A Jovem Rainha / The Girl King

3.0 out of 5.0 stars

Kristina Augusta, única filha legítima do rei Gustav Adolf II, a Rainha Kristina da Suécia, é uma figura absolutamente, loucamente fascinante. É uma daquelas pessoas cujas vidas parecem ter sido a criação de um ou mais roteiristas de excepcional criatividade, provavelmente embalados por algum ácido ou erva de primeiríssima qualidade.

Exatamente por isso, é difícil entender por que o cinema levou 82 anos para fazer um novo filme sobre a vida dela, desde Rainha Cristina/Queen Christina, que o diretor Rouben Mamoulian lançou em 1933, apenas seis anos depois que a arte então bem jovem aprendeu a falar.

Talvez possa explicar a demora o fato de que aquele seja um grande filme – e, sim, é um grande filme. Eu mesmo só vi duas vezes, e faz muito, muito tempo (a primeira foi em 1964, a segunda, em 1987), mas guardo a lembrança de que é um filme importante, de forte impacto. O livro relativamente recente 1001 Filmes Para Ver Antes de Morrer, editado por Steven Jay Schneider, por exemplo, baba por ele: o livro cita o toque glamourizante da câmara de Mamoulian, a cenografia, a montagem e a música bem concebidas – e, é claro, o puro magnetismo da atriz que interpretou Kristina, Greta Garbo, sueca e fascinante assim como a rainha.

Sim, o fato de a rainha ter sido interpretada, em um grande filme, por Greta Garbo, uma das maiores estrelas nestes 120 e tantos anos de cinema, pode também ajudar a explicar por que essa demora em filmar de novo a vida de Kristina.

Produtoras de 5 países, atores das mais diferentes origens

Uniram-se para fazer The Girl King, no Brasil A Jovem Rainha, produtoras da Finlândia, Alemanha, Canadá, Suécia e França. O diretor, Mika Kaurismäki, é finlandês, mas é também mezzo carioca – ama o Brasil, o Rio de Janeiro, passou temporadas na cidade, adora samba, chorinho, fez os documentários Moro no Brasil e Brasileirinho – Grandes Encontros do Choro.

O roteirista Michel Marc Bouchard é canadense de Québec, a região de língua francesa. O elenco tem canadense (Sarah Gadon, que interpretou a jovem princesa Elizabeth, hoje rainha da Grã-Bretanha, em Uma Noite Real / A Royal Night Out), sueco (Michael Nykvist, que fez o jornalista Mikael Blomkvist na trilogia sueca original baseada nos livros de Stieg Larsson), francês (Hippolyte Girardot, de tantos e tantos filmes, como Vocês Ainda Não Viram Nada! / Vous n’avez encore rien vu), alemã (a fantástica Martina Gedeck, de, para citar só um,  A Vida dos Outros). Entre gente de outras nacionalidades.

Nunca havia ouvido falar na atriz que faz a rainha. Chama-se Malin Buska, é sueca, nascida em 1984, tem uma filmografia ainda pequena, de 12 títulos até 2019, uma beleza estranha, um rosto forte, uma presença impressionante na tela.

As filmagens foram na Finlândia e na Alemanha.

Um típico produto da indústria cinematográfica, que sempre foi globalizada, desde muito antes de se falar em economia globalizada, globalização. Mas, sim, também um típico produto do mundo globalizado de hoje. Certamente mirando as bilheterias mundo afora, os produtores optaram por distribuir o filme com os atores que representam os suecos falando não em sueco, mas sim em inglês, essa língua que virou assim um esperanto natural.

O filme anterior era Hollywood pura. Este é perto do real

Ouvir os suecos falando em inglês dá uma sensação estranha no espectador mais atento, mais sensível. Faz décadas que, nos bons filmes, os suecos falam sueco, os alemães falam alemão, os chineses falam mandarim – sejam as produções americanas, franceses, alemãs, suecas ou o que for.

Assim, é interessante: nessa coisa de todos falarem inglês, A Jovem Rainha/The Girl King se aproxima da Hollywood dos anos 30, quando todos falavam inglês – fossem chineses, argentinos, uruguaios, persas, romanos na época de Cristo, russos ou marcianos.

No entanto, a rainha Kristina de Mika Kaurismäki, interpretada por essa estranhamente bela Malin Buska, tem pouquíssimo, pouquíssimo a ver com a rainha Kristina de Rouben Mamoulian feita por Greta Garbo. Porque a Kristina de Garbo vivia uma história inventada por Hollywood, e a Kristina de Malin Buska, tudo indica, é bem próxima da realidade dos fatos.

No filme de 1933, Hollywood inventou, tirou de uma caixinha mágica cheia de pó de pirlimpimpim uma história de amor entre Kristina e um enviado espanhol ao reino da Suécia, um tal Antonio, interpretado por John Gilbert, não por coincidência o então senhor Greta Garbo. Na vida real, jamais existiu nada parecido com essa história – até porque, conforme mostra explicitissimamente o filme de 2015, a rainha Kristina não tinha atração por homens, e sim por mulheres.

