Na primeira temporada, de 2016, Secret City, além de ser um ótimo entretenimento, uma série inteligente, bem realizada em todos os quesitos, defende uma tese séria: a de que a Austrália – o país em que ela foi feita, em que se passa a ação – não deveria ter alinhamento automático com os Estados Unidos.
A segunda temporada, Secret City: Under the Eagle, de 2019, mantém todas as muitas qualidades da primeira. E, como a primeira, apresenta teses. Volta a defender que a Austrália tenha sua própria política externa, não se subordinando automaticamente aos interesses americanos. E vai além: demonstra que as grandes corporações que atuam na área de segurança e têm como clientes o sistema de defesa dos países são uma ameaça aos governos e à própria democracia.
De maneira fascinante, usa como um forte argumento para reforçar sua tese o discurso com que o general Dwight D. Eisenhower se despediu da Presidência dos Estados Unidos, em 1961.
O fictício primeiro-ministro da Austrália, Ewan Garrity (o papel de Don Hany) vê o discurso de Ike no seu computador – e assim o espectador vê junto com ele.
É um brilho de discurso. Tornado absolutamente atual neste brilho de série.
De cara, duas sequências de grande impacto
Exatamente como a primeira temporada, esta segunda, lançada em 2019 no mundo inteiro pela Netflix, tem uma trama extremamente complexa, intrincada, labiríntica. São múltiplos personagens, diversos ambientes em que a ação se passa. A personagem central, que serve um tanto como fio condutor de tudo, continua sendo a jornalista Harriet Dunkley – o papel da atriz Anna Torv (na foto acima), 20 títulos no currículo, a maior parte séries de TV.
O primeiro episódio começa – exatamente como o da primeira temporada – não com uma, mas com duas sequências de grande impacto.
Vemos tomadas aéreas de uma cidade à noite; um letreiro informa que é Davoren Park, em Adelaide – a quinta maior cidade da Austrália. Um rapaz aí de uns 15, 17 anos, joga no computador em seu quarto. A mãe o chama, ele sai do quarto, passa pela irmã, também adolescente, que está estudando em uma mesa da sala. A mãe está fazendo sanduíches na cozinha. O rapaz, Robbie Lambert (Frederick Du Rietz), toma um gole de leite, volta para seu quarto. A câmara mostra o pai da família sentado no sofá, diante da TV, ao lado do mais novo dos três filhos, um garoto aí de uns 10 anos.
Robbie sai de casa, caminha no passeio – dá para ver que é um bom bairro residencial, só de casas. O rapaz está com fones de ouvido, olhando para a tela do celular.
De repente, do nada, a casa dele explode.
A explosão é tão forte que Robbie é lançado para frente e derrubado no chão pelo deslocamento de ar.
Em um pedacinho de segundo, perde o pai, a mãe, os dois irmãos, a casa, tudo que tinha na vida.
Corta, e vemos um carro numa estrada pouco movimentada, à noite. Uma jovem mulher, o rosto apavorado, de quem não está sofrendo muito, diz que não consegue respirar – e começa a bater na lataria em torno dela e a gritar que precisa sair dali. Vemos então que ela está presa no porta-malas.
Ela berra e bate na lataria com força, com muita força.
O carro pára. Um homem abre o porta-malas – e a moça enfia o extintor de incêndio na cara dele. E começa a correr.
Corta, e começam a rolar os créditos iniciais, idênticos aos da primeira temporada: uma série de tomadas aéreas estonteantes de Canberra, a capital da Austrália, enquanto vão surgindo os nomes dos atores. Se o espectador for muito atento, notará que não aparecem nomes de atores que tiveram papéis importantes na primeira temporada, e surgem novos nomes, de atores que só irão aparecer agora, na segunda.
Surge o título: Secret City: Under the Eagle.
O título desta segunda temporada não poderia ser mais claro, mais óbvio – bem, para os australianos, sobretudo.
Sob a Águia. Um dos monumentos na área central de Canberra que aparece em várias tomadas ao longo da série é uma altíssima coluna de concreto, em cima do qual há uma águia estilizada. O monumento se chama Australian-American Memorial, e foi inaugurado em 1954, para celebrar a aliança entre os dois países durante a Segunda Guerra Mundial.
Um atentado será cometido junto do monumento da águia, no meio desta temporada.
