O Assassino de Valhalla / The Valhalla Murders / Brot

Nota: ★★★☆

Na Islândia, aquela ilha gelada no Atlântico não muito longe do Pólo Norte, com 330 mil habitantes, a média de assassinatos é menor que dois por ano. O número exato é 1,8 homicídios em média a cada ano, desde 2002. O ano mais violento, de lá para cá, foi 2002, quando aconteceram quatro assassinatos.

Pois é: na série O Assassino de Valhalla, de 2019, há quatro assassinatos. O total de casos que houve em 2002. Mais que o dobro da média anual registrada nestas duas últimas décadas.

E são assassinatos especialmente brutais. As três primeiras vítimas têm seus olhos cortados a faca.

O primeiro crime acontece bem no início do primeiro dos oito episódios da série, cada um de cerca de 45 minutos. Na primeira sequência, vemos um carro em movimento, noite cerrada, puxando um barco, coberto com um grosso plástico negro. Dentro do barco há uma mulher. Fica claro que o motorista se prepara para levar a mulher para algum lugar perto do mar onde ela será morta, para depois o corpo ser lançado no mar.

Corta. Um letreiro informa: “12 dias antes”.

12 dias antes de aquela mulher ser levada dentro de um barco coberto puxado por um carro, um homem aí de uns 60 anos está se agarrando com uma mulher no banheiro de um bar. Saem do banheiro, sentam-se junto ao balcão do bar. O celular dele toca, é a ex-mulher.

Dali a pouco o casal sai do bar. Vemos o homem sozinho, no porto, junto do mar – e ali ele é assassinado com dez facadas.

O corpo será encontrado um dia depois. A vítima é identificada como Pór Ingimarsson, um ex-traficante, viciado, sem profissão ou emprego definidos.

Uma policial em dias extremamente tensos

Ainda nas primeiras sequências, ficamos conhecendo a detetive da polícia metropolitana de Reikjavik, a capital da Islândia, que chefiará a investigação sobre o assassinato e será a protagonista da série. Todos a chamam pelo apelido de Kata (o papel de Nína Dögg Filippusdóttir, na foto acima). Tem uns 40 e tantos anos, é bonita, presença marcante; é tida por todos como excelente policial, e, por aqueles dias, está certa de que vai ser nomeada chefe de departamento, um cargo que estava vago fazia algum tempo.

Ao chegar de volta a casa, depois de um tempo nadando num clube próximo, Kata recebe a visita do ex-marido, Egill (Valur Freyr Einarsson), que está preocupado com o único filho do casal, Kári (Grettir Valsson), um adolescente de 16 anos, que vive com a mãe. O pai acha que o garoto está andando em más companhias, pode ser que esteja bebendo. Kata acha que é bobagem a preocupação do ex, que Kári vai muito bem, na medida do possível para um adolescente.

Virão, para Kata, dias extremamente tensos. Exatamente naqueles dias em que ela terá que iniciar a investigação de um caso de assassinato brutal, ela enfrentará uma tremenda decepção. Ao contrário do que Kata e todos ali perto dela achavam, ela não é a escolhida para a chefia do departamento. Seu chefe, Magnús (Sigurður Skúlason), o comissário da polícia metropolitana, anuncia para o cargo o nome de Helga (Tinna Hrafnsdóttir), uma policial bem menos experiente que Kata – e por quem ela não tinha a mínima simpatia.

A expressão de frustração de Kata, no momento do anúncio do nome da outra, é impressionante. A atriz Nína Dögg Filippusdóttir, 46 anos em 2019, o ano de lançamento da série, mais de 30 títulos no currículo, prova ali que tem grande talento.

A decepção profissional é dura, mas não é o pior. Kata passará a desconfiar que o filho Kári esteve envolvido no caso de uma garota estuprada por estudantes numa festa. A suspeita a deixará com os nervos à flor da pele.

Os problemas – como o mar – vêm em ondas, e logo surge mais um homicídio na cidade. Ómar (Theodór Júlíusson), homem muito rico, investidor, é assassinado dentro de sua casa – e tudo indica que o assassino é o mesmo do outro caso. Ómar é morto com muitas facadas, e tem seus olhos cortados a faca.

Parece não haver qualquer ligação entre aquele sujeito muito rico e o pequeno traficante.

O comissário Magnús pede ajuda à polícia de Oslo. Na verdade, pede o reforço de um detetive que ele conhece muitíssimo bem, Arnar (Björn Thors, na foto abaixo), policial de extrema competência, natural da Islândia, que havia se radicado muitos anos antes na capital finlandesa.

Arnar dividirá com Kata a investigação dos crimes – e o protagonismo da série.

