Wanted – A Primeira Temporada

3.0 out of 5.0 stars

Se fosse para simplificar, daria para definir Wanted como assim uma espécie de Thelma e Louise australiano – só que as duas mulheres que viajam de carro por diversos lugares do país-continente estão fugindo ao mesmo tempo da polícia e dos bandidos, inclusive um matador de aluguel com fama de incapaz de errar.

E, se fosse para generalizar a partir de apenas dois exemplos, daria para garantir que os australianos adoram fazer séries de TV que começam com mulher presa dentro de porta-malas de carro.

Secret City: Under the Eagle (2019) começa com uma jovem mulher presa dentro do porta-malas de um carro que viaja à noite em uma estrada deserta. A mulher grita, esperneia, bate as mãos com força na lataria – até o que o motorista pára o cara o abre a porta. No momento em que abre a porta, leva uma violenta porrada do macaco do carro bem no rosto – e a mulher consegue fugir.

Secret City (2016) e sua segunda temporada, esse Secret City: Under the Eagle, formam uma série de TV densa, pesada, séria, sobre jornalismo, política, relações internacionais. A primeira temporada deste Wanted, de 2016, é pesada, violenta, muito violenta – mas, ao contrário da outra, não é especialmente séria, sisuda.

Não que seja engraçada, cômica, hilariante. Não é isso, de forma alguma. Mas há muitos momentos de um suave bom humor. As duas protagonistas da história, Lola e Chelsea, sofrem pra cacete, comem o pão que o diabo amassou. Estão o tempo todo sendo perseguidas por policiais honestos e policiais corruptos – estes últimos a trabalho de perigosa e poderosa quadrilha de traficantes de droga. Mas o tom que os realizadores imprimem à série é quase de aventura, muito mais do que de um drama apavorante.

Mesmo sendo o passado da vida de Lola um drama apavorante.

Duas mulheres presas no porta-malas

Começa com a câmara mostrando o chão de uma estrada, à noite – vão ficando para trás aquelas faixas brancas interrompidas que separam uma faixa de trânsito na outra, enquanto vemos os nomes das empresas produtoras, Screen Australia, The Seven Network, Screen Queensland, Matchbox, R & R Productions.

A tela fica toda negra, o espectador não vê nada, apenas ouve um diálogo entre duas vozes femininas:

– “Quem está aí?”

– “Sou eu.”

– “O quê? Onde estamos?”

– “No porta-malas de um carro.”

– “Sim, isso eu sei. Meu Deus! Quanto tempo eu desmaiei?”

– “Sete minutos.”

Surge uma pequena luz, vemos rapidissimamente um rosto de mulher. Uma delas encontrou um interruptor.

Uma das mulheres pergunta como a outra se chama, e a outra responde que é Chelsea. – “Chelsea. É um nome bonito”, diz a outra.

Chelsea, que era a que fazia as primeiras perguntas, diz: – “O que você está fazendo? Não faça nada. Eu não quero morrer.”

E a outra, a que respondia às perguntas de Chelsea, diz: – “Se nós não fizermos nada, estamos mortas, tá?”

O carro pára. As duas mulheres sentem que o carro parou. Chelsea: – “Nós vamos morrer?”

E aí então surge a palavra, em letras gigantescas: “Wanted”. Procuradas.

E vem um flashback – não um flashback para muito tempo atrás, não. Apenas para, em rápidas pinceladas, pequenas sequências com montagem ágil, mostrar quem são aquelas duas mulheres. Logo em seguida, assim que soubermos um pouquinho sobre elas, veremos como foi que elas foram parar no porta-malas do carro.

Lola é uma mulher poderosa; Chelsea parece frágil

São duas belas sacadas, reunidas, neste início do primeiro episódio de Wanted, para dar início à história. A primeira é a construção das duas personagens, Chelsea e Lola, e o fato de juntá-las, reuni-las todas as noites em um ponto de ônibus num lugar um tanto deserto de Sidney, a maior das duas metrópoles australianas (a outra, Melbourne, não aparece na série, ou ao menos nesta primeira temporada).

A segunda grande sacada é exatamente a criação do acontecimento, do evento que acontece naquele ponto de ônibus, bem no começo do primeiro episódio, e faz com que Lola e Chelsea sejam aprisionadas no porta-malas de um carro – o que dá início a toda a trama.