No primeiro episódio, carradas de informações
Assim que terminam os créditos, vemos Harriet Dunkley-Anna Torv dançando em uma discoteca; o som é aquele xacadum de sempre, as luzes são as estroboscópicas de sempre. Está com uma moça morena, linda – veremos que se chama Mina Almasi (Louisa Mignone), e tinha sido, durante dois anos, colega de cela de Harriet num presídio federal.
No último episódio da primeira temporada, Harriet havia sido presa por ter publicado uma reportagem que foi considerada um atentado à segurança nacional, de acordo com uma legislação severíssima aprovada pelo Parlamento. A lei tinha sido defendida na época pela então ministra da Justiça, Catriona Bailey (Jacki Weaver).
Depois de cumprir a sentença de dois anos de prisão, a jornalista acabava de ser libertada – exatamente na mesma época que Mina. Comemoravam a liberdade no xacadum da boate. E dali saíram para se sentar entre as duas vias da gigantesca ponte sobre o lago Burley Griffin – a ponte da Commonwealth, que já havia sido mostrada tantas vezes na primeira temporada.
Harriet diz que vai sair de Canberra. – “Não tem mais nada aqui para mim. Quem vai contratar uma ex-presidiária?”
A sequência com Harriet e Mina é rápida, assim como as anteriores. Corta, e surge uma nova personagem, uma mulher que está na cama com seu bebezinho. Toca o telefone, é a mãe da mulher, querendo saber se ela ouviu a notícia da casa que explodiu em Davoren Park – a casa de Peter Lambert, conhecido pela mãe e pela filha, que são exatamente daquela regão de Adelaide.
Veremos depois que essa mulher que recebe a notícia da explosão pela mãe se chama Karen Koutoufides, uma deputada bastante combativa, trabalhadora, batalhadora (o papel de Danielle Cormack, mulher muito interessante, à direita na foto acima), .
Corta de novo, e outra mulher está sendo acordada por telefonema no meio da madrugada. É Catriona Bailey, que, dois anos antes, como foi mostrado na primeira temporada, era ministra da Justiça, e foi a patrocinadora do pacote de leis draconianas, rígidas, duras, em nome de se proteger a segurança nacional. Veremos que agora ela é ministra do Interior – cargo de quem, na Austrália, assim como no Reino Unido, comanda as forças de segurança internas.
A ministra se senta na cama, liga um laptop, entra num navegador e fala com alguém – em mandarim!
Corta, plano geral de Canberra ao amanhecer. Em alguma emissora de TV, um jornalista fala em “indícios de explosão devido a vazamento de gás”.
Em um dos prédios governamentais, Catriona Bailey dá instruções a um assessor, o jornalista Andrew Griffiths (Marcus Graham, que na primeira temporada era repórter do jornal The Nation Daily, assim como Harriet Dunkley): – “Diga a Lavelle que ele vai ter que esperar as informações da segurança”.
E em seguida ela entra numa reunião com o primeiro-ministro Ewan Garrity e outros membros do gabinete; o primeiro assunto, naturalmente, é a explosão da noite anterior que havia matado quatro pessoas da família Lambert em Adelaide. Falam sobre a questão de vazamento de gás – as autoridades já sabiam da necessidade de renovar a tubulação de gás, mas não houve entendimento entre o governo local e o federal sobre quem pagaria a obra. O primeiro-ministro diz: – “Agora vamos ter que enfrentar KK.” KK – Karen Koutoufides, a deputada combativa demais.
Logo em seguida a reunião ministerial aborda outro tema: a situação no Paquistão. Mas aí corta a cena, e o espectador só fica sabendo, até então, que há no Paquistão um problema sério para o governo da Austrália.
Diversas peças de um xadrez bastante complexo
Estamos aí com apenas 8 minutos dos 50 que dura cada um dos seis episódios de Secret City: Under the Eagle.
Muitos personagens mostrados em sequências rápidas. Três personagens que não estavam na primeira temporada: a moça que estava presa no porta-malas do carro e foge. Mina Almasi, a moça que dividiu a cela de prisão com Harriet. A deputada Karen Koutoufides. Um novo primeiro-ministro. Uma explosão que destrói completamente uma casa e mata quatro pessoas de uma família em um bairro de Adelaide. Mais uma referência a outro personagem novo, um tal Lavelle, que a ministra Bailey iria receber.
Informação demais, num espaço de tempo muito curto. Exatamente como no início da primeira temporada.
