Em seu 99º filme, aquele que viria a ser o último, lançado no Japão em março de 1956, poucos meses antes de sua morte, em agosto, aos 58 anos, Kenji Mizoguchi fala dos mesmos temas que abordou em muitas de suas obras: as condições de vida da mulher na sociedade japonesa, as emoções femininas, as imensas diferenças entre uma mulher e outra. E. mais especificamente, a prostituição, o dia-a-dia das prostitutas.
A Rua da Vergonha é uma obra-prima.
O filme tem dois eixos centrais, me parece. Um deles, o mais importante, é o retrato daquele grupo de mulheres – cinco prostitutas que trabalham num bordel chamado Aldeia dos Sonhos, numa rua do bairro do meretrício de Tóquio naqueles meados dos anos 50, uma década após o final da Segunda Guerra Mundial. Quem são elas, de onde vêm, o que pensam, como vivem, como é seu cotidiano.
E há também um segundo eixo, secundário, é verdade, mas que também tem importância na história: como se organiza, como se ordena, como funciona a prostituição na capital do império japonês na época em que o filme foi feito. Como é a relação entre as prostitutas e entre elas e os patrões, os donos do bordel. E como se discutia, exatamente naquela época, uma legislação para proibir oficialmente a prostituição – ou seja, torná-la uma atividade clandestina.
Cinco mulheres inteiramente diferentes entre si
Repito um parágrafo do que escrevi sobre Mulheres da Noite, que Mizoguchi fez em 1948:
A questão por-que-a-mulher-decide-se-prostituir é uma das mais recorrentes do cinema – e, de resto, creio, das várias formas de arte, e também da vida. Talvez seja uma das questões mais complexas com que a humanidade já se deparou – quase tanto quanto aquelas básicas, quem-sou- onde-estou-para-onde-vou, sobre as quais Ingmar Bergman fez dramas geniais e Woody Allen fez comédias hilariantes.
Tanto em Mulheres da Noite quanto neste A Rua da Vergonha, Kenji Mizoguchi mostra mulheres que, no Japão empobrecido do pós Segunda Guerra Mundial, se tornaram prostitutas por não terem outra opção de sobreviver, de ganhar dinheiro para se sustentar e à sua família.
Mas também mostra, nos dois filmes, prostitutas que parecem se divertir, ter prazer com a coisa.
As cinco mulheres que trabalham no bordel Aldeia dos Sonhos são bem diferentes umas das outras, é claro. Cada uma tem uma história, um passado, um tipo de motivação, uma forma de encarar a vida bem diversos daqueles das colegas. O caleidoscópio parece mesmo montado para demonstrar que não existe uma resposta única para a questão de por que uma mulher opta pela prostituição. Para deixar claro que cada caso é um caso.
Yasumi (Ayako Wakao) é jovem, bela, a mais procurada, a que tem mais clientes, a que mais tem dinheiro – e o que tem de beleza, clientes e dinheiro é o absoluto inverso do caráter. Yasumi é absolutamente avara, ambiciosa, dinheirista – e não tem um pingo de respeito pelos outros seres humanos. É falsa, fingida, e mente monstruosamente.
É uma figura absolutamente asquerosa, nojenta.
Faz de gato e sapato – como se fosse uma femme fatale do mais cruel filme noir – um pobre homem que é absolutamente apaixonado por ela, que seria capaz de lamber o chão em que ela pisa. Esse homem, Aoki (não encontrei o nome do ator) sofre os piores tipos de horrores na mão da moça, come o pão que o diabo amassou bem amassadinho.
Uma hora lá Yasumi diz uma das frases mais cruéis que pode haver: “Você perdeu a cabeça por uma puta. Não é o primeiro.”
A Rua da Vergonha é cheio de diálogos forte, impressionantes, magistrais.
“Everybody knows that the good guys lost”, dizia Leonard Cohen. Sim, infelizmente muitas vezes os maus vencem. Yasumi se dá bem, ao final da história.
Uma sempre disposta a ajudar, uma que sofre pelo filho
Hanae (o papel de Michiyo Kogure) é em tudo por tudo o oposto de Yasumi. O que a outra tem de egocentrismo Hanae tem de altruísmo – está sempre disposta a ajudar as companheiras. A vida é dura, duríssima: o marido está tuberculoso e desempregado, e o filhinho, ainda bebê, precisa de cuidados.
Há uma sequência feita com extrema sensibilidade, em que os três entram num restaurante muito simples e pedem macarrão. Hanae finge que come – mas deixa a maior parte do prato para o marido doente. E há uma sequência tristíssima, em que Hanae chega em casa no momento exato em que o marido, no fundo do poço do desespero, está prestes a se enforcar. Ela faz uma impressionante profissão de fé:
– “Merda de país! Mas não vou me render. Não penso em desistir. Penso em seguir adiante. Embora seja uma prostituta, que a duras penas sobrevive, sei que tenho futuro. Tenho futuro!”