Um reformatório em que os menores sofriam maus tratos

A partir de uma foto enviada pelo correio para Ómar, os detetives Kata e Arnar perceberão que há, sim, uma ligação entre o rico investidor e o traficante marginal. Os dois aparecem, bem mais jovens, na foto. É uma imagem feita uns 35 anos antes, nos anos 80. Nela aparecem Pór, Omar, uma mulher, um outro homem e diversos adolescentes.

A mulher será identificada como Brynja, que morava numa pequena cidade, Borgarnes, e havia trabalhado num reformatório de menores um tanto distante daquela cidade, chamado Valhalla. Kata e Arnar vão até Boargarnes, e, com o chefe do pequeno destacamento policial do lugar, Hákon (Víkingur Kristjánsson), visitam o grande casarão onde funcionou no passado o reformatório, hoje abandonado. Lá dentro está o corpo de Brynja – com claro sinais de que ela foi morta pelo assassino dos dois homens.

Logo vai se revelando que Valhalla era o absoluto horror. Que, no passado, aqueles três funcionários, Pór, Ómar e Brynja, agora assassinados, maltratavam de todas as formas possíveis os adolescentes internados no reformatório.

Localizados, pelo menos dois homens que haviam passado pelo lugar dos horrores na adolescência fazem relatos apavorantes sobre o que acontecia ali. E dão a identificação do quarto homem que aparece na foto: chamava-se Steinþór (Stefán Hallur Stefánsson), e era absolutamente diferente daqueles outros três funcionários. Era um homem bom, e fazia tudo para proteger os adolescentes.

A essa altura, o caso dos assassinatos é, naturalmente, um dos principais assuntos da imprensa islandesa. A repórter Selma (Anna Gunndís Guðmundsdóttir), do canal de TV RÚV, parece tão bem informada quanto os detetives Kata e Arnar, e está sempre dando novas informações sobre o caso, sobre os horrores de Valhalla. Lá pela metade dos 8 episódios da série, veremos que um dos informantes da repórter era exatamente aquele Steinþór, o funcionário de Valhalla que era contra os maus-tratos infligidos aos garotos.

E Steinþór é também assassinado. O espectador vê a cena do ataque do criminoso – só não consegue, é claro, ver o rosto dele.

A série ainda está pela metade. Ainda haverá muitos desdobramentos, muitas surpresas.

A investigação leva às altas esferas do poder

O Assassino de Valhalla é daquelas histórias policiais que acabam levando as investigações de crimes a altas esferas do poder.

O título escolhido para o Brasil foge do título usado nos países de língua inglesa, e que é o título usado nos créditos iniciais de cada episódio – The Valhalla Murders. Os assassinatos de Valhalla, não o assassino.

Vejo que o título original em islandês é Brot – violação, segundo o tradutor do Google.

Apropriadíssimo.

Há um detalhe interessantíssimo. Como foi dito, a repórter Selma, que vai revelando ao público diversas informações sobre os crimes relacionados com o reformatório Valhalla, trabalha na RÚV – que é a emissora oficial da Islândia, em inglês Icelandic National Broadcasting Service. Ao que tudo indica, uma espécie assim de uma BBC islandesa – uma emissora pública, mas independente do governo de plantão.

O detalhe é que a RÚV é uma das produtoras dessa série!

E a série também tem o apoio – como podemos ver nos créditos iniciais de cada episódio – do Icelandic Film Center e do Ministério das Indústrias e Inovação. Uma série co-produzida pela TV pública, com o apoio de órgãos do governo – e que mostra gente das altas esfera do poder envolvidas em crime.

Na ficção, muitos crimes – e violentíssimos

A série tem aquela bela qualidade de não focar apenas na investigação do caso policial em si, mas ir fundo, também, na análise do comportamento dos personagens centrais. Ao longo dos oito episódios, vamos conhecendo mais e mais sobre Kata e Arnar, os dois competentes policiais.

As suspeitas de Kata sobre a participação de seu filho Kári no estupro da jovem estudante vão crescendo, e transtornando a cabeça da boa policial. Ela acabará cometendo pecados por causa da história.

A vida de Arnar é muito mais dramática, mais dura que a da mulher que acaba sendo sua parceira na investigação. Através de informações que vão nos sendo dadas a conta-gotas, em um diálogo aqui, outro ali, ficamos sabendo que Arnar quis sair de seu país e foi se radicar na Finlândia por ter horror à sua família, em especial a seu pai, que era um homem abusivo, batia na mulher e nos filhos. O pai nunca suportou o filho – e o filho sempre teve ódio do pai.

Ao saber que Arnar está de volta a Reikjavik – ele é sempre citado na TV como um dos investigadores da série de crimes que choca o país –, Laufey (Kristín Þóra Haraldsdóttir), sua irmã, tenta entrar em contato com ele, mas o policial se recusa a vê-la. Ele não consegue, porém, se impedir de fazer uma visita ao pai, muito doente, apenas semiconsciente, na cama de um asilo. – “Quem é o fracassado agora?”, ele pergunta para o pai que não pode ouvi-lo.