Caminhões de informações serão ainda despejados sobre a cabeça do espectador. Assim como na primeira temporada, o primeiro episódio serve para os realizadores espalharem diversas peças de um xadrez complexo demais no tabuleiro.
A questão que atormenta o governo e envolve o Paquistão é que um grupo terrorista capturou um comando de militares australianos que atuava ali junto com forças americanas. A opinião pública pressiona o governo para que promova uma ação militar para resgatar os australianos – mas o primeiro-ministro Garrity faz todo o possível para evitar um ataque que poderia levar a uma guerra com o Paquistao.
A deputada Karen vai chamar Harriet para trabalhar como sua assessora. E vai se envolver com o lobista de uma empresa de energia, um tal Alex Berezin (Tom Wren). No começo vai tudo bem: solteira, sem impedimento algum, Karen dará boas trepadas – mas depois vai descobrir, assim como o espectador, que entrou numa fria, numa geladíssima.
Revela-se que a casa foi atingida por um míssil
Vai ser revelada uma histórica terrivelmente trágica envolvendo Mina Almasi no passado: em 2003, toda sua família foi morta no Líbano num ataque praticado por forças australianas; eram civis, inocentes, não tinham ligação alguma com grupo terrorista; assim, o grupo que cometeu o ataque plantou armas na casa, na tentativa de justificar os assassinatos. Mina se mudaria então para a Austrália, jurando que se vingaria dos responsáveis pela execução de sua família.
Pouco depois que ela é libertada após cumprir sua pena, Mina recebe no laptop uma mensagem de alguém que se assina como Coelho. A mensagem retransmite um documento secreto do governo australiano, com vários trechos censurados com tarjas negras, que indica que a ordem para plantar as armas na casa dela, para tentar esconder o fato de que a família não tinha qualquer ligação com terrorismo, lá atrás, em 2003, havia sido assinada por Catriona Bailey.
E, pouco a pouco, o espectador ficará conhecendo a moça que estava presa no carro e conseguiu fugir. Chama-se Caroline Treloar (o papel de Laura Gordon, muito boa atriz, na foto abaixo), é oficial da Força Aérea da Austrália, e trabalhava como piloto de drones, num amplo programa secreto que estava sendo conduzido por uma corporação internacional da área de segurança, Trebuchet. O presidente dessa corporação é Michael Lavelle (Michael Denkha), com quem a ministra Bailey tinha um encontro no dia seguinte ao da explosão em Davoren Park.
Um tanto por acaso, Harriet descobrirá um vídeo feito por um adolescente, vizinho dos Lambert, do momento exato da explosão da casa da família em Davoren Park – e o vídeo mostra que a casa foi atingida por um míssil.
Poderio militar, sim – mas para garantir a paz
É lá pelo meio desta segunda temporada que acontece a sequência em que o primeiro-ministro Ewan Garrity ouve o discurso com que Eisenhower se despediu do povo americano, ao final de seu segundo mandato.
Garrity é mostrado como um bom homem, um político honesto, sensato, ponderado. Há todo um conjunto de forças que empurram o governo para realizar ações militares contra o Paquistão – existe a pressão da opinião pública, e também a pressão do ministro da Defesa, de alguns chefes militares.
E então ele encontra na internet um vídeo que mostra Ike – o homem que foi o comandante supremo das Forças Armadas na Europa nos meses finais da Segunda Guerra Mundial – lendo o seu discurso de despedida, no dia 17 de janeiro de 1961, três dias antes de passar o cargo para o jovem John F. Kennedy. É um discurso de quatro laudas; naturalmente, o espectador vê apenas um trecho – o trecho que fala do “complexo industrial-militar”.
Jamais tinha ouvido falar desse discurso – e vejo agora que ele tem grandes pérolas. Este trecho aqui, por exemplo:
“Dez anos se passaram após a metade de um século que testemunhou quatro grandes guerras entre nações. Três delas envolveram nosso país. Apesar desses holocaustos, a América é hoje a nação mais forte, mais influente e mais produtiva do mundo. Compreensivelmente orgulhosos desse proeminência, nós entendemos que a liderança e prestígio da América depende não meramente de nosso inigualável progresso material, riqueza ou força militar, mas de como nós usamos nosso poder no interesse da paz mundial e do aprimoramento do homem.”
Uau! Eu de fato não tinha idéia dessa grandeza do Ike.