(De maneira esperta, inteligente, avançada, o filme de 1933 roçava, ainda que muito de leve, na coisa homo: a rainha Kristina de Garbo, assim como a da vida real, gostava de usar roupas masculinas, e então, quando divide um quarto numa hospedaria do interior com o espanhol Antonio, ele acha que o companheiro de alojamento é um homem. Era o máximo que, na época, era possível fazer referência a homossexualidade – e já era algo avançado. Queen Christina é pré-código: o Código Hays, os princípios de autocensura que os grandes estúdios de Hollywood foram forçados a adotar, entrou em pleno vigor em 1934.)

Um retrato acurado dos primeiros anos do reinado

O roteiro escrito pelo canadense Michel Marc Bouchard para o filme de Mika Kaurismäki realça, destaca, enfatiza o que o filme com Greta Garbo não podia mostrar: a imensa paixão da jovem rainha Kristina por uma das mulheres da corte sueca que escolheu para ser sua dama de companhia, a condessa Ebba Sparre (o papel da canadense Sarah Gadon).

O que o filme mostra é um coup de foudre, uma paixão à primeira vista, um tremor de terra – de início, apenas da parte de Kristina. É tão forte, tão violento, tão avassalador o sentimento que a jovem rainha fica absolutamente perturbada por ele. Dotada de inteligência rara, leitora voraz de filósofos, Kristina pedirá para o francês René Descartes explicar a ela o que é a paixão, como se manifesta, por quê. Descartes (interpretado por Patrick Bauchau) será um personagem importante deste The Girl King.

Depois de algum tempo de hesitação, de dúvidas, Kristina parte para cima da moça – que era noiva de outro nobre, o conde Jakob de la Gardie (Jannis Niewöhner). A condessa Ebba a princípio se espanta com aquilo, tenta escapar – mas não demora a ceder ao charme da rainha.

Sim, de fato o roteiro do filme dá imensa importância à paixão de Kristina por Ebba – mas, paralelamente, mostra muito do que se sabe sobre a monarca sueca em seus primeiros anos no trono. Fui conferir o que relata a douta Encyclopaedia Britannica sobre “Christina, Swedish Kristina, queen of Sweden (1644–54).” E o que o filme de Kaurismäki mostra confere perfeitamente com o que a Britannica relata.

Uma monarca apaixonada pelo saber, ciências, artes

Kristina nasceu em 1626, filha do rei Gustav Adolf II e sua mulher, a nobre alemã Maria Eleonora de Brandenburg (interpretada, no filme, pela grande Martina Gedeck). Quando seu pai morreu, na batalha de Lützen, uma das dezenas da Guerra dos Trinta Anos, que envolveu vários países europeus entre 1616 e 1658, por questões religiosas, de rivalidades de dinastias, territoriais e comerciais, Kristina, a única herdeira do trono, não tinha completado 6 anos de idade. Até que ela atingisse a maioridade, o país foi governado por um colegiado de cinco regentes, dirigido pelo chanceler Axel Oxenstierna (o papel de Michael Nyqvist). Entre os 6 e os 18, a jovem rainha recebeu a melhor educação que poderia haver na Suécia de então, tendo como tutor um respeitadíssimo teólogo, Johannes Matthiae.

Assim, desde garota Kristina desenvolveu grande paixão pela filosofia, pelas artes, pelo conhecimento científico, ao mesmo tempo em que aprendia política na prática: a partir dos 14 anos, com a permissão do chanceler, passou a participar das reuniões do conselho de regentes.

“Altamente culta e apaixonadamente interessada em aprender, ela acordava às cinco horas da manhã para ler, e convidava para sua corte eminentes escritores, músicos e eruditos do exterior”, diz a Britannica. “O filósofo francês René Descartes ensinou filosofia para ela e morreu na sua corte. Por sua inteligência e sabedoria, era chamada em toda a Europa de Minerva do Norte. Ela era, no entanto, extravagante, distribuía terras pertencentes à coroa, e pretendia ter uma corte luxuosa em um país que não tinha como mantê-la. Seu reinado foi, todavia, benéfico: viu o lançamento do primeiro jornal sueco, em 1645, e a primeira ordenação de escolas abrangendo todo um país; a ciência e a literatura foram encorajados, e novos privilégios foram dados às cidades.”

O filme mostra muito bem, e insistentemente, como Kristina era apaixonada pelo saber. Há uma sequência em que ela, logo após assumir plenamente o poder, aos 18 anos de idade, promete transformar a Suécia no país europeu mais dedicado à educação, às artes.