O pai acaba morrendo – e, mesmo contra a vontade, depois de muita indecisão, Arnar vai ao velório.

O espectador fica sabendo então que o cunhado de Arnar, um tal Leifur (Gunnar Hansson), é violento como seu pai. Sua irmã apanha do marido como sua mãe apanhava.

Funcionários abusivos em reformatório de jovens. Pais, maridos abusivos. É uma série pesada, esta Brot, The Valhalla Murders.

Competente, envolvente, de qualidade. Mas pesada, dura.

Mais uma comprovação de que as histórias policiais escritas e/ou filmadas pelos nórdicos são especialmente pesadas, duras, violentas, sanguinolentas.

São ricos, civilizadíssimos – e, no caso específico da Islândia, praticamente não têm assassinatos. Mas suas histórias policiais mostram um mundo especialmente cruel. Basta lembrar da Trilogia Millennium, do sueco Stieg LarssonOs Homens que Não Amavam as Mulheres, A Menina que Brincava com Fogo e A Rainha do Castelo de Ar. Dos livros do norueguês Jo Nesbø, que renderam filmes como Grande Bolada (2011) e Boneco de Neve (2017). Ou o dinamarquês Plano Quase Perfeito (2017), uma grande bobagem que esguicha sangue da tela. Ou a série A Ponte/Bron/Broen (2011-2019), caprichadíssima co-produção Suécia-Dinamarca. Ou, at last but not at least, a série islandesa Trapped, iniciada em 2015. Uma beleza, como esta série aqui.

Na vida real, poucos crimes. Na ficção, muitos – e sempre violentíssimos.

Anotação em abril de 2020

O Assassino de Valhalla/The Valhalla Murders/Brot

De Thordur Palsson, criador, roteirista, Islândia, 2019

Diretores: Thordur Palsson, Thora Hilmarsdottir, Davíd Óskar Ólafsson

Com Nína Dögg Filippusdóttir (Kata), Björn Thors (Arnar)

e Sigurður Skúlason (Magnús, o comissário da polícia metropolitana), Tinna Hrafnsdóttir       (Helga, a nova chefe de departamento), Aldís Amah Hamilton (Dísa, policial), Bergur Ebbi Benediktsson (Erlingur, o expert em informática), Arndís Hrönn Egilsdóttir (Hugrún, a perita), Anna Gunndís Guðmundsdóttir (Selma, a repórter da TV), Valur Freyr Einarsson (Egill, o ex-marido de Kata), Víkingur Kristjánsson (Hákon lögreglumaður, o policial do interior), Kristín Þóra Haraldsdóttir (Laufey, a irmã de Arnar), Gunnar Hansson (Leifur, o marido abusivo de Laufey), Sigurður Sigurjónsson (Pétur, o procurador do Estado), Þór Tulinius (Kristján, o pai de Timmi, garoto de Valhalla), Laufey Elíasdóttir (Esther, a mãe de Timmi), Hanna María Karlsdóttir (Elsa, a mulher de Magnús), Stefán Hallur Stefánsson (Steinþór, o funcionário bom de Valhalla), Damon Younger (Ragnar, o filho de Ómar, a segunda vítima), Theodór Júlíusson (Ómar, a segunda vítima), Arnbjörg Hlíf (Íris, a amante de Pór, a primeira vítima), Grettir Valsson (Kári, o filho de Kata)

Roteiro Thordur Palsson (criador), Ottar Nordfjord, Kristinn Thordarson, Davíd Óskar Ólafsson, Margrét Örnólfsdóttir, Ottó Geir Borg, Mikael Torfason

Fotografia Árni Filippusson

Montagem Valdís Óskarsdóttir    

Casting Andrea Brabin       …     

Produção Truenorth Productions, Mystery Productions, Ríkisútvarpið-Sjónvarp (RÚV), com apoio do Icelandic Film Center e do Ministério das Indústrias e Inovação. Distribuição Netflix.

Cor, cerca de 400 min (6h40)

***

Disponível na Netflix em abril de 2020

Um comentário para “O Assassino de Valhalla / The Valhalla Murders / Brot”

  1. Gostei muito desta série que felizmente chegou à Netflix de Portugal.
    Digo felizmente porque A Ponte / Bron / Broen chegou mas desapareceu antes de acabar e Trapped nunca cá chegou.
    A Netflix cá em Portugal ainda não percebeu que tem concorrência e cada vez mais.
    Eu gosto das séries nórdicas e já vi algumas. A última que vi foi Deadwind que também é uma investigação de crimes.

Comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *