A história é muito conhecida, das mais lendárias da Hollywood daqueles anos dourados entre 1930 e 1950: o todo-poderoso David O. Selznick assistiu ao filme sueco Intermezzo, feito em 1936, e resolveu importar a atriz de beleza faiscante, uma jovem então desconhecida nos Estados Unidos chamada Ingrid Bergman.
Em 1939 foi lançada a versão americana do mesmo filme, com Leslie Howard, o Ashley de … E o Vento Levou, no papel principal, o do mundialmente famoso violinista clássico Holger Brandt, e Ingrid Bergman reprisando o seu papel de Anita Hoffman, a jovem pianista por quem Holger se apaixona.
Os créditos iniciais da refilmagem americana são uma pérola. São daquele tipo em que as palavras, os nomes vão subindo – surgem na base da tela e vão indo para o alto, como na famosérrima apresentação dos filmes da série Star Wars. Enquanto ao fundo vemos um violinista tocando numa bela sala de concertos, lemos: “Selznick International presents LESLIE HOWARD in Intermezzo A Love Story With Edna Best, John Halliday and introducing INGRID BERGMAN”.
Introduzindo! Introduzindo uma atriz que, embora com apenas 24 anos em 1939, já havia feito 11 filmes, a maioria deles em um dos papéis centrais!
É o fenômeno que na academia chamam de etnocentrismo – quando um grupo, uma sociedade, se julga o centro do mundo, o umbigo do universo, e tudo gira em torno daquele conjunto de pessoas.
É possível que os romanos também tenham sido assim, nos tempos dos Césars, e também os ingleses, quando ao longo das 24 horas do dia o Sol estava sempre passando por cima de uma colônia britânica. Mas o fato é que, desde o início do século XX, os americanos são os mestres mundiais do etnocentrismo. O universo gira em torno das fronteiras dos Estados Unidos da América; tudo que está fora daquelas fronteiras é bárbaro – não bárbaro gíria, no sentido de bacana, mas bárbaro de barbárie.
Se um filme não foi feito por eles, não valeu, não existe, precisa ser refilmado lá – como David O. Selznick mandou refilmar, com a mesma atriz, o filme sueco feito apenas três anos antes. Ao longo das décadas Hollywood continuou refilmando filmes ingleses, franceses, italianos, brasileiros, chilenos, argentinos, o que for.
Só para dar uns poucos exemplos: Alfred Hitchcock, outra commodity estrangeira que Selznick importou, refaria em Hollywood em 1956 o seu próprio O Homem Que Sabia Demais feito na Inglaterra em 1934. O brasileiro Dona Flor e Seus Dois Maridos (1976), de Bruno Barreto, virou Meu Adorável Fantasma/Kiss Me Goodbye (1982). O argentino O Segredo dos Seus Olhos (2009), de Juan José Campanella, virou Olhos da Justiça/Secret in Their Eyes (2015). E o chileno Sebastián Lelio, autor de Gloria (2013), foi convidado para refazer ele mesmo seu filme em Hollywood, e então em 2018 surgiu Gloria Bell.
“Na Suécia não fazem ela usar tanta maquiagem”
Perdão pela digressãozinha, mas ela tem tudo a ver com os dois Intermezzo. Intermezzo, o sueco e o americano, são talvez o exemplo mais impressionante dessa coisa de os americanos só considerarem que um filme existe se for refeito lá.
Bem, então a história de que Selznick viu o filme sueco e decidiu na hora importar a atriz para Hollywood é de fato bem conhecida.
Mas há uma história que, creio, é bem menos famosa. Eu jamais tinha ouvido falar dela, até que fui ao IMDb depois de vermos os dois filmes no mesmo dia, primeiro o sueco, depois o americano.
Relato o que diz o IMDb sem me ater literalmente ao original, para dar meus pitacos mais à vontade e também incrustrar outras informações.
Para dirigir o seu Intermezzo, Selznick chamou Gregory Ratoff (1897-1960), um russo que havia fugido da Revolução Comunista e, em Hollywood, teve carreira extensa e intensa como ator (49 títulos), diretor (30), produtor (9) e roteirista (5). Para escrever o roteiro, convocou George O’Neal (1898-1940), que, entre outros créditos, era um dos roteiristas da primeira versão do clássico Sublime Obsessão/Magnificent Obsession, de 1935.
Tanto Ratoff quanto O’Neal foram bastante respeitosos com o filme sueco; mais adiante volto a esse tema.
Selznick queria muito que o inglês Leslie Howard (1893-1943), um nome absolutamente respeitado, que iniciara a carreira ainda na Inglaterra em 1914, aceitasse o papel de Ashley Wilkes no seu grande projeto que acabaria ficando pronto no mesmo ano de 1939, … E o Vento Levou, e por isso convidou-o não apenas para fazer o papel principal de Intermezzo ao lado da nova estrela que ele introduzia às platéias americanas, como também para ser o co-produtor do filme.
Isso aí foi uma introdução. A história pouco conhecida que o IMDb conta vem agora.
Depois de algum tempo de filmagem, Selznick demitiu o diretor de fotografia Harry Stradling Sr, e chamou para o lugar dele o grande Gregg Toland (1904-1948), o artista das lentes que teve seis indicações ao Oscar de Melhor Fotografia entre 1936 e 1942, esta última por Cidadão Kane.
O produtor todo-poderoso mostrou para o prodígio trechos que já haviam sido filmados e perguntou a ele por que raios Ingrid Bergman, que era tão absolutamente, radiantemente, fulgurosamente bela no filme sueco parecia agora tão medonha.
Bem, a palavra que o IMDb usa – ghastly – é isso, medonha. Ingrid Bergman jamais poderia parecer medonha, mas seguramente Selznick deve ter exagerado na crítica por estar possesso com o mau resultado obtido até então com o produto que ele havia importado da Escandinávia.
A resposta de Gregg Toland o IMDb traz entre aspas. É absolutamente fantástica. É uma total maravilha. É melhor que os filmes, os dois, o sueco e o americano.
Gregg Toland respondeu:
– “In Sweden they don’t make her wear all that make-up.”
Na Suécia não fazem ela usar tanta maquiagem.
Meu Deus do céu e também da Terra! As equipes de maquiagem de Hollywood encheram o rosto mais belo que já passou diante de uma câmara de cinema de porcaria!
Claro que Selznick mandou refazer as tomadas em que Ingrid aparecia – desta vez sem pó que escondesse a beleza absurda.
E aí aconteceu o óbvio: as platéias americanas se apaixonaram pela atriz. E, como Hollywood tem um feitiço muitíssimo maior do que qualquer outro lugar produtor de filmes, e o que sai de lá vai para o mundo todo, o planeta inteiro se encantou com Ingrid Bergman.
Três anos depois, em 1942, na pele de Ilsa Lund, ela entraria no Ricky’s Café, em Casablanca, para desespero do proprietário (“De todos os botecos de todas as cidades do mundo inteiro, ela entra no meu”, ele diz, bêbado feito um gambá) e a alegria de gerações e gerações de cinéfilos.
Mais tarde, no início dos anos 50, as platéias americanas, com a ajuda de colunistas caretas, virariam as costas a Ingrid, enciumadas porque ela trocou os Estados Unidos pela Itália de sua nova paixão, Roberto Rossellini, com quem fez seis filmes e três filhos, inclusive Isabella, digna herdeira da beleza da mãe. Mas isso definitivamente é outra história.
A base da história é velha como andar pra frente
A base, o cerne, o fulcro da trama de Intermezzo é algo quase tão comum quanto cachorro mordeu homem, ou gato arranhou menina: homem casado se apaixona por outra pessoa.
Sobre essa base tão absolutamente lugar-comum, déjà-vu, tão velha quanto andar pra frente, Gösta Stevens e Gustaf Molander, em seu roteiro original, criaram sua história, seus personagens.
Holger Brandt é, como já foi dito bem rapidamente, um virtuoso do piano, uma estrela das salas de concerto, um compositor de renome. É o papel de Gösta Ekman no original sueco e de Leslie Howard na cópia americana.
Quando a ação começa, o professor Brant, como é em geral chamado, está voltando para a Suécia após uma longa turnê por diferentes países, juntamente com seu grande amigo e parceiro profissional, o pianista Thomas Stenborg (Hugo Björne no filme sueco, John Halliday no americano). Thomas é um homem mais velho que Holger, e está decidido, agora que está voltando para casa, a se aposentar. Quer viver em paz com sua mulher Greta (Emma Meissner no primeiro, Enid Bennett no segundo), sem nada de longas viagens, cuidando do seu jardim e, para se divertir, dando aulas para uma ou outra pessoa que lhe parecer talentosa.
Uma das alunas de Thomas é Anita Hoffman – o papel de Ingrid Bergman primeiro falando em sueco, depois em inglês.
A mesma srta. Hoffman que toma aulas de piano com o veterano Thomas Stenborg dá aulas de piano para a garotinha Ann-Marie Brandt, a caçula dos dois filhos do casal Holger e Margit Brandt.
Margit é interpretada pela sueca Inga Tidblad e depois pela inglesa Edna Best. Inga Tidblad era mais experiente, mais conhecida que Ingrid Bergman, e seu nome aparece em segundo lugar nos créditos do filme original, antes do da atriz que iria virar uma gigantesca estrela. Já Edna Best havia feito, na versão inglesa de O Homem Que Sabia Demais, o papel da mulher do protagonista, o que seria de Doris Day na refilmagem americana. O que é interessante, já que Hitchcock também foi – como já se disse aqui – importado por David O. Selzinick, e viria a fazer três filmes com Ingrid Bergman.
São duas boas, experientes atrizes, a Inga Tidblad da primeira versão e a Edna Best da segunda. Foram bem escolhidas para o papel: Margit Brandt é já uma senhora, mãe dessa garotinha Ann-Marie, de sete anos, e de um rapaz já adolescente – Ake (Hasse Ekman), de uns bons 17, 18 anos, na versão sueca, e Eric (Douglas Scott), de uns 14, na americana.
Nos dois filmes, Margit não é mais jovenzinha, nem é uma mulher belíssima como a srta. Hoffman, a professora de piano da garotinha Ann-Marie (Britt Hagman, na versão sueca, Ann Todd, na americana).
(As fotos acima são da versão sueca. As abaixo, da versão americana.)
O violonista só repara na bela moça quando ela toca
Holger está naquele momento da vida sem seu parceiro, seu acompanhante ao piano, já que Thomas resolveu se aposentar. O empresário da dupla, Charles Möller (Bullen Berglund primeiro, depois Cecil Kellaway), bem que tenta, insiste, insiste, insiste – mas o velho Thomas está mesmo decidido a se aposentar.
Os acasos – nas tramas dos romances, dos filmes, exatamente como na vida real – conspiram para que os casamentos sejam violentamente abalados. Holger jamais havia prestado atenção à srta. Hoffman, a moça que dava aulas de piano para a sua filhinha – apesar de toda aquela beleza reluzente dela. Mas aí acontece.
Ann-Marie convida a srta. Hoffman para a festa dos seus sete anos.
Na festa, o pai toca ao violino uma de suas composições com a filha o acompanhando ao piano. Depois dessa apresentação, a srta. Hoffman senta-se ao piano e toca – e aí, pela primeira vez na vida, o grande violinista, famoso, reconhecido internacionalmente, presta atenção à moça. Não tinha ainda reparado na beleza estonteante – mas repara no talento da pianista.
E aí é o brejo. É também o portal do paraíso, é a maior maravilha do mundo, o tremor de terra que muda a vida das pessoas – mas é também o brejo, o abismo, a porcaria, a merda. Aí é quando, como diria o gago, fo-fo-fo-fo-fo…
Pois é. Eu sei muito bem disso porque – assim como uma boa parte da população do planeta – vivi na carne e na mente a experiência tenebrosa, maravilhosa.
Há momentos em que o americano é cópia exata do sueco
O Intermezzo americano é uma cópia bastante fiel do original sueco, repito. Tanto o roteirista George O’Neal quanto o diretor Gregory Ratoff – trabalhando sob o chicote de Selznick – seguiram o original em quase tudo.
O filme sueco usa, por exemplo, tomadas de flores, de blocos de gelo sendo levados pelo rio, para indicar o fim do inverno, a iminência da primavera. O americano usa quase exatamente as mesmas tomadas. Quando Holger e Anita Hoffman se encontram casualmente, depois da festa dos sete anos de Ann-Marie, à saída de um concerto, há praticamente a repetição das sequências. Os dois caminham durante um tempo, param numa ponte – vemos os blocos de gelo passando, mas, sobretudo, vemos, em close-up, o rosto de Anita Hoffman-Ingrid Bergman sorrindo, alegre, dizendo que está à vontade por causa do vinho que tomou no jantar.
Nesse trecho, o filme americano é quase uma réplica perfeita, idêntica, sequência a sequência, tomada a tomada, do sueco. Como a réplica que o talentoso Gus Van Sant resolveu fazer em 1998, sei lá por que raios de motivo, de Psicose (1960), o filme de Hitchcock. (Olha ele aí de novo, gente!)
A tomada em plano geral do navio em que Holger e Thomas retornam para a Suécia parece exatamente a mesma – se é que não é exatamente a mesma. Da mesma forma, são cópias exatas as tomadas das malas recebendo os selos, as etiquetas dos novos hotéis, para indicar que os protagonistas estavam realizando concertos nas mais diferentes capitais européias.
Mary reparou que até mesmo uma das roupas que Anita-Ingrid usa, durante as férias, após a turnê, é a mesma na refilmagem – embora no original a temporada de férias seja nas montanhas da Alemanha, e na versão americana seja no litoral francês. (Essa mudança é explicável pelo contexto histórico: em 1936 ainda se podia passear na Alemanha; em 1939 o mundo estava à beira do início da Segunda Guerra Mundial.)
Uma cópia fiel.
Reparamos, no entanto, que há umas três ou quatro coisinhas que o roteiro americano consertou pequenas bobagens do original sueco. Detalhes – embora de alguma importância.
