotografia, direção de arte, figurinos, música. Não há atores de fama de internacional no elenco numeroso: os atores devem trabalhar principalmente em séries de TV. (Não conhecia nenhum deles, e vejo muitos filmes e séries inglesas.) Isso não tem importância alguma: como são atores ingleses, são bons.

E há, sim, um nome bem conhecido nos créditos: um dos produtores executivos e roteiristas é Julian Fellowes, o criador de Downton Abbey e o roteirista de Assassinato em Gosford Park, o maravilhoso filme de Robert Altman de 2001.

Não é, na minha opinião, uma maravilha: tem, me parece, o pecado grave de simplificar um pouco as coisas. E não apresenta – para frustração dos mais apaixonados pela arte do esporte bretão – grandes jogadas, grandes lances em campo. Mostram-se trechos de várias partidas, sim, mas sem o cuidado de criar belas jogadas.

Mas são defeitos pequenos. É uma série feita com cuidado, esmero, competência. Merece ser vista. (Está na Netflix.) E não é recomendável apenas para quem gosta do ludopédio: aqueles, sei lá, 12% da população que não curtem futebol também podem gostar de The English Game.

Era um jogo amador, não se podia mexer com dinheiro

No seu início, ali na Inglaterra da segunda metade do século XIX, o futebol – esse esporte que há várias décadas movimenta gigantescas, inimagináveis fortunas, mais que qualquer outro – não tinha qualquer relação com o vil metal. Na verdade, a relação entre futebol e dinheiro era proibida.

O primeiro dos seis episódios de The English Game (cada um com cerca de 50 minutos) começa com letreiros que sintetizam o contexto para o espectador:

“Inglaterra, 1879. O futebol está em sua infância – um jogo amador dominado pelos times da classe alta, que inventaram suas regras.”

A primeira sequência vem em seguida – um lance rápido que resulta em um gol. E o novo letreiro identifica o autor do tento:

“Arthur Kinnaird, o capitão do Old Etonians, jogou em mais finais da copa da FA do qualquer outro, e venceu a Copa três vezes.”.

Nova sequência: um letreiro diz que estamos em Mayfair, Londres. No bairro nobre, um elegante casal desce de um coche – Arthur Kinnaird e sua jovem mulher, Alma. Um repórter pergunta: – “Sr. Kinnaird, o Old Etonians vencerá a Copa deste ano?”

Garotinhos chegam perto, pedem autógrafo. Enquanto dá o autógrafo, Arthur ouve nova pergunta: – “E o Darwen Futebol Clube, o adversário das Quartas de Final?”

Arthur passa a pergunta para os garotos: – “O que vocês acham, meninos? Eles têm chance?” Os garotos dizem que o Darwen não têm chance alguma, e Arthur então fala com o repórter: – “Eis a sua resposta.”

Alma, moça bonita, brinca com o marido, enquanto eles se encaminham para a porta de casa: – “Com um orgulho desse tamanho, como você passa pela porta?”

Arthur é o papel de Edward Holcroft (na foto abaixo), rapaz bonitão, que trabalhou em Kingsman: Serviço Secreto (2014) e Kingsman: O Círculo Dourado (2017). Alma é interpretada por Charlotte Hope; eu não havia guardado nem o nome nem o rosto dela, mas a moça trabalhou (em papéis pequenos) em A Teoria de Tudo (2014), Um Reino Unido (2016) e Aliados (2016).

Mais um letreiro:

“Até 1879, nenhum time da classe trabalhadora havia chegado até as quartas-de-final da Copa da FA.”

E neste momento – não se passaram ainda sequer 2 minutos – começam os créditos iniciais de The English Game.

Durante os créditos iniciais, vamos vendo dois homens descendo de um trem em Darwen, Lancashire. O nome de um deles é falado – Fergus Suter (Kevin Guthrie). Ele e seu companheiro Jimmy Love (James Harkness), veremos logo em seguida, ambos escoceses, eram jogadores já de alguma fama, de um time de Glasgow, e acabavam de ser contratados para o Darwen Futebol Clube.

A Football Association era dominada pelos ricos

Ao rever agora esse iniciozinho do primeiro episódio de The English Game, fiquei espantado com a maestria com que os roteiristas conseguiram sintetizar perfeitamente os temas que virão a seguir. Ao ver a série inteira não havia me dado conta disso. É realmente uma beleza de início.

Os dados básicos da trama estão todos aí.

Os dois personagens centrais da série são Arthur Kinnaird e Fergus Suter. Um rapagão riquíssimo, filho de lord banqueiro, de Londres, e um pé-rapado de Glasgow. Um que joga no Old Etonians – veteranos de Eton, o colégio exclusivíssimo, da classe alta e da aristocracia, onde estudaram filhos de reis e rainhas da Inglaterra. O outro que acabava de ser contratado pelo time do Darwen, pequena cidade de Lancashire – e veremos que o time é todo formado por operários da indústria têxtil de um tal James Walsh (Craig Parkinson).

