Corações Desertos / Desert Hearts

3.0 out of 5.0 stars

Corações Desertos/Desert Hearts, de 1985, é um daqueles filmes absolutamente independentes – feito com orçamento baixíssimo, longe, bem longe do cinemão de Hollywood – e absolutamente femininos. É dirigido por mulher, o roteiro é de uma mulher, o romance em que se baseia é de uma mulher, as personagens centrais são mulheres.

Independente, feminino – e ousado. Suavemente ousado.

E também – creio que dá para afirmar isso com segurança – pouco badalado, pouco conhecido hoje.

O que é de se estranhar, já que o filme foi definido como “um dos primeiros trabalhos em que uma relação lésbica é retratada favoravelmente”, no The Globe and Mail, um dos principais jornais canadenses, e, na Wikipedia, como “o primeiro longa-metragem de ficção a retratar uma história de amor lésbica em uma veia geralmente convencional com temas positivos e respeitosos”.

Seguramente ajuda a explicar por que Corações Desertos não se tornou cult o fato de nem a diretora nem as atrizes serem famosas.

Boas profissionais, mas menos conhecidas

Foi o primeiro longa-metragem de ficção da diretora Donna Deitch, que, antes, havia feito apenas dois documentários, um curta e um longa. Ela se mantém atuante desde então: fez, depois deste Corações Desertos, dois outros longas para o cinema, Criminal Passion (1994) e Angel on My Shoulder (1998), mas dedicou-se principalmente à televisão. Dirigiu episódios de mais de duas dezenas de séries, entre elas ER, Crossing Jordan, Law & Order Special Victims Unit, Dragnet, Heroes, Grey’s Anatomy.

Apesar disso, o nome de Donna Deitch não consta do Dicionário de Cinema – Os Diretores de Jean Tulard, do Dicionário de Cineastas de Rubens Ewald Filho nem do The International Dictionary of Films and Filmakers – Directors, editado por Christopher Lyon. Não constando dessas obras amplas, abrangentes, cada uma delas com várias centenas de realizadores, é claro que Donna Deitch não está no 501 Movie Directors, de Stephen Jay Schneider.

Aliás, é bom – e impressionante – lembrar que no livro 501 Movie Directors há apenas 34 mulheres. São 467 homens e 34 mulheres.

Assim como a diretora Donna Deitch não é famosa, também não eram estrelas as atrizes que fazem os principais papéis do filme, Helen Shaver, Patricia Charbonneau e Audra Lindley. Não significa que não são boas atrizes, nem que fizeram poucos filmes, de forma alguma – apenas não viraram estrelas.

Helen Shaver (nas fotos acima e abaixo), nascida em cidade pequena de Ontario, Canadá, em 1951, trabalhou como atriz em 90 filmes, e é também produtora e diretora. Como diretora, tem mais de 50 títulos no currículo, a maioria séries de TV. Em 2008, mais de duas décadas depois de ter trabalhado ao lado de Patricia Charbonneau neste Corações Desertos, fazendo as duas mulheres que se apaixonam uma pela outra, Helen Shaver dirigiu a colega em um episódio da ótima série Law & Order: Special Victims Unit.

Patricia Charbonneau (a morena das fotos abaixo) nasceu em Long Island, Nova York, em 1959; trabalhou em mais de 30 filmes e séries de TV, foi dirigida por realizadores de prestígio como William Friedkin e Michael Mann e contracenou com Stanley Tucci, Julie Andrews, Sam Waterston, Diane Weist e James Garner. E além disso tem um rosto lindíssimo, que a diretora Dona Deitch e seu diretor de fotografia Robert Elswit souberam muito bem explorar.

Audra Lindley (1918-1997) já era uma atriz veterana em 1985, quando o filme foi lançado – havia começado a carreira em 1941. Vejo agora que ela trabalhou no primeiro filme americano do genial realizador checo Milos Forman, Procura Insaciável/Taking Off, de 1971. Sua filmografia tem 79 títulos, e a atriz foi indicada duas vezes ao Globo de Ouro, em 1972 e 1976, por séries de TV.

Uma professora de Nova York que quer se divorciar

Helen Shaver interpreta Vivian Bell, uma jovem senhora que desce do trem vestida como se estivesse indo à missa de domingo, e não empreendendo uma longa viagem desde a Costa Leste até Reno, Nevada. A informação de que o trem vem do Leste é anunciada por um funcionário da ferrovia, e a de que ali é Reno, Nevada, ficamos sabendo pelas placas da estação e também por um letreiro que também explicita o quando: 1959.

O roteiro escrito por Natalie Cooper – baseado no livro Desert of the Heart, de Jane Rule – faz com que o espectador demore um tanto a compreender onde o filme vai chegar. Qual será, afinal, seu tema.

Vemos que Vivian Bell é recebida na estação por uma senhora do lugar, Frances Parker (o papel de Audra Lindley). Frances e Vivian sabem quem é cada uma, mas nunca haviam se visto antes. Vivian é uma professora universitária de Nova York, mulher portanto culta, refinada, vindo da maior metrópole do país para aquele distante Estado conhecido por seus cassinos, desertos e divórcios ágeis. E ela está chegando para ficar hospedada no rancho que pertence a Frances, um rancho perdido no meio do deserto.

Não sei se acontece com a maioria dos espectadores, ou não, mas Mary e eu demoramos um pouco – até bastante, creio – para compreender o que a sofisticada professora foi fazer naquele rancho. Pode-se ter a impressão (e tivemos) de que ela havia resolvido mudar inteiramente de vida, de ambiente, e tinha sido contratada para dar aulas de literatura inglesa em Reno, Nevada.

Só bem mais adiante é que ficará explícito que Vivian atravessou o país de Nova York para Reno porque as leis do Estado de Nevada facilitam demais a obtenção do divórcio – e a jovem professora queria fazer, com a maior rapidez possível, o divórcio de seu marido, com quem havia vivido por 12 anos.

Não se explica por que motivo Vivian decidiu se separar – não interessa. O que fica claro é que não é um processo litigioso, de forma alguma. Por algum motivo, o casal havia decidido pôr um fim ao casamento, e Vivian se dispusera a ir até o Estado em que desfazer o contrato conjugal é mais fácil e rápido. E havia feito uma reserva não num hotel em Reno e sun naquele rancho no deserto mas bem perto da cidade.

Um processo de sedução longo, complicado

No trajeto entre a estação de trem e o rancho, bem no início da narrativa, as duas vão conversando, se conhecendo – Vivian um tanto contida, fechada, sisuda, Frances jovial, alegre, comunicativa. A estrada, simples, de pista única, corta um trecho do deserto, em que de vez em quando há um cassino. Frances mostra um deles, diz que muitos anos atrás havia trabalhado ali.

É uma estrada de pouco movimento – na imensa maior parte do tempo só se vê nela o carro de Frances. Mas num determinado momento surge um carro trafegando velozmente em marcha à ré, na pista contrária. Frances faz a apresentação: “Vivian Bell, Cay Rivvers”.

Cay Rivvers é o papel da bela Patricia Charbonneau.

Nas sequências seguintes, em conversas entre Vivian e Frances, esta conta que durante uns dez anos havia sido casada com o pai de Cay, um homem excepcional, maravilhoso, bonito, rico. Não é dito explicitamente, mas as indicações são de que o rancho-hotel pertencia ao pai de Cay; quando ele morreu, Frances continuou tocando a administração. Cay morava lá também, e, na época da ação, trabalhava num dos cassinos de Reno.

Corações Desertos leva bem uma meia hora para mostrar que Cay, jovem, bela, espírito aventureiro, amante da liberdade e assumidamente lésbica, está se apaixonando por Vivian.

Pela cabeça de Vivian, por sua vez – isso é mostrado claramente – até então jamais havia passado a idéia de uma relação com outra mulher.

O processo de sedução de uma pela outra será longo, complicado, delicado – e as duas atrizes, Helen Shaver e Patricia Charbonneau, dão um show.

A diretora vendeu ações do filme para financiá-lo

Romances homossexuais não eram ainda bem aceitos na América de 1959, a época em que se passa a ação do filme. O ambiente acadêmico, o ambiente de Vivian, não admitia esse tipo de coisa – como a própria professora fala algumas vezes.

Como mostrado acima, em 1985 ainda não havia filmes mostrando romances homossexuais – Donna Deitch fez um filme que é de fato pioneiro.

E foi um filme pioneiro também na forma com que a realizadora conseguiu juntar o US$ 1,5 milhão necessário para tocar a produção. Ela vendeu ações do filme, no valor de US$ 15 mil, para qualquer um que topasse o investimento – corretores da bolsa, investidores individuais. Vendia a idéia em geral para lésbicas ou ativistas feministas, ou para homens gays. Numa entrevista dada em 1991 ao The Guardian, Donna Deitch contou: “Em San Francisco, vendi (o filme) como política. Em Nova York, como arte. Em L.A. tentei convencer que o filme poderia ser um sucesso de bilheteria.”

Levou mais de 5 anos para juntar o dinheiro necessário – e no final vendeu sua casa.

Donna Deitch viria a ser a primeira realizadora lésbica a dirigir uma cena de amor entre duas mulheres a ser exibida em cinemas normais, para audiências gerais – e não salas de arte ou de sexo explícito.

A sequência, aliás – e aqui vai minha opinião –, é bela, muito bela. Não é nada apelativa, de forma alguma. É suave, romântica. Sensual, também, sem dúvida – mas de forma alguma quase-pornográfica. Até porque não seria admissível uma sequência de sexo muito explícita em 1985 em um filme americano, mesmo independente.

Não que isso tenha importância, mas faço o registro: nem Helen Shaver, que faz Vivian, nem Patricia Charbonneau, que faz Cay, são lésbicas. Helen Shaver conheceu Steve Smith, que viria a ser seu terceiro marido, mãe de seu filho, com que está casada até hoje, durante as filmagens de Corações Desertos. Ele era o chefe da equipe de maquinistas – o key grip. Patricia Charbonneau já era casada, na época das filmagens, com Vincent Caggiano, pai de seu filho, com quem vive até hoje.

A autora do livro foi também uma pioneira

A autora do livro em que o filme se baseia, Jane Rule (1931-2007), era lésbica, e viveu com a grande paixão de sua vida, Helen Sonthoff, de 1956 até 2000, quando Helen morreu.

Assim como sua personagem Vivian Bell, antes de se assumir como lésbica Jane Rule teve um relacionamento heterossexual – com o crítico John Hulcoop, que ela conheceu no início dos anos 1950 num período em que viveu na Inglaterra. Mas aí então, ainda na Inglaterra, teve uma experiência com uma mulher mais velha, e sua vida mudou. De volta aos Estados Unidos, conheceu Helen Sonthoff.

Estabeleceram-se, as duas, no Canadá – onde viveriam até o resto de suas vidas. Jane Rule já vivia no Canadá quando terminou de escrever o romance Desert of the Heart. Os manuscritos foram recusados por 22 editoras, até finalmente o romance ser publicado, em 1964.

A partir da publicação, a autora passou a receber dezenas e dezenas de cartas de mulheres que diziam viver vidas “muito tristes, até desesperadas”. E Jane Rule passou a ser procurada por cada publicação canadense para falar sobre a coisa de mulher que assume o lesbianismo. “Eu virei, para a mídia, a única lésbica do Canadá – um papel que aceitei relutantemente e usei para educar as pessoas da maneira que podia.”

Parece ter sido uma figura de fato interessante, fascinante, essa Jane Rule. Para surpresa de muitos na imensa comunidade gay, ele se declarou contra o casamento de homossexuais: ”Ser forçada de novo para a união oficial do casal não é um passo adiante, mas um passo atrás para a definição de relacionamento imposta pelo Estado. Com tudo o que aprendemos, nós deveríamos estar ajudando nossos irmãos e irmãs heterossexuais a sair das suas prisões impostas pelo Estado, não nos oferecento para nos juntarmos a eles nelas.”

Uma professora “persuadida a examinar sua sexualidade”

Leonard Maltin deu ao filme 2.5 estrelas em 4: “Tensa professora vai a Reno para obter um divórcio nos anos 1950 e é persuadida por uma jovem a examinar sua própria sexualidade. Longa de estréia da diretora-roteirista Deitch (com um aceno contemporâneo a The Women) tem seus momentos, mas os personagens são desenvolvidos superficialmente e a história avança intermitentemente”.

Não concordo com a afirmação de que os personagens não são bem desenvolvidos. Mas que a narrativa avança intermitentemente, esporadicamente, um tanto aos trancos, é bem verdade. Há momentos em que ela anda, outros em que ela parece patinar. Nisso concordo perfeitamente com a opinião de Leonard Maltin.

The Women a que ele se refere é um filme de 1939, no Brasil As Mulheres, dirigido por George Cukor, tido como o diretor que sabia contar histórias de mulheres, entender o universo feminino. Mostra as vidas e os amores de um grupo de mulheres, e tinha um elenco estelar: Norma Shearer, Joan Crawford, Rosalind Russell, Paulette Goddard, Joan Fontaine.

A história – de autoria de Clare Boothe Luce – seria refilmada em 2008, por uma tal Diane English; esse novo The Women, no Brasil As Mulheres: O Sexo Forte, tinha também elenco estrelar, que incluía Meg Ryan, Annette Bening, Debra Messing, Jada Pinkett Smith, Bette Midler, Candice Bergen, Carrie Fisher e Cloris Leachman.

Roger Ebert também deu 2.5 estrelas em 4 a Corações Desertos. Ele começa assim sua longa crítica:

Desert Hearts conta a história de uma mulher na faixa dos 30 anos que é subitamente levada para as turbulências da paixão, e como é basicamente uma história simples, este é basicamente um filme simples. O que o torna incomum é que a história se passa nos anos 1950, e a mulher se apaixona por uma lésbica.

“O filme é estrelado por Helen Shaver, aquela atriz canadense subestimada, de fina elegância, como Vivian, uma professor na Universidade de Columbia que viaja de trem até Reno para conseguir um divórcio. Patricia Charbonneau faz Cay, a mulher direta, ousada, que se apaixona por ela à primeira vista, e a terceira mulher na história é Frances (Audra Lindley), a mulher mais velha que dirige o rancho-hotel onde as candidatas a divorciadas aguardam o exigido atestado de residência em Nevada.”

Mais adiante, Roger Ebert afirma que “há uma cena de sexo de surpreendente poder”. E continua:

“Embora Desert Hearts não seja de maneira alguma um filme do tipo explotation (de exploração, apelativa), ele de fato depende dessa cena de sexo para poder funcionar – porque a estrutura do filme é tão claramente feita para levar àquela cena. Eu poderia ter gostado mais de Desert Hearts se ele tivesse sido mais sutil e observador sobre as duas mulheres. Poderia ter sido um filme melhor se fosse sobre descobrimento, em vez de sedução. (…) Ainda assim, Desert Hearts tem um poder inegável, e o poder vem, eu acho, da química entre Shaver e Charbonneau.”

Grande Roger Ebert! Que maravilha ler o texto de um crítico que adora ver filmes e adora escrever sobre eles.

Com o tempo, parece, o filme tem tido um reconhecimento talvez mais amplo que na época de seu lançamento, quase 35 anos atrás. Em dezembro de 2016, foi apresentado numa sessão especial no Musem of Modern Art de Nova York; recentemente, passou por uma restauração digital patrocinada pelo Arquivo de Filme e Televisão da UCLA, a Universidade da Califórnia em Los Angeles, pela coleção Criteriorn, Janus Films e pelo Sundance Institute.

No Brasil, o filme chegou a ser lançado, no início dos anos 2000, com o título de Redescobrindo o Amor. Em 2018, foi lançado em DVD como Corações Desertes pela ótima Versátil Home Vídeo, numa caixa de 4 obras com o título de Mulheres na Direção, ao lado de filmes de Agnès Varda, Ida Lupino e Lynne Ramsay.

Anotação em novembro de 2019

Corações Desertos/Desert Hearts

De Donna Deitch, EUA, 1985

Com Helen Shaver (Vivian Bell), Patricia Charbonneau (Cay Rivvers), Audra Lindley (Frances Parker)

e Andra Akers (Silver), Gwen Welles (Gwen), Dean Butler (Darell), James Staley (Art Warner), Katie La Bourdette (Lucille), Alex McArthur (Walter), Antony Ponzini (Joe Lorenzo), Denise Crosby (Pat), Tyler Tyhurst (Buck)

Roteiro Natalie Cooper

Baseado no romance Desert of the Heart, de Jane Rule

Fotografia Robert Elswit

Montagem Robert Estrin

Produção Donna Deitch, Desert Hearts Productions, The Samuel Goldwyn Company. DVD Versátil.

Cor, 93 min (1h33)

***

 

3 Comentários para “Corações Desertos / Desert Hearts”

  1. Eu amei o filme, assisto todos os dias, desde a pandemia declarada. Fiquei curiosa com uma novela que haveria, com a abordagem do tema. No que depender de mim, não haverá remake! Assim está ótimo”

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