O filme narra a vida de Kristina só até a abdicação

Religião é um dos temas presentes ao longo dos 106 minutos do filme. O reino da Suécia era totalmente dedicado ao protestantismo de Martinho Lutero, e inimigo figadal do catolicismo, dos papas, de tudo relacionado à Igreja com a qual Lutero havia rompido.

Há falas de Kristina contra a Igreja Católica de uma virulência espantosa.

Confesso que demorei bastante para perceber qual era o tom que o diretor Mika Kaurismäki escolheu para seu filme. Certamente porque associo o realizador a um humor violento, sarcástico, iconoclasta – por conta de seus filmes Três Homens e uma Noite Fria (2008) e O Ciúme Mora ao Lado (2009) –, de início achei que este The Girl King tinha um tom cômico, gozador. Só mais para a metade fui percebendo que não, de forma alguma há qualquer tipo de comicidade, gozação. É uma cinebiografia séria de uma monarca importante, marcante – e extraordinariamente extravagante, nada, mas nada como manda o figurino.

No entanto, fiquei com a sensação de que o filme não explica muito bem diversos episódios que retrata – ao menos para quem não conhece a História da Suécia, para quem não é familiarizado com a biografia de Kristina.
Assim, me pareceu que o filme não explica muito bem como e por que aconteceu a aproximação de Kristina com o catolicismo que ela criticava tanto e tão acidamente. E nem a sua decisão de abdicar ao trono em 1654, apenas dez anos após assumir o governo, quando estava só com 28 anos de idade. Bem, mas pelo jeito esses dois fatos – sua conversão ao catolicismo e a abdicação – foram absolutamente surpreendentes, e até hoje historiadores tentam explicá-los, contextualizá-los.

The Girl King mostra a vida de Kristina apenas até aí, 1654. Seguramente daria um belíssimo filme, ou uma série de uns dez episódios,  que viria depois – sua ida para Roma, sua convivência íntima com quatro diferentes papas, sua tentativa de se tornar rainha de Nápoles, sua fama como patrona das artes e defensora vigorosa das liberdades individuais.

Morreu 1989, aos 63 anos, e sua tumba fica na Basílica de São Pedro, no Vaticano. É uma das pouquíssimos mulheres a quem a Igreja Católica Apostólica Romana rendeu essa homenagem.

O título original expressa essa coisa masculina da rainha

É preciso registrar o detalhe: Kristina é a grafia sueca. Christina é a grafia inglesa, presente tanto na Encyclopaedia Britannica quanto no título do filme de 1933, Queen Christina.

Lá pela metade do filme há uma longa e interessante sequência em que o chanceler Oxenstierna apresenta para Kristina uma dúzia de belíssimos vestidos trazidos pelo conde Johan, o filho do chanceler que pretendia ser o escolhido pela rainha para ser seu marido. Kristina adora especialmente um deles, de um azul belíssimo – mas não para usá-lo, e sim para ver a amada Ebba dentro dele.

O título original desta co-produção Finlândia-Alemanha-Canadá-Suécia-França, The Girl King, tem uma riqueza fascinante, que, obviamente, não está presente no título escolhido pelos exibidores brasileiros, A Jovem Rainha. Os franceses foram mais fiéis à idéia original, com La Reine Garçon, a rainha moço.

The Girl King, a garota rei, evidencia aquela coisa masculina de Kristina, que sempre se vestia e se portava como homem, e enfrentava os altos membros da Corte, os ministros, os religiosos, de igual para igual – de homem para homem.

Era assim que era possível fazer em 1600 e bordoada.

Anotação em setembro de 2019

A Jovem Rainha/The Girl King

De Mika Kaurismäki, Finlândia-Alemanha-Canadá-Suécia-França, 2015

Com Malin Buska (rainha Kristina)

e Sarah Gadon (condessa Ebba Sparre), Michael Nyqvist (chanceler Axel Oxenstierna), Lucas Bryant (conde Johan Oxenstierna, filho do chanceler), Laura Birn (condessa Erika Erksein), Hippolyte Girardot (embaixador Pierre Hector Chanut), Peter Lohmeyer (o bispo de Estocolmo), François Arnaud (Karl Gustav Kasimir), Patrick Bauchau (René Descartes), Ville Virtanen (doutor Van Wullen), Martina Gedeck (Maria Eleonora de Brandenburgo, a rainha mãe), Timo Torikka (frade Viogué), Lotus Tinat (rainha Kristina criança), Jannis Niewöhner (conde Jakob de la Gardie, o noivo de Ebba), Mikko Leppilampi (conde Magnus de la Gardie)

Roteiro Michel Marc Bouchard

Fotografia Guy Dufaux

Música Anssi Tikanmäki

Montagem Hans Funck

Produção Marianna Films, Triptych Media, Starhaus Filmproduktion, Galafilm Productions, Anagram.

Cor, 106 min (1h46)

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