Não poderia haver duas mulheres mais diferentes, distantes, díspares, quanto Lola e Chelsea – mas, bem, isso seria mesmo de se esperar. Dois protagonistas de uma história de 6 episódios de 45/50 minutos cada teriam mesmo que ser personalidades diferentes. Se fossem almas gêmeas, tivessem os mesmos gostos, não teria graça, nem drama. A maravilha foi como os criadores da série conseguiram construir duas mulheres díspares tão bem feitas, tão bem estruturadas. Lola e Chelsea são mulheres de carne, osso, sonhos, inseguranças – são seres humanos, tridimensionais, como os críticos costumam dizer. Não são tipos de personalidade rala, próximos de protótipos. Muito ao contrário.

Lola é o papel de Rebecca Gibney, a loura das fotos – que é também uma das criadoras da série, ao lado do marido, seu segundo marido de papel passado, Richard Bell. Rebecca, e portanto também Lola, estava com 52 anos em 2016, quando a primeira das três temporadas de Wanted foi lançada. Lola, assim como Rebecca, manda no pedaço, é descolada, toma as iniciativas, quase todas.

Chelsea é o papel de Geraldine Hakewill, a de cabelos pretos das fotos, 23 anos mais jovem que Lola-Rebecca – e Geraldine é muito magrinha, dá a Chelsea uma sensação de imensa fragilidade.

Lola tem passado trágico, é uma batalhadora

De cara, vemos que Lola trabalha como caixa em um supermercado – e é uma mulher de personalidade forte, que não leva o menor desaforo para casa. É um tipo de natureza rebelde, inquieta. É uma mulher vivida, experiente – e com um passado cheio de tragédias.

No desenrolar desta primeira temporada, veremos que Lola adotou esse nome e toda uma nova identidade bastante tempo atrás, em 1994. Chamava-se na verdade Lilian Walsh, e vinha de uma família bem pobre do Norte do Estado de Queensland; a mãe havia criado Lilian e sua irmã mais velha, Donna (Robyn Malcolm) praticamente sozinha; o pai, Jim Walsh (Ian Mune), um bandido, ladrão, pouco aparecia em casa.

Lilian se casou muito nova, com um tal Jackson Delaney (Steven Rooke), que se revelou um sujeito monstruoso, que espancava constantemente a mulher.

Lola tem um filho aí de 21 anos, David (Charles Cottier), e se preocupa muito com ele. Jamais contou a David qualquer coisa sobre o pai, o espancador, de quem ela conseguiu ficar livre ainda durante a gravidez. (Relatar mais sobre isso seria spoiler – o espectador só fica sabendo sobre a história da jovem Lilian com o espancador Jackson no quarto dos seis episódios da primeira temporada.)

Lola, em suma, é uma mulher classe média média, working class, batalhadora, enérgica, forte, de passado trágico.

Chelsea é filha de pai riquíssimo – e carente

Com algumas poucas pinceladas, bem no início do primeiro episódio, vemos que Chelsea é uma moça organizadíssima, na verdade organizada demais. É daquele tipo que parece sofrer de TOC, transtorno compulsivo obsessivo.

É filha de um pai riquíssimo, um desses magos de finanças, que na época da ação está vivendo em Xangai. Teve uma vida, além de bem mais curta, bastante mais confortável, tranquila, pacífica, sossegada que Lola.

Se sempre teve e tem todo o conforto material básico e até bem mais que isso, Chelsea, no entanto, não é propriamente uma pessoa feliz, resolvida. Os pais sempre foram distantes. Tem visível carência de afeto. No quarto episódio da série, ela observa atentamente o abraço que Lola dá na irmã mais velha, Donna, e depois comenta, com um ar tristonho, carente: – “Nunca recebi um abraço assim…”

Chelsea tem um namoro que não é lá essas coisas – muitos antes ao contrário. O namorado (não guardei o nome do personagem) é um sujeito bobo, babaca, alucinado por quadrinhos e games de computador, que dá pouquíssima atenção à moça bonita que vive com ele.

Não se mostra exatamente como é a relação entre o pai milionário distante e a garota que está agora com 29 anos, mas o fato é que ele não é generoso demais com a filha. Ela vive num apartamento bom, confortável, agradável, mas não mais que isso. E não passa a vida flanando, gastando pequena parte da grande fortuna do pai. Trabalha, trabalha como qualquer mortal, como contadora, numa grande empresa da área de finanças, se não estou enganado. Todo santo dia, quer dizer, todo santo começo de noite, sai do trabalho e espera ônibus para ir para casa – exatamente no mesmo ponto em que Lola também espera seu ônibus, depois de um trabalho bem mais duro, cansativo, e chato, que o de Chelsea.