Yumeko (Aiko Mimasu) é bem mais velha que a asquerosa Yasumi e a admirável Hanae; é viúva, e se prostituiu para ter dinheiro para criar o filho, que agora, na época em que o filme se passa, já está deixando a adolescência para trás, é quase um homem feito.
Quando o filme ainda está no início, Suichi, o filho, vai à zona do meretrício para ver a mãe – uma versão japonesa do Cal Trask de John Steinbeck interpretado por James Dean em Vidas Amargas/East of Eden (1955), de Elia Kazan. É uma das muitas sequências do filme de cortar o coração de um frade de pedra.
Hanae sofre demais, assim como Yorie, de quem falo em seguida – mas, de todas, Yumeko é a que sofre mais, em seu amor pelo filho que se envergonha dela.
“O cliente é livre e leva o melhor”
Yorie (Hiroko Machida), assim como Yumeko, veio do interior, e é mais velha que Yasumi e Hanae. Tem o sonho de poder um dia voltar para o campo e – quem sabe? – reatar com o noivo.
Hanae – com a ajuda de Yumeko – incentiva a colega a ir atrás de seu sonho. Junta com as companheiras algum dinheiro para a passagem dela, e organiza em sua casa um almoço de despedida. Durante o almoço, alguém – quero crer que Yasumi, a bela sem caráter – se sai como uma das muitas frases impressionantes do filme: “Eu não vejo diferença: casar-se é como vender-se – só que a gente se vende por períodos mais curtos.”
Yorie viaja para o interior toda esperançosa – para, depois de algumas semanas, reaparecer nas proximidades do Aldeia dos Sonhos. Para Hanae, resume o que aconteceu:
– “Ele não estava apaixonado por mim, só me queria para trabalhar. Um trabalhador tem um salário, mas eu saía de graça para ele. (…) Conosco, embora o trabalho seja duro, pelo menos cobramos por ele. Tenho saudades do trabalho. (…) Queria um trabalho decente, procurei em todas as partes. Mas foi um esforço inútil – pagam uma miséria.”
As colegas intercedem junto aos patrões para que Yorie seja readmitida. E eles a aceitam.
A quinta das cinco mulheres daquele bordel é a mais jovem de todas – uma garota aí de uns 20 anos, 20 e pouquinhos. O nome é Mishiko (o papel de Machiko Kyô), mas ele prefere o apelido de Mickey, o ratinho de Hollywood. É bonita, tem um belíssimo corpo, sabe muito bem disso – é vaidosa, solta, desbocada. Um tanto como Yasumi, a sem caráter, não parece ver qualquer problema na prostituição – antes ao contrário. Parece ver aquilo como uma profissão como qualquer outra, só que bem paga.
Jovem, bela, gostosa, Mickey atrai um sujeito que era cliente firme de Yorie. A mais velha tenta chamar a novata às falas. Diz que ela violou uma das normas básicas da profissão: – “Pior que roubar dinheiro é roubar um cliente habitual de uma companheira”.
Jovem, cheia de si, Mickey faz um muxoxo de nem-te-ligo.
O homem então é que responde a Yorie, com uma das frases mais apavorantemente cruas deste filme que mostra tanta coisa apavorante e crua:
– “O cliente escolhe a mulher. Se tem peixe fresco, quem vai se conformar com outro? O cliente é livre e leva o melhor. Olhe-se no espelho e entenderá.”
“Sempre fizemos o que disse o governo”
Mickey é levada para os donos do Aldeia dos Sonhos por um velho conhecido da casa, um tal Eiko (Kenji Sugawara). Fica implícito que Eiko receberá alguma comissão por ter entregue a moça ao casal que é dono do Aldeia dos Sonhos – mas não há, no filme, menção à figura do cafetão. Ali, as prostitutas são como empregadas dos donos do bordel.
Empregadas, trabalhadoras, assalariadas – mas num esquema que roça no trabalho escravo. Como é comum em lugares isolados, distantes das grandes cidades, no Brasil e em tantos países pobres, em que os trabalhadores são obrigados a fazer as compras no armazém do patrão, as prostitutas do Aldeia dos Sonhos estão sempre devendo para os patrões. Como pedem dinheiro emprestado para comprar roupas, cosméticos e tudo o mais, estão sempre no vermelho.
Yasumi, a dinheirista, é a única que não deve nada aos patrões. Ao contrário: está sempre guardando dinheiro – até porque é a mais procurada entre todas. Mas mente para o pobre Aoki, o negociante que se apaixonou perdidamente por ela, que deve aos patrões a fortuna de 150 mil ienes – e Aoki, cabeça perdida pela bela mulher, vai fazer de tudo para conseguir juntar a dinheirama, na esperança de que a moça deixe aquela vida e fique com ele.
Bem no início do filme, a dona do bordel conversa com um policial conhecido. É uma forma encontrada pelo roteirista Masashige Narusawa para resumir, de cara, o contexto, a situação, como se dá o trabalho ali:
“A verdade é que nosso ofício é muito difícil. Sempre fizemos o que disse o governo, absolutamente sempre, e em nenhum ano deixamos de pagar os impostos. Quando acabou a guerra, nos pediram para satisfazer os americanos. Até reformamos o lugar. E agora, veja você, nos tratam como se fôssemos demônios. E discutem leis contra a prostituição.”
O policial concorda com ela – em parte: – “Não falta razão à senhora. Mas o governo recebe muitas pressões, e pressões fortes.”
E a proprietária: “Olha, Miyazaki, sou a quinta geração à frente deste local. Temos 300 anos de história. Se um local dura tanto, é porque é imprescindível para as pessoas.”
O patrão discursa que faz o bem daquelas mulheres
A possibilidade de passar a lei da proibição é uma ameaça a todos no negócio, patrões e empregadas. A Rua da Vergonha ainda está bem no começo quando o patrão pede para que todas as cinco profissionais da casa se reúnam.
(Não são ditos os nomes dos patrões; as pessoas se referem a eles apenas como o Senhor, a Senhora. E também não encontrei uma relação completa dos nomes dos atores do filme.)
O patrão fala para todas: – “Tenho que falar com vocês de uma coisa muito séria. Trata-se da nova lei contra a prostituição. Dizem que a lei é para nos proteger, mas não é verdade. Vocês ficariam com a pior parte: se pegarem clientes, serão presas. Ou seja, não poderão ganhar a vida.”
Em seguida, se dirige-se a cada uma das cinco, fazendo menção a alguma especificidade de cada uma – o filho de Yumeko que precisa de dinheiro para terminar a educação, o marido doente de Hanae que precisa de dinheiro para os remédios.
E depois volta a falar com todas: – “Espero que vocês entendam. Só os donos dos locais se preocupam com vocês. Aqui vocês têm o seu trabalho assegurado e podem ganhar a vida sem pensar em suicídio. De certo modo, nós cumprimos uma função social com vocês, já que o governo não cuida de vocês. Essa chatice de direitos humanos é uma mentira de funcionários inúteis que posuem uma colocação e um salário assegurado. Que diabo eles sabem de suas vidas?”
Qiando o filme se aproxima do fim, fica-se sabendo que o projeto de lei que proibia a prostituição não passou no Parlamento japonês. Mas é mencionado que aquilo era apenas uma trégua: novas tentativas seriam feitas para que fosse aprovada a proibição.
Atenção: aqui vem um spoiler.
Quando já estamos depois da metade dos curtos 87 minutos de duração de A Rua da Vergonha, há uma revelação surpreendente.
Como acontece já na segunda metade, revelar isso pode ser a rigor considerado um spoiler. Assim, quem não viu o filme ainda deveria pular para o próximo intertítulo – ou parar de ler por aqui.
Ao chegar ao bordel com a jovem Mickey, o rapaz Eiko conta uma história bem triste sobre o passado dela – como em geral são tristes as histórias das mulheres que não vêem outra opção na vida a não ser a prostituição.
Pois lá pelas tantas surge um senhor com todo aspecto de homem rico, próspero, à procura de Mishiko – é o pai da garota. Empresário na cidade de Kobe, quer resgatar a filha, levá-la de volta para casa, porque a irmã dela está com uma boa proposta de casamento, de rapaz de família rica. Se a família do rapaz, no entanto, souber que a irmã é prostituta ali em Tóquio, seguramente o noivado será desfeito.
Uma coisa horrorosa: o pai não vem retirar a filha da rua da vergonha porque gosta dela, quer o melhor para ela, mas sim porque a permanência dela ali pode atrapalhar a perspectiva de um casamento lucrativo.
E o pai ainda deixa escapar que sua mulher morreu, e ele casou de novo.
Mickey é tomada por uma onda de ódio. Cobra do pai o tanto que ele fez a esposa sofrer, com suas amantes, seus casos sem fim. E o manda embora com extrema firmeza.
Depois que o pai sai do bordel, escorraçado, a garota diz – para ninguém em especial, para o mundo, para desabafar: – “Parece uma novela de rádio. Que nojo! Vou tomar um banho e sair para ver um filme com Marilyn Monroe!”
Um cinema muito parecido com o neo-realismo italiano
Ver um filme com Marilyn Monroe. Uma Mishiko que adota o apelido Mickey. A dona do bordel que fala que “quando acabou a guerra, pediram para satisfazer os americanos”.