E aqui já vem problema: segundo as regras estabelecidas pela FA – a Football Association, a primeira associação de futebol do mundo, fundada em Londres em 1863, 16 anos, portanto, antes da época em que se passa a ação –, o esporte era amador. Não se permitia que alguém ganhasse dinheiro para participar do jogo.

Os jogadores do Darwen F.C. ganhavam apenas seus salários de operários da fábrica de Walsh, um patrão que a série nos apresenta como sendo de boa alma, uma alma socialista, que lutava para botar um time  da working class entre os melhores da Inglaterra. Fergus Suter e Jimmy Love haviam sido contratados por ele teoricamente para trabalhar na fábrica – e eles de fato vão trabalhar lá na linha de produção da tecelagem, como todos os demais jogadores do time. Na realidade – e isso é mostrado de forma clara –,ganhavam muito mais do que os demais operários.

Os dois são mostrados na série como os primeiros ingleses a serem pagos para jogar futebol, os primeiros a serem contratados profissionalmente para jogar futebol – embora por baixo do pano, com contratos de gaveta.

Esse fato, isso de ganharem dinheiro para jogar, provocará tanto problemas locais – de ciumeira entre alguns dos demais jogadores do Darwen – quanto problemas a nível nacional. À medida em que o Darwen, com o reforço dos dois escoceses bons de bola, vai se demonstrando competitivo, capaz de ameaçar o até então tranquilo domínio dos times da classe alta, os jogadores do Old Etonians passam a contestar o time junto à Football Association. E contestar time de operários era a coisa mais fácil do mundo, já que a FA era uma associação de ricos.

    A série fala da luta de classes o tempo todo

Desde sempre ouço de amigos sábios o ensinamento de que não se deve misturar futebol com política.

São, de fato, coisas que não devem ser misturadas. Apenas uma prova disso, entre tantas outras, é que Garrastazu Médici, Luiz Inácio Lula da Silva e Jair Bolsonaro adoram misturá-las.

The English Game mistura futebol com luta de classes o tempo todo.

O embate Os Muito Ricos x Os da Classe Operária está presente em toda a trama. No futebol, o tempo todo – e também fora dele. Os realizadores aproveitam que já estão mesmo com a mão na massa e mostram como são cruéis, impiedosos, os patrões.

A região de Lancashire concentrava, pelo que a série mostra, um grande número de indústrias têxteis – algumas muito grandes, com mais de 3 mil operários, outras menores, como a pertencente ao bom James Walsh. James Walsh é mostrado como uma absoluta exceção – o único membro da associação dos proprietários de indústrias têxteis que se preocupa com seus operários. Ele é o único que fica perturbado com a decisão de todos os seus pares de cortar os salários dos empregados a fim de enfrentar a diminuição de seu lucro com as oscilações da cotação da matéria-prima e dos produtos das tecelagens.

Há momentos até em que a série roça perigosamente com o terreno minadíssimo do maniqueísmo – o pecado mortal da arte que considera Todo Patrão Mau e Todo Empregado Bom.

Roça no maniqueísmo – mas, felizmente, não cai nele. Felizmente, os roteiristas conseguiram escapar desse precipício, e a série acaba mostrando que há gente ruim dos dois lados, gente boa dos dois lados.

O próprio Arthur, o capitão do time dos ricos, tem momentos em que tropeça, faz besteiras, para defender seu grupo, sua classe – mas depois demonstra ter bom caráter. E vários dos operários do Darwen também tropeçam, cometem asneiras.

Personagens díspares – mas com características em comum

É fascinante a forma com que os roteiristas construíram as duas principais personagens femininas: Alma, a mulher de Arthur, e Martha Almond, a moça por quem Fergus Suter vai se interessando cada vez mais. São duas atrizes bem interessantes, tanto a já citada Charlotte Hope, que faz Alma, quanto Niamh Walsh, que interpreta Martha. Charlotte Hope é inglesa de Salisbury, de 1991; em maio de 2020, tinha 35 títulos na filmografia. Niamh Walsh é irlandesa de Arklow, de 1988; estava com apenas 9 títulos no currículo.

Personagens díspares, antípodas. Uma rica, educada, bem tratada pela vida. A outra pobre, mãe solteira em um tempo em que as mães solteiras eram estigmatizadas. Uma que sofreu um aborto natural e teve depressão pela falta do filho que não nasceu, a outra que criava a filha, ainda que sozinha, e com dificuldades. Mas são, as duas, a bem tratada Alma e a batalhadora Martha, mulheres fortes, que prezavam sua independência. Que não se sujeitavam a ser apenas sombras dos homens de suas vidas.