De repente, tudo muda na vida das duas

Os papéis de Lola e Chelsea parecem de fato criados para aquelas duas atrizes, Rebecca Gibney e Geraldine Hakewill. Sabendo que Rebecca é uma das criadoras da série, então, isso fica muito evidente. Lola-Rebecca Gibney é forte – não grande, não gorda, mas forte; loura, cabelos que batem no início das costas, sempre soltos, um tanto revoltos, despenteados; usa jeans, provavelmente velhos. Chelsea-Geraldine Hakewill é, como já foi dito, bem magrinha, aparência frágil, cabelos cuidadosamente presos, nem um fio solto, rebelde. Usa tailleurs, blusas finas.

Todo santo começo de noite ficam ali as duas mulheres, a working class madura, de vida difícil, e a classe média alta chegando aos 30 – e não se falam. Nenhuma das duas se interessa em tentar puxar conversa com a outra. Ficam ali, as duas, cada uma trancada em seu próprio mundo.

Até o início de noite em que tudo acontece.

Estamos com 7 minutos do primeiro episódio da série. Lola e Chelsea estão no ponto de ônibus – só as duas. Um carro se aproxima, quase avança para o passeio. Lola corre para ver o que há com o motorista – ele está ferido. Lola o ajuda a sair do carro, ele mal se aguenta em pé. Ela grita para Chelsea: – “Ei, Mary Poppins! Pode me ajudar?”

Mary Poppins! Chelsea, toda perfeitamente bem vestida, carregava uma sobrinha, como Mary Poppins!

Chega um outro carro – aquela rua não é muito movimentada, muito ao contrário. Mary Poppins, digo, Chelsea grita para que o carro as socorram – o homem do outro carro caiu no chão.

Do carro que chega desce um sujeito com o rosto coberto por uma máscara. O sujeito se aproxima daquele homem caído no chão – e dá dois tiros nele, à queima-roupa. E em seguida aponta o revólver para Chelsea. Lola corre até ele, joga o assassino no chão, ficam lutando dois – até que o revólver dispara, e o assassino é morto.

Um segundo bandido sai então do carro do assassino – e, ao contrário do colega que acaba de morrer, não usa máscara, exibe o rosto para aquelas duas mulheres que testemunharam tudo.

Esse segundo bandido é visivelmente, claramente menos profissional, menos preparado do que o colega morto. Não sabe o que fazer com aquelas duas testemunhas. Se fosse um profissional da bandidagem frio, seguro, firme, mataria logo as duas e cascaria fora dali o mais rapidamente possível. Mas ele não é frio, seguro, firme – é um bandido ainda não tão bandido assim.

Não sabendo o que fazer com as mulheres, mas sabendo que precisaria sair dali imediatamente, manda as duas entrarem no porta-malas do carro em que ele e o colega assassino e agora morto haviam chegado.

Pequenos detalhes bem elaborados

Esse primeiro episódio é todo em altíssima voltagem. Há fatos novos a cada momento – novos e absolutamente surpreendentes.

Os dois homens que chegaram no segundo carro, o que matou o homem já ferido que vinha no primeiro e acabou sendo morto durante uma luta com Lola, e o segundo, que sequestrou Lola e Chelsea e não sabe o que fazer com elas, são policiais da cidade de Sidney. São policiais corruptos. Trabalham para um dos chefes da polícia de Sidney, Ray Stanton (Nicholas Bell), que por sua vez opera com um dos maiores traficantes de drogas da metrópole australiana, Anton Maric (Alex Dimitriades), contra um outro grande mafioso que disputa com Anton Maric a primazia do tráfico na região.

Ainda no primeiro episódio, o policial corrupto que sequestrou Lola e Chelsea faz uma besteira tal que permite que as duas mulheres consigam fugir com o carrão preto em que estiveram presas.

Dentro do carrão, no porta-malas em que as duas mulheres estiveram trancafiadas, há uma grande sacola com uma imensa fortuna em notas de dólares australianos. (Sim, a moeda da Austrália se chama dólar australiano, assim como a moeda do Canadá se chama dólar canadense.) Não será ainda no primeiro episódio, mas, lá adiante, creio que no quarto ou quinto episódio, Lola descobrirá que, além da fortuna em dinheiro vivo, o carrão preto em que ela e Chelsea foram presas e sequestradas tinha também uma gigantesca fortuna em pacotes de droga.

Ao tomar posse do carro, e iniciar uma fuga que as levará por diversos lugares da Austrália, numa viagem, pelo que pude perceber, de Sul a Norte, atravessando os Estados de New South Wales e Queensland, algo mais ou menos como de São Paulo até Maceió, Lola e Chelsea farão uma primeira parada na casa de campo do pai da mais jovem.