Kenji Mizoguchi não estressa, não enfatiza a presença dos americanos no Japão derrotado na guerra – mas, en passant, aqui e ali, dá mostras da influência da presença americana sobre o modo de vida japonês.
A presença americana não é enfatizada – mas a condição da mulher na sociedade japonesa aparece com destaque no duro, pesado, cruel diálogo entre Mickey e seu pai. É o tema recorrente na obra desse realizador em tudo por tudo admirável.
Em seu Dicionário de Cinema – Os Diretores, Jean Tulard fala da importância que Mizoguchi dá à mulher – “da imperatriz à prostituta”
Em sua monumental História do Cinema Mundial, Georges Sadoul afirma: “Considerada em conjunto, sua obra tem uma densidade que faltou a certos filmes tomados isoladamente. Ela foi dominada por uma crítica da condição imposta às mulheres japonesas, da alta ou da pequena burguesia, trabalhadoras ou prostitutas. Mizoguchi situou em Gion – zona do meretrício de Osaka – seu maior êxito, Les Soeurs de Gion, que em 1936 fez com que se falasse de um novo realismo japonês.”
O guia Baseline, de James Monaco, não se atém apenas às mulheres: “Embora não haja fios óbvios conectando a variada obra de Mizoguchi, um tema comum é a simpatia pelos explorados, pelos membros marginalizados da sociedade, sejam as mulheres, artistas viajantes, serventes feudais ou escravos. Ao mesmo tempo em que retira a câmara dos momentos de extrema violência, Mizoguchi raramente fugiu dos temas sociais difíceis. Seus filmes têm sido elogiados pela maneira com que eles harmonizam pontos aparentemente opostos – luz e sombra, aspereza e beleza, exigências sociais e necessidades pessoais.”
Tudo isso que dizem Jean Tulard, Georges Sadoul e o Baseline de James Monaco pode ser visto neste canto do cisne do cineasta.
Mas me impressionou especialmente em A Rua da Vergonha, assim como no anterior Mulheres da Vida, isso que o historiador Sadoul apontou – “um novo realismo japonês”.
É fantástico como Mizoguchi fazia, no Japão depauperado após a derrota na Segunda Guerra, um cinema parecido com o que se fazia no outro país que havia se aliado ao nazismo de Adolf Hitler e foi destroçado pelos Aliados, a Itália. O cinema de Mizoguchi nestes dois filmes se assemelha demais da conta com o neo-realismo italiano de Vittorio de Sica, Roberto Rossellini, o cinema das histórias de Cesare Zavattini e dos primeiros filmes de Luchino Visconti, Federico Fellini e Michelangelo Antonioni.
Filmes em preto-e-branco, com orçamento pequeno, focalizando gente pobre, das classes trabalhadoras, com muitas sequências fora de estúdio, nas ruas, ao ar livre. Tudo a ver com o neo-realismo italiano.
Acabou acontecendo que vi A Rua da Vergonha duas vezes, em um pequeno intervalo de tempo. Vi em julho de 2019, mas acabei não fazendo logo a anotação sobre ele. Depois de ver Mulheres da Noite, quis rever A Rua da Vergonha antes de finalmente escrever sobre o filme. E é impressionante como na revisão o filme se mostra ainda melhor, mais rico, mais cheio de belos detalhes, pequenas nuances.
Kenji Mizoguchi é o que há. Demorei demais a descobrir isso, mas o velho ditado sempre vale: antes tarde do que nunca.
Anotação em novembro de 2019
A Rua da Vergonha/Akasen chitai
De Kenji Mizoguchi, Japão, 1956.
Com Machiko Kyô (Mickey), Ayako Wakao (Yasumi), Michiyo Kogure (Hanae), Aiko Mimasu (Yumeko), Hiroko Machida (Yorie)
e Kenji Sugawara (Eiko), Yasuko Kawakami (Shizuko), Eitarô Shindô (Kurazô Taya), Bontarô Miake (guarda noturno), Sadako Sawamura (Tatsuko Taya), Daisuke Katô (presidente da associação dos donos de bordéis), Hisao Toake (Shiomi), Jun Tatara (o cliente de Yumeko), Osamu Maruyama (Sato Yasukichi)
Roteiro Masashige Narusawa
Baseado no livro de Yoshiko Shibaki
Fotografia Kazuo Miyagawa
Música Thosirô Mayuzumi
Montagem Kanji Sugawara
Produção Daiei Studios
P&B, 87 min (1h27)
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Um texto sensacional. Parabéns! Chegue aqui ao ler o novo livro de Haruki Murakami ” Abandonar o gato” página 84, onde o escritor descreve suas idas ao cinema.