Earthquake Bird, no Brasil Pássaro do Oriente, de 2019, é uma caprichada, bem realizada co-produção Inglaterra-Japão-EUA passada inteiramente em Tóquio e arredores. Baseia-se em um livro de uma escritora inglesa que viveu no Japão – e certamente conhece muito do modo de vida daquele país.
Tem uma trama que envolve suposto assassinato, polícia, interrogatório na polícia – mas não é propriamente um policial. É muito mais um drama psicológico, que examina com cuidado, acuidade, diversos aspectos do comportamento humano, em especial o sentimento de culpa.
A personagem central, uma bela e jovem mulher ocidental que bem cedo resolveu imigrar para o Japão e se radicar lá, naquele país de língua e cultura tão distantes, é absolutamente fascinante. E a atriz que a interpreta é uma das mais maravilhosas coisas do cinema mundial nos últimos anos – Alicia Vikander, essa sueca de beleza tão esplendorosa quanto seu talento.
Uma jovem ocidental que decide viver no Japão
Earthquake Bird, o livro, foi o primeiro da escritora Susanna Jones, nascida em 1967 em East Yorkshire, filha de um casal de professores. Estudou drama na Royal Holloway University, e lá, por causa do estudo sobre o teatro Nô, ficou interessada na cultura japonesa. Depois de se formar em 1988, viajou para o Japão, onde ensinou inglês em Nagóia. Passou dois anos na Turquia e voltou para o Japão em 1994; viveu em Chiba e depois em Tóquio, trabalhando como editora de roteiros de rádio e apresentadora. Vivia em Tóquio quando começou a escrever seu primeiro romance.
Aparentemente, Earthquake Bird, de 2001, não foi lançado no Brasil, o que é estranho, já que recebeu três prêmios na Inglaterra, o John Llewellyn Rhys, o Betty Trask Award e o John Creasy Dagger, dado pela Crime Writers’ Association. (Se existe uma associação de escritores de livros de crime importante, seguramente é a britânica, a terra de Robert Louis Stevenson, Arthur Conan Doyle, Agatha Christie, Ian Fleming, John Le Carré, para citar só uns poucos nomes.)
Depois de anos no Japão, Susanna Jones voltou para sua Inglaterra natal; vive atualmente perto de Brighton, aquela espécie de Santos dos londrinos. Sua criatura, Lucy Fly, ao contrário, foi ao Japão para ficar.
No livro, Lucy Fly é – exatamente como sua criadora – uma inglesa de East Yorkshire. Quando ocorrem os eventos relatados, em 1989, fazia 10 anos que ela havia chegado ao Japão. Fluente em japonês, trabalhava numa empresa fazendo traduções para o inglês – basicamente de manuais.
No filme, dirigido e roteirizado por Wash Westmoreland – inglês de Leeds, nascido em 1966, 22 títulos na filmografia como diretor –, houve uma adaptação. Já que a atriz que ele teve a inteligência de escolher para o papel (e a imensa sorte de ela aceitar) é Alicia Vikander, Lucy Fly nasceu na Suécia. A rigor, isso não muda nada: tanto no filme quanto no livro, a protagonista é uma mulher ocidental que chegou jovem ao Japão e se radicou lá – não há diferença se vem da Inglaterra ou da Suécia. De qualquer forma, veio de um país rico, desenvolvido; optou por viver num país tão diferente porque quis – e seguramente deve ter enfrentado todo tipo de dificuldade.
Uma jovem figadal, passional, ciumenta, raivosa
A Lucy Fry do diretor inglês Wash Westomoreland e da atriz sueca Alicia Vikander é uma mulher enigmática, quase misteriosa.
Bem. Já é difícil, creio eu, imaginar uma sueca ou uma inglesa que tenha optado por se radicar em Tóquio. Vemos, ouvimos falar de europeus do Norte que optam por passar parte do ano em países de clima ameno, como Espanha, Itália, Grécia. Ou que optam por se aventurar pelo Caribe, pela América Latina. Pelos Estados Unidos ou Canadá, claro. Agora, pelo Japão… Isso não é comum, para dizer o mínimo. E não vai aqui preconceito, pelamordeDeus.