Acontece ainda no primeiro episódio, e a sequência em que as duas chegam à casa do pai milionário de Chelsea é a prova de que esta é uma bela série.

Sim, é uma série policial, tem muita ação, movimentação, tiros, episódios de violência, perseguição, suspense, e tem até bom humor – mas é, ao mesmo tempo, bom cinema. Cinema sério, de valor.

À medida em que o carro vai se aproximando da casa de campo do pai de Chelsea, Lola vai ficando visivelmente chocada com o tamanho, o esplendor, o luxo, a riqueza, a riqueza até excessiva.

O espectador mais atento vai percebendo claramente o espanto, o assombro daquela mulher que veio de família pobre e jamais teve nada mais que o básico na vida diante de tanta riqueza.

O bom cinema – sei disso há muito tempo, e vou ficando cada vez mais certo disso à medida que o tempo passa – é feito de pequenos detalhes, observações argutas sobre o comportamento humano.

Naquela frase de Chelsea ao se espantar com o abraço caloroso, afetuoso, forte, firme, de Lola e sua irmã Donna, e nessa extraordinária sequência em que Lola se espanta com a riqueza em demasia da família de Chelsea, Wanted demonstra que é bom cinema.

Sim, é uma série de televisão, mas e daí? Faz tempo, também, que estou convencido de que muito do melhor cinema das últimas décadas se faz para a TV.

O final da primeira temporada convida a ver a segunda

A primeira temporada de Wanted foi ao ar na TV australiana a partir de fevereiro de 2016 – o primeiro episódio foi visto por mais de 1,1 milhão de pessoas, segundo fonte usada pela Wikipedia.

Os criadores não tiveram dúvida alguma de que a primeira temporada daria certo, faria sucesso. Wanted tem aquele tipo de primeira temporada que não conclui a história, não fecha o livro. Ao contrário: conclui um grande capítulo, um grande caso – mas, no final, já escancara que haverá uma segunda temporada. A última sequência traz uma informação inesperada, surpreendente, daqueles de deixar o espectador ansioso para ver o que virá.

A segunda temporada – igualmente com seis episódios de entre 45 e 50 minutos – foi lançada em junho de 2017, e a terceira, com o mesmo esquema de seis episódios, saiu em outubro de 2018. As três estão disponíveis na Netflix.

Anotação em abril de 2019

Wanted – A Primeira Temporada

De Richard Bell e Rebecca Gibney, criadores, produtores-executivos, Austrália, 2016

Diretores: Peter Templeman, Jennifer Leacey

Com Rebecca Gibney (Lola Buckley), Geraldine Hakewill (Chelsea Babbage)

e Stephen Peacocke (detetive Josh Levine), Nicholas Bell (Ray Stanton, chefe de polícia), Mirko Grillini (Terry Boke, o assassino de aluguel), Veronica Neave (Karen Stanton, a mulher de Ray), Robyn Malcolm (Donna Walsh, a irmã de Lola), Ian Mune (Jim Walsh, o pai de Lola e Donna), Charles Cottier (David Buckley, o filho de Lola), Ian Bliss (Luke Delaney, o cunhado de Lola), Steven Rooke (Jackson Delaney, o marido de Lola), Catherine Wilkin (Beverley Delaney, a mãe de Luke e Jackson), Edmund Lembke-Hogan (policial McKenzie), Alex Dimitriades (Anton Maric, o traficante), Ryan Corr (Chris Murphett), Todd Levi (Ebert), Nicholas Hamilton (Jamie)

Roteiro Richard Bell e Rebecca Gibney, criadores, John Ridley, Timothy Hobart, Kirsty Fisher

Fotografia John Stokes

Música Michaeç Yezerski

Montagem Andrew Macneil, James Manché

Casting Gregory Apps

Produção Screen Australia, Seven Network, Screen Queensland, Matchbox Pictures, R & R Productions.

Cor, cerca de 270 min (4h30)

***

4 Comentários para “Wanted – A Primeira Temporada”

  1. Há algum tempo eu recomendei esta série ao Sérgio, a propósito do título original “Wanted”, que é o mesmo de um filme miserável com Angelina Jolie.
    O Sérgio resolveu ver a série e gostou. Fico satisfeito.
    Se vir as outras temporadas penso que vai continuar a gostar.

  2. Olá, caríssimo José Luís!
    Agradeço imensamente pela indicação da série!
    Valeu, e muito!
    Um grande abraço!
    Sérgio

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