É Alma que primeiro percebe as falhas de Arthur, quando ele cede ao espírito da classe e aceita atitudes antidesportivas para enfrentar os adversários da working class. E Martha, por sua vez, resiste bem às tentativas do amante rico de continuar a relação.

Os roteiristas (Julian Fellowes é o mais conhecido deles, mas são muitos, conforme mostra a ficha técnica abaixo) fizeram questão também de mostrar que os dois personagens centrais, os dois craques dos times rivais, Arthur e Fergus, eram jovens com problemas com os pais. Cada um com um tipo de problema – mas, no fundo, no fundo, a mesma coisa.

O pai de Arthur (o papel de Anthony Andrews), lord, banqueiro, sempre foi ausente quando o filho era criança. Nunca deu qualquer carinho – e não consegue compreender como o filho, já adulto, “perde tempo” com aquela bobagem de futebol.

Só existe na vida de uma criança algo pior que um pai ausente: o pai violento, abusivo – e o pai de Fergus Suter batia na mulher e nas filhas. Tudo o que Fergus queria na vida era ter dinheiro para tirar a mãe e as irmãs das garras do pai bêbado e abusivo.

O esporte tal qual conhecemos foi inventado ali

Há registros de alguma coisa parecida com o futebol na China do terceiro e segundo séculos antes de Cristo. Meu interesse pelas origens remotas do futebol é tão imenso quanto a curiosidade sobre a influência do período menstrual das baleias na formação das correntes marítimas ou da importância da importação das bicicletas bessarabianas pelo Laos no crescimento do comércio mundial.

Até mesmo fatos bem menos antigos não me comovem muito. Meu tio Floriano Peixoto Corrêa (1903-1938), irmão da minha mãe, que jogou pelo Fluminense e pelo Grêmio, escreveu o que provavelmente foi o primeiro livro brasileiro sobre o esporte, Grandezas e Misérias do Nosso Futebol – e nunca fui atrás de um dos poucos exemplares que restam para ler.

Não considero importante saber que houve, no passado longínquo, parática de esporte parecido. Importante é que o futebol tal como conhecemos hoje surgiu ali na Inglaterra, na segunda metade do século XIX. Então registro aqui o que os letreiros ao final do sexto e último episódio de The English Game relatam:

“Em 1885, a FA mudou as regras, para permitir jogadores profissionais. Nenhum time amador voltou a ganhar a Copa da FA novamente. Arthur Kinnaird tornou-se o presidente da FA, durante 33 anos, até sua morte, em 1923. Fergus Suter e Jimmy Love são reconheciedos como pioneiros do jogo moderno, que agora tem mais de 4 bilhões de fãs no mundo inteiro.”

Muito bem. Duas últimas consaiderações:

Ruim demais essa mania da Netflix de não traduzir os títulos das séries, manter os títulos em inglês. Ridículo.

E salve o Corinthians, campeão de glórias mil!

Anotação em maio de 2020

The English Game

De Julian Fellowes, Tony Charles e Oliver Coton, Inglaterra, 2020

Diretores Tim Fywell e Birgitte Stærmose

Com Edward Holcroft (Arthur Kinnaird), Kevin Guthrie (Fergus Suter)

e Charlotte Hope (Margaret Alma Kinnaird, a mulher de Arthur), Niamh Walsh (Martha Almond), Craig Parkinson (James Walsh, o dono do time de Darwen), James Harkness (Jimmy Love), Ben Batt (Cartwright), Gerard Kearns (Tommy Marshall), Henry Lloyd-Hughes (Alfred Lyttelton), Kerrie Hayes (Doris Platt), Joncie Elmore (Ted Stokes), Mary Higgins (Ada Hornby), Sam Keeley (Smalley), Harry Michell (Monkey Hornby), Philip Hill-Pearson (Tom Hindle), Daniel Ings (Francis Marindin), Kate Phillips (Laura Lyttelton), Kelly Price (Lydia Cartwright), Anthony Andrews (Lord Kinnaird, o pai de Arthur), Sylvestra Le Touzel (Lady Kinnaird), Sammy Hayman (Davy Burns),

Lara Peake (Betsy Cronshaw)

Roteiro Gabbie Asher, Richard Barber, Geoff Bussetil, Tony Charles, Edward Charlton, Oliver Cotton, Julian Fellowes, Sam Hoare, Ben Vanstone

Música Harry Escott

Montagem Helen Murphy e David Thrasher

Casting Sarah Crowe

Produção 42. Distribuição Netflix

Cor, cerca de 300 min (5h)_

***

 

Um comentário para “The English Game”

  1. Não achei grande espingarda. Dá para ir vendo. Também devo dizer que não sou apreciador de futebol, há largos anos que não vejo um jogo.

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