É o caso de uma coisinha naquela sequência fundamental da festa de sete anos de Ann-Marie. No original, logo depois que Holger faz a apresentação com a filha, e todos os convidados aplaudem muito, Anita vai até o piano e começa a tocar. Ann-Marie tenta falar com o pai que ele havia prometido que eles tocariam mais uma vez, mas o pai não dá atenção a ela, porque está mesmerizado com o som que sai do piano tocado por Anita.
Há aí uma coisinha esquisita. Anita é uma moça sensata, tranquila – não parece natural o fato de ela se sentar ao piano na casa do grande violinista e começar a tocar loucamente.
Os americanos corrigiram essa bobagem dos suecos. Após a apresentação de Holger e Ann-Marie, a garota convida a professora a tocar alguma coisa – e só assim Anita vai e assume o piano.
Mas há algo em comum nos dois filmes nesta sequência. Ali, fica nítido que Margit Brandt, ao ver o marido embasbacado com a performance da moça jovem e linda ao piano, percebe que fo-fo-fo-fo-fo…
É. Deu.
“Uma das melhores histórias de amor”, exagera Maltin
Leonard Maltin, o sujeito que mais vendeu guias de filmes, naqueles tempos em que se vendiam guias de filmes, não incluiu o Intermezzo sueco em seu guia de 2015, o último editado. Ao americano, deu 3 estrelas e meio em 4. Ele exagera:
“Uma das melhores histórias de amor jamais filmadas, em que Howard, casado, violista renomado, tem um caso com a protegée musical Bergman (em seu primeiro filme falado em inglês). Curto e doce, com destaque para o tema romântico de Robert Henning-Heinz.”
O Guide des Films de Jean Tulard diz o seguinte sobre o original sueco: “O filme que lançou Ingrid Bergman. Ele foi refeito por Gregory Rantoff em 1939 (Intermezzo, La Rançon du Bonheur), com a mesma Ingrid Bergman e Leslie Howard”.
Bem minimalista, o guia do mestre Tulard.
A minha opinião… Bem, acho que já dei. A frase do diretor de fotografia Gregg Toland – “Na Suécia não fazem ela usar tanta maquiagem” – é melhor que os filmes.
Ingrid Bergman é melhor que o filme sueco e que o filme americano.
Se não fosse por Ingrid Bergman, nenhum dos dois Intermezzo seria lembrado hoje – não teriam por que ser lembrados.
Vale a pena ver por causa de Ingrid Bergman.
E, diacho, Maltin, há trocentas e sessenta e nove mil histórias de amor tão ou mais interessantes que esta!
A coisa mais interessante da história de amor de Holger e Anita é a frase dela: – “Eu fui um intermezzo”.
Anotação em junho de 2020
Intermezzo: Uma História de Amor/Intermezzo
De Gustaf Molander, Suécia, 1936
Com Gösta Ekman (professor Holger Brandt), Inga Tidblad (Margit Brandt), Ingrid Bergman (Anita Hoffman), Bullen Berglund (Charles Möller, o empresário), Hugo Björne (Thomas Stenborg, o pianista), Britt Hagman (Ann-Marie, a filha de Holger e Margit), Hasse Ekman (Åke, o filho de Holger e Margit), Millan Bolander (Emma, a empregada dos Brandt), Emma Meissner (Greta, a mulher de Thomas), Anders Henrikson (o marinheiro sueco)
Argumento e roteiro Gösta Stevens e Gustaf Molander
Fotografia Åke Dahlqvist
Montagem Oscar Rosander
Produção Svensk Filmindustri,
P&B, 93 min
**1/2
Disponível em DVD
Intermezzo: Uma História de Amor/Intermezzo: A Love Story
De Gregory Ratoff, EUA, 1939
Com Leslie Howard (Holger Brandt), Ingrid Bergman (Anita Hoffman), Edna Best (Margit Brandt), John Halliday (Thomas Stenborg, o pianista),
Cecil Kellaway (Charles, o empresário), Enid Bennett (Greta, a mulher de Thomas), Ann Todd (Ann Marie, a filha de Holger e Margit), Douglas Scott (Eric, o filho de Holger e Margit), Eleanor Wesselhoeft (Emma, a empregada dos Brandt), Marie Flynn (Marianne, a garotinha francesa)
Roteiro George O’Neil
Baseado no roteiro original de Gösta Stevens e Gustaf Molander
Fotografia Gregg Toland e Harry Stradling Sr. (este último não é creditado)
Música Robert Russell Bennett e Max Steiner (não creditados),
Montagem Francis D. Lyon
Produção David O. Selznick.
P&B, 80 min
**1/2
Disponível no YouTube
4 Comentários para “Intermezzo: Uma História de Amor”