Em 1958 – 182 anos depois de a Constituição dos Estados Unidos da América declarar que “todos os homens são criados iguais, que são dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis, que entre estes são vida, liberdade e busca da felicidade” –, policiais de um condado da Virgínia prenderam Richard e Mildred Loving pelo crime de terem se casado.
1958 – 13 anos depois da vitória na guerra contra o regime racista de Adolf Hitler, em que foram mortos centenas de milhares de americanos, ingleses, canadenses, franceses, russos. Um ano depois de o homem ter posto em órbita da Terra um satélite artificial.
Qualquer filme que contasse essa história real absurda, chocante, apavorante seria importante. Exatamente por ser tão absurda, e por ter acontecido há tão pouco tempo, já que em termos de História 50, 60 anos são uma poeirinha, a tragédia de Richard e Mildred Loving tem que ser contada, tem que ser conhecida.
A marcha de membros da Ku Klux Klan e outras entidades racistas em Charlotesville, no mesmo Estado da Virgínia, agora, em 2017 – que resultou na morte de uma pessoa e ferimento em várias outras, trazendo de volta à tona todo o perigo do supremacismo branco na sociedade americana – torna o tema ainda mais atual, urgente, e mais necessária a divulgação da história do casal Loving.
Felizmente, Loving, co-produção independente EUA-Inglaterra de 2016, escrita e dirigida por Jeff Nichols, não é apenas um filme importante porque fala de tema que precisa ser falado. É um grande filme.
Duas belas sequências abrem o filme – e o corte entre uma e outra é impressionante
Os filmes não mentem, e então, se você é um espectador experiente, com dez minutos você já sabe perfeitamente se um filme presta ou não.
Loving demonstra que é um filme feito com talento de cara, em seus primeiros minutos.
A primeira coisa que vemos é o rosto de uma mulher em close up – a atriz Ruth Negga, que faz Mildred. Em seguida veremos o rosto de um homem, também em close up – Joel Edgerton, que interpreta Richard Loving.
Não há música ao fundo, não há ruído algum. Ouvimos apenas as vozes dos dois.
– “Estou grávida” – diz ela – e o espectador vê na expressão do rosto que ela está temerosa de qual vai ser a reação dele. Está claríssimo que não foi uma gravidez planejada, e sim acidental.
Ela está com uma certa vergonha em anunciar para ele a gravidez. Uma certa vergonha, uma certa culpa.
Ruth Negga é ótima atriz, e seu rosto demonstra claramente essa gama de sentimentos, sensações.
A câmara focaliza o rosto dele. Durante um segundo, dois, ele não demonstra expressão alguma – parece estar processando a informação que acaba de receber. E então começa a surgir um sorriso, e o sorriso vai se ampliando.
Leva um minuto para enfim falar alguma coisa.
– “Bom. Isso é bom”, ele diz – e a expressão do rosto dela vai mudando. Vemos o alívio que ela está sentindo.
O silêncio é total.
A câmara os focaliza agora mais de longe, num plano de conjunto. Richard e Ruth estão sentados na beirada da varanda de uma casa humilde, de área rural. Os dois estão de mãos dadas. É de noite, e não há ruído algum.
Corta, e ouvimos o barulho ensurdecedor de carros acelerando. Do rádio de um deles vem um rock’n’roll em alto volume. É de dia, dia claro, ensolarado. Dois carros – seguramente com motores envenenados – se preparam para uma corrida num pequeno trecho de estrada. Aquilo parece ter sido uma mania nacional nos Estados Unidos nos anos 50: em Juventude Transviada/Rebel Without a Cause (1955), os personagens de James Dean, Natalie Wood e Sal Mineo participam de corridas assim ou são espectadores delas.
A passagem brusca de uma cena noturna em que reina o mais absoluto silêncio, um silêncio que realça tremendamente as poucas palavras trocadas entre os namorados, para uma cena diurna com ruído alto, música alta e vozerio tem um efeito impressionante.
Um dos rapazes que vai correr é branco, o outro é negro. Entre as duas dezenas de jovens – homens e mulheres – que estão ali para ver a disputa há brancos e negros; os brancos vão torcer pelo motorista branco, os negros, pelo negro.
Richard é exceção: torce pelo motorista negro, que é seu amigo. Ele é um bom mecânico, entende de carro, ajudou a envenenar o motor do carro do amigo.
Richard e Mildred vão da Virgínia até Washington, D.C., para se casar
Nas primeiras sequências todas, o filme não apresenta uma sociedade absolutamente segregada, em que pessoas de cor de pele diferentes não convivem. Muito ao contrário: no começo, Loving mostra que brancos e negros têm boa convivência ali no Condado de Caroline, na Virgínia.