A Lucy do filme parece ser ainda mais fluente em japonês que a do livro. Enquanto a do livro traduz do japonês para o inglês, a do filme traduz do inglês para o japonês – o que, convenhamos, é ainda mais difícil. (Nós a vemos traduzindo diálogos de um filme com Michael Douglas para o japonês. Não identifiquei o filme na hora; é Chuva Negra/Black Rain, que Ridley Scott dirigiu em 1989, um tenso thriller em que dois policiais de Nova York prendem um membro da Yazuka, a máfia japonesa, e têm que escoltá-lo até o Japão.)
Parece estar tendo sucesso em sua vontade de se adaptar à terra para a qual emigrou, apesar de todas as diferenças de comportamento, de formação cultural. Tem um bom emprego em uma grande empresa de tradução. Participa de um quarteto de cordas, nas horas vagas, com três japonesas – é bastante amiga de pelo menos uma delas, creio que a sra. Katoh (Akiko Iwase).
Parece uma pessoa ajustada, tranquila – apesar da condição de expatriada, que vive num país em que tudo é tão absolutamente diferente do seu.
Uma pessoa aparentemente ajustada, tranquila – é assim que a vemos bem no início dos 107 minutos do filme.
À medida em que a narrativa avança, no entanto, vamos vendo que aquela é uma aparência falsa. Lucy parece tentar não mostrar ao mundo que tem um vulcão de sentimentos escondidos. Vai se demonstrar figadal, passional, ciumenta, raivosa. Vai pouco a pouco revelando que seu passado tem segredos duros, difíceis.
Uma loura é encontrada morta
O filme começa mostrando Lucy Fly-Alicia Vikander num trem metropolitano de Tóquio. Veste-se de forma simples, correta, elegante, nada que chame a atenção. Quando desce na estação mais próxima do seu trabalho, a câmara mostra um cartaz pregado em uma pilastra: a polícia anuncia o desaparecimento de uma mulher e pede informações sobre ela.
A mulher é ocidental, loura, chama-se Lily Bridges (o papel de Riley Keough).
Lucy chega à agência de tradução em que trabalha, caminha pela ampla sala de dezenas de pessoas ocupadas diante de telas de computador, senta-se à sua mesa. A seu lado, a colega e amiga Natsuko (Kiki Sukezane) se espanta. Fica óbvio que Lucy não aparecia no local de trabalho fazia alguns dias. Natsuko pega um jornal do dia, mostra para ela. A notícia naqueles caracteres impossíveis de se ler – mas que Lucy domina bem – diz que foi encontrado um corpo de mulher que parecia ser de Lily Bridges.
Logo em seguida surgem dois policiais no local, à procura de Lucy.
Na delegacia, Lucy é interrogada por uma dupla de policiais, um jovem, agressivo, rápido, outro um senhorzinho com todo o jeito de uma pessoa tranquila, sábia. O detetive jovem, Oguchi, é o papel de Ken Yamamura. O detetive Kameyama é interpretado por Kazuhiro Muroyama.
Começam a fazer as perguntas sobre a relação entre Lucy e Lily Bridges em inglês. Só depois de algum tempo a moça demonstra que fala japonês perfeitamente.
Lucy demonstra que não está nem um pouco interessada em auxiliar os policiais. E aí vem um flashback – sem que nada nos avise que é um flashback.
Lucy tem uma paixão avassaladora pelo namorado
Vemos que Lucy, algum tempo atrás, não se explicita exatamente quanto, começou um relacionamento com um rapaz chamado Teiji Matsuda (o papel de Naoki Kobayashi). Teiji trabalhava num restaurante de noodles, o macarrão chinês, como cozinheiro e garçom – e, nas horas vagas, era fotógrafo. Seu hobby – o espectador vai vendo – era para ele muito mais importante do que o trabalho feito para garantir o sustento.
Teiji é uma figura ainda mais estranha, ainda mais enigmática que Lucy.
Pouco depois que se conhecem, por mero acaso, de forma absolutamente fortuita, saem juntos para jantar. O diálogo é esquisito.
Lucy tenta puxar papo, faz alguma pergunta, alguma observação. Teiji pergunta por que ela disse aquilo.
Lucy: – “Só tentando conversar”.
Teiji; – “Por quê?”
Lucy: – “Porque é o que as pessoas normais fazem”.
Teiji: – “Mas você não é normal”.
Lucy: – “Nem você”.
Teiji: – “Então não vamos fingir que somos”.
Teiji passa a fotografar Lucy de todas as formas possíveis. Era 1989, conforme um letreiro havia nos avisado no início, e portanto ainda era o tempo das fotografias analógicas, feitas com filmes a serem depois revelados, as fotos ampliadas. Teiji tem um laboratório de revelação e ampliação em casa – e há sequências ali que fazem lembrar o Blow-up de Michelangelo Antonioni.
A esta altura, é fundamental fazer dois registros. O primeiro: Lucy fica apaixonadíssima por Teiji, num nível quase doentio, quase de absoluta dependência – enquanto Teiji não demonstra amor muito grande por ela. O segundo registro: Lucy fica muito curiosa com o fato de Teiji guardar trancadas a chave algumas ampliações de fotos. Tomada pela curiosidade, vai fuçar, mexer no arquivo – e descobre que, antes dela, Teiji havia feito dezenas e dezenas e centenas e centenas de fotos de uma outra mulher. Aquilo a deixa ainda mais curiosa, desconfiada.
Lucy já está namorando Teiji quando surge na vida dela a americana Lily Bridges.
(No livro, Lily Bridges é inglesa como Lucy, e também, por coincidência, de Yorkshire. No filme, virou americana, já que a atriz que a interpreta, Riley Keough, é americana.)
Lily é apresentada a Lucy por seu amigo inglês Bob Johnson (o papel de Jack Huston). São duas moças mais ou menos da mesma idade, aí de 30 e tantos anos, mas diferentes demais. Enquanto Lucy se veste de forma tradicional, conservadora mesmo, à la Oriente, Lily é moderna, à la Ocidente – saias curtas, coxas à mostra. Enquanto Lucy é contida, Lily é solta, à vontade.
É muito fácil imaginar o que vai acontecer, e por isso não chega a ser spoiler dizer que Lily vai se colocar no meio da relação entre Lucy e Teiji.
O que não dá para prever, de forma alguma, é o que o virá depois, bem no final.
Será só quando o filme está chegando ao fim que o espectador entenderá por que Lucy é atormentada por um terrível sentimento de culpa – e por que, afinal, ela havia resolvido se radicar no Japão. Mas relatar isso seria um absoluto spoiler.
Uma neta de Elvis, um sobrinho-neto de John Huston
Earthquake Bird, pássaro do terremoto. Um título intrigante.
Como se sabe, o Japão – assim como também a Califórnia – é um lugar em que a ocorrência de tremores de terra é comum. Há pequenos tremores de terra algumas vezes por ano. O filme mostra isso: quando Lucy está ajudando Lily a procurar um apartamento para alugar, as duas acham um bom imóvel – mas Lucy adverte que, como aquele prédio é bem antigo, não deve ter boa proteção contra os terremotos, ao contrário dos mais novos.
Na primeira vez em que Teiji leva Lucy para sua casa, para mostrar seu laboratório fotográfico, ele começa a fazer fotos da moça – e, de repente, a terra começa a tremer. Teiji puxa Lucy para fora, leva-a para um abrigo. Quando o tremor pára, ele pede a ela que preste atenção ao canto dos pássaros: há pássaros, ele indica, que começam a cantar após cada tremor de terra.
Veremos mais tarde um segundo terremoto; Lucy e Lily estão na casa da primeira – e ela, como Teiji já havia feito, chama a atenção da amiga para o cantar dos pássaros ao fim do terremoto.
Não conhecia a atriz que faz Lily, Riley Keough. Fiquei espantado, surpreso, ao ver que ela é neta de Elvis Presley É a mais velha das netas de Elvis e Priscilla, filha de Lisa Marie Presley e Danny Keough. Nasceu em 1989 – o ano em que se passa a ação deste Earthquake Bird –, em Santa Monica, Califórnia, e começou a trabalhar como modelo ainda adolescente. Sua filmografia – iniciada em 2010, com um papel pequeno em The Runaways: Garotas do Rock – tem já 32 títulos.
O elenco do filme tem outro descendente de grandes nomes: Jack Huston, que faz Bob, o amigo inglês de Lucy, é filho de Tony Huston, sobrinho de Danny e Anjelica, sobrinho-neto do grande John, sobrinho bisneto de Walter. Meu Deus, que família.
Também nunca tinha ouvido falar no diretor e roteirista Wash Westmoreland. Nascido – em Leeds, Inglaterra, como já foi dito – em 1966, tem 22 títulos como diretor, inclusive Para Sempre Alice (2014), com Julianne Moore como uma professora diagnosticada com Alzheimer, e Colette (2018), a biografia da escritora francesa, interpretada por Keira Knightley.
Mas sem dúvida alguma a maior sensação deste bom filme é Alicia Vikander.
Uma atriz belíssima, de imenso talento
Me ocorre o verso de Gilberto Gil: “A Bahia já me deu régua e compasso.”
Diacho: a Suécia já nos deu Greta Garbo, depois Ingrid Bergman. Não precisaria ter dado mais coisa alguma – já bastava. Mas o danado do pais nórdico continuou nos dando maravilhas atrás de maravilhas. Ann-Margret. May Britt. E as bergmanianas – Bibi Andersson, Harriet Andersson, Ingrid Thulin.
Como se nada disso bastasse, veio Lena Olin.
E agora vem Alicia Vikander.
À moça nascida em Gotemburgo em 1988, 13 anos depois da minha filha, não basta ter uma beleza aterradora, chocante. Ela tem um talento que meu Deus do céu e também da terra…
Sempre achei que um grande ator é o sujeito que tem mil caras diferentes. Que é um camaleão.
A Alicia que a gente vê como Lucy Fly em Earthquake Bird não se parece nada com a Caroline de O Amante da Rainha (2012), a Vera de Juventudes Roubadas (2014), a Gerda de A Garota Dinamarquesa (2015), a Isabel de A Luz Entre Oceanos (2016).
É uma atriz de mil caras.
Alicia Vikander mostra quem é Lucy Fly, como é sua alma torturada, com apenas seus olhares. É impressionante. Ela não faz um gesto amplo, largo – não precisa. Apenas as expressões do rosto dela mostram a imensa quantidade de emoções que estão passando pela personagem.
Até fevereiro de 2020, essa moça já havia ganho 52 prêmios, fora 58 outras indicações. Levou o Oscar de melhor atriz coadjuvante por A Garota Dinamarquesa; teve duas indicações ao Globo de Ouro e também ao Bafta, por A Garota Dinamarquesa e por Ex Machina.
Só por ela já vale ver este Earthquake Bird.
Anotação em março de 2020
Pássaro do Oriente/Earthquake Bird
De Wash Westmoreland, Inglaterra-Japão-EUA, 2019
Com Alicia Vikander (Lucy Fly)
e Riley Keough (Lily Bridges), Naoki Kobayashi (Teiji), Jack Huston (Bob Johnson), Kiki Sukezane (Natsuko, a amiga e colega de trabalho de Lucy), Ken Yamamura (detetive Oguchi), Kazuhiro Muroyama (detetive Kameyama), Ken Yamamura (Oguchi), Akiko Iwase (Mrs. Kato), Yoshiko Sakuma (Mrs. Yamamoto)
Roteiro Was Westmoreland
Baseado no romance Earthquake Bird, de Susanna Jones
Fotografia Chung-hoon Chung
Música Atticus Ross, Leopold Ross, Claudia Sarne
Montagem Jonathan Alberts
Casting Yoko Narahashi
Produção Scott Free Productions, Twenty First City. Distribuição Neflix.
Cor, 107 min (1h47)
Disponível na Netflix em fevereiro de 2020
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