Ele em seguida fala do inimigo da vez, o comunismo, e defende que os Estados Unidos tenham forte, inigualável poderio bélico: “Um elemento vital para manter a paz é nosso poder militar. Nossas armas têm que ser poderosas, prontas para a ação imediata, de tal forma que nenhum agressor potencial seja tentado a arriscar sua própria destruição.”
Mas – e aí é que entra o trecho que a série mostra para o espectador – é preciso tomar muito cuidado:
“Nos conselhos do governo, devemos nos guardar contra a aquisição de injustificada influência, tenha ela sido procurada ou não, do complexo industrial-militar. O potencial para o crescimento desastroso de poder inapropriado existe e irá persistir. Não devemos jamais deixar o peso dessa combinação ameaçar nossas liberdades e processos democráticos. Não podemos tomar nada como garantido. Apenas uma cidadania alerta e bem informada pode obter o equilíbrio certo do imenso mecanismo industrial e militar de defesa com nossos métodos e objetivos pacíficos, de tal forma que a segurança e a liberdade possam prosperar juntas.”
A garantia de segurança não pode acabar com a liberdade
Segurança que tolhe os direitos individuais – isso não adianta. Se se perde a liberdade para garantir a segurança, a democracia deixa de ser democracia.
Interessante: essa questão tão importante está presente em outra série recente, a inglesa Segurança em Jogo/Bodyguard. Lá também uma ministra linha-dura consegue a aprovação de leis rígidas demais, draconianas, em nome da garantia da “segurança nacional” – e com isso são tolhidos os direitos individuais.
Exatamente a mesma questão é colocada e discutida na quinta temporada da ótima série Homeland.
Aí é que está: temas importantes, duros, sérios, têm sido apresentados e discutidos em séries de TV que são também agradáveis de se ver, que prendem a atenção, divertem.
Faz anos que digo isto, e repito sempre: muito do que de melhor se faz no cinema, nas últimas décadas, se faz para a televisão.
É besteira, perda de tempo, ficar contra o cinema que é criado para exibição na TV.
Quase no finalzinho do sexto e último episódio de Secret City: Under the Eagle, uma personagem – a pilota Caroline – diz uma frase que o francês Robert Guédiguian, o cineasta dos filmes contra a vingança, assinaria com o maior prazer: – “Se continuarmos com o olho por olho, em breve toda a humanidade estará cega”.
Anotação em março de 2019
Secret City: Under the Eagle
De Matt Cameron e Balinda Chayko, criadores, Austrália, 2019
Direção Daniel Netthelm, Tony Krawitz
Com Anna Torv (Harriet Dunkley)
e Danielle Cormack (Karen Koutoufides, a deputada), Laura Gordon (Caroline Treloar, a piloto do drone), Don Hany (primeiro-ministro Ewan Garrity), Louisa Mignone (Mina Almasi), Robert Rabiah (Sami Almasi), Andrew McFarlane (general Lockwood), Jacki Weaver (Catriona Bailey, agora ministra do Interior), Marcus Graham (Andrew Griffiths, agora assessor do Ministério do Interior), Sacha Horler (Ludie Sypek, agora jornalista da TV), Justin Smith (William Vaughn, diretor do ASD), Aleks Mikic (Thomas, funcionário do ASD), Matt Zeremes (Sean Brimmer, policial), Michael Denkha (Michael Lavelle, presidente da corporação Trebuchet), Frederick Du Rietz (Robbie Lambert, o sobrevivente da explosão em Davoren Park), Benedict Hardie (Declan Boyd, o assessor de Karen Koutoufides), Christopher Kirby (Kip Buchanan, embaixador dos Estados Unidos), Dalip Sondhi (Yasir Younis, embaixador do Paquistão), Renee Lim (Helen Wu), Joel Tobeck (Jim Hellier), Tom Wren (Alex Berezin, lobista da empresa Vanguard Energy), Anni Finsterer (contra-almirante Hartzig), Brenna Harding (Cassie),
Roteiro Matt Cameron, Belinda Chayko, Elise McCredie, Greg Walters
Baseado nos romances The Marmalade Files e The Mandarin Code, de Steve Lewis e Chris Uhlmann
Fotografia Mark Wareham
Música David Bridie
Montagem Nicole La Macchia, Martin Connor
Na Netflix. Produção Matchbox Pictures, Screen Australia, Foxtel Productions, Netflix, The Act Government, ScreenAct, Screen NSW, Werner Film Productions.
Cor, cerca de 300 min (5h)
***1/2
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