Mais tarde, o xerife da cidadezinha mais próxima da zona rural em que vivem os personagens da história fará referência ao fato de que aquele lugar específico do Caroline County tem essa característica de “as raças se misturarem”. E ele diz isso com tremendo desprezo, nojo.
O ator que faz o xerife Brooks, Marton Csokas, foi muito bem escolhido. Ele tem todo o jeito, a aparência, o linguajar de um sujeito profundamente racista.
A figura dele – o racismo em estado bruto, o racismo concentrado – é absolutamente abjeta, nojenta.
Mas de fato nas primeiras sequências do filme não se fala de racismo, não se demonstra a existência de racismo.
Richard pede Mildred em casamento.
É uma bela sequência. Ele a leva para um terreno plano, na região em que vivem, diz que comprou aquele pedaço de terra e que vai construir ali uma casa para eles – e propõe que se casem.
Viajam no carro dele até Washington, D.C., para se casarem; levam como testemunha o pai dela. O District of Columbia, o distrito federal dos Estados Unidos, faz fronteira com o Estado de Virginia, e, pelo que o filme mostra, os Loving viviam na área rural de um condado bem próximo à capital federal.
Apenas em 1967 a Suprema Corte baniu todas as leis anti-miscigenação
Richard, Mildred, seus amigos, conhecidos – todos são pessoas simples, humildes, classe média baixa. Ele é pedreiro, operário da construção civil; a mãe dele, Lola (Sharon Blackwood), é a parteira da região. O pai de Mildred trabalha no campo, como posseiro, meeiro. Não passam por necessidades – têm o básico para uma vida digna, mas absolutamente simples. São alfabetizados, claro, mas não muito mais que isso; tiveram a educação básica, e nada mais.
Pessoas simples. Pessoas boas, honestas, trabalhadoras – e simples.
Já casados, Richard e Mildred ocupam um quarto na casa da família dela. Richard manda enquadrar e pendura na parede de quarto a certidão de casamento.
Numa madrugada, chega à casa um bando de policiais, para levar presos o branco e a negra que ousaram se amar.
Richard ainda mostra a certidão, o diploma legal. Um dos policiais diz a frase: – “Isto não vale nada aqui”.
A Virgínia era um dos diversos Estados sulistas em que o casamento inter-racial era proibido por lei. Um conjunto de leis estaduais, conhecido como Leis de Jim Crow, garantia a segregação racial, a separação obrigatória de brancos e negros. Escola, banheiro, bar, restaurante – onde entrava branco, preto não podia entrar. Em diversos Estados, branco/a fazer sexo com negra/o também era crime. Apartheid, igualzinho ao da África do Sul – só não tinha o nome.
Em nada menos de 30 dos 51 Estados americanos, as leis anti-miscigenação só foram revogadas entre 1948 e 1967.
Foi apenas em 1964 que uma lei federal – a Civil Rights Act, Lei dos Direitos Civis -, assinada pelo presidente Lyndon B. Johnson, deu fim oficial à segregação racial, derrubando as leis estaduais em sentido contrário, as tais Leis Jim Crow.
Em alguns Estados, no entanto – inclusive a Virgínia –, a proibição do casamento inter-racial ainda se manteve até 1967, quando, finalmente, a Suprema Corte decidiu que qualquer legislação contra casamento inter-racial é inconstitucional.
O caso que foi levado à Suprema Corte, e que causou a sentença histórica, foi o de Richard e Mildred Loving.
O juiz local deixa o casal solto desde que ele saia do Estado da Virgínia
Pessoas simples, humildes, Richard e Mildred Loving recorreram a um advogado da cidade mais próxima de suas casas. O que o advogado conseguiu foi que o juiz do lugar, Leon M. Bazile (David Jensen), desse uma sentença que livrava o casal da pena de prisão – desde que eles deixassem para sempre o Estado da Virgínia e nunca mais fossem vistos juntos ali.
E então se mudaram para Washington, onde foram bem recebidos por uma parente distante de Mildred, Laura (Andrene Ward-Hammond), mulher de casa e coração grandes.
Na capital, ele logo encontrou trabalho – mas ela, mulher de área rural, da roça, não se adaptava à vida na cidade grande.
É só quando o filme está na metade de seus 123 minutos que surge o primeiro sinal da batalha jurídica que virá a seguir. Na TV preto-e-branco da casa de Laura, há cenas das manifestações pelos direitos civis, o grande movimento que começou ainda nos anos 50 e foi crescendo como bola de neve, com as grandes marchas lideradas pelo reverendo Martin Luther King no início dos anos 60. Laura diz para Mildred: – “É hora de você também lutar pelos seus direitos civis”. E sugere que ela escreva uma carta para Robert Kennedy, o então procurador-geral – o nome americano do ministro da Justiça.
Dias depois, um jovem advogado chamado Bernard Cohen (Nick Kroll) liga para a casa de Laura à procura de Mildred. Apresenta-se como sendo do ACLU (a sigla em inglês para a União Americana pelas Liberdades Civis); a ACLU, diz ele, havia recebido a carta que ela escrevera a Robert Kennedy, e estava interessada em tratar do caso na Justiça.
“Diga a eles (os juízes da Suprema Corte) que eu amo minha mulher”
O diretor e roteirista Jeff Nichols teve a inteligência de não transformar Loving, a partir daí, em um filme de tribunal.
O filme continua mostrando o dia-a-dia de Richard, Mildred e os filhos – àquela altura, o casal já havia tido três, dois meninos e uma menina. Vamos vendo os contatos deles com o advogado Bernie Cohen, depois com um outro advogado mais experiente – mas o diretor de fato evitou que seu filme virasse um drama de tribunal. O foco, a atenção do filme é o casal, o relacionamento deles, o jeito com que vão enfrentando as dificuldades da vida.
Há uma bela sequência quando o filme já se aproxima do fim (creio que, como é uma história real, relatar isso não chega a ser spoiler), e a Suprema Corte já havia aceitado julgar a questão – que passaria para os livros de Direito como Loving v. Virginia. O advogado Bernie Cohen, exultante, visita o casal, dá a boa notícia, convida-os para assistir à sessão. Richard, que nunca teve grande esperança em que a Justiça pudesse melhorar sua vida, diz secamente que não vai – e se levanta da cadeira em que está na sua sala e sai para a varanda, onde fica de pé, olhando para o nada.
Bernie se volta para Mildred; ela sempre se mostrava mais disposta a participar da luta judicial, entendia que aquilo poderia ajudar a vida de milhares de outras pessoas. Está absolutamente claro que ela gostaria demais de ir à Suprema Corte – mas ela diz ao advogado que, sem o marido, não poderia ir.
O advogado vai ao encontro de Richard na varanda da casa. Tenta convencê-lo a ir, argumentando que, de cada 400 processos judiciais que chegam à Suprema Corte, apenas um é aceito pelos juízes. Richard permanece com a mesma expressão séria, sisuda. Vencido, o advogado pergunta se ele tem algo a dizer aos juízes da Suprema Corte.
Richard matuta por uns segundos em silêncio, e aí diz:
– “Diga a eles que eu amo minha mulher.”
A história do casal ajudou a banir leis racistas e também leis homofóbicas
Mary e eu achamos um tanto estranho terem escolhido para o papel de Mildred uma atriz que não é negra, e sim mulata – Ruth Negga nasceu em 1982 em Adis Abeba, Etiópia, filha de um etíope e uma irlandesa, e foi criada na Irlanda a partir dos 4 anos de idade. O estranhamento se deve exatamente ao fato de que – de maneira completamente oposta à realidade brasileira – nos Estados Unidos os casamentos inter-raciais eram proibidos, e até há pouco eram de fato raros; sem miscigenação, não há mulatos.
Mas depois o próprio filme – através da frase do xerife, aquela figura asquerosa – esclarece que naquele determinado lugar em que Richard e Mildred viviam havia uma rara experiência de miscigenação.
Quando Mildred Delores Jeter Loving morreu, em 2008, seu obituário no New York Times informou que ela descendia de negros e índios – perdão: afro-americanos e nativo-americanos. O obituário também dizia que ela preferia se identificar como Native American em vez de African American.
O IMDb lembra que a decisão da Suprema Corte sobre o caso Loving v. Virginia – sustentando a inconstitucionalidade da lei estadual que proibia casamento entre pessoas de cor de pele diferentes – seria usada como precedente quando o tribunal julgou em 2015 o caso Obergefell v. Hodges, que levou a Suprema Corte a declarar inconstitucionais leis estaduais proibindo casamentos de pessoas do mesmo sexo.
A história de Richard e Mildred Loving não ajudou apenas a banir uma legislação racista, mas também a retrógrada legislação homofóbica.
As atuações dos dois atores centrais são excelentes
As atuações de Joel Edgerton e Ruth Negga são extraordinárias. Os dois conseguem fazer com que o espectador sinta imensa simpatia pelo casal, que torça por eles, que sofra junto com eles com a absurda doença que é o racismo.
Joel Edgerton foi indicado ao Globo de Ouro; ela, ao Globo de Ouro e ao Oscar. No total , o filme recebeu 22 prêmios, fora 85 outras indicações. Foi admitido para participar da mostra competitiva do Festival de Cannes, o que já é uma imensa honra. Não ganhou prêmios, mas foi aplaudido durante 5 minutos.
No site Rotten Tomatoes, a nota média dada pelos leitores foi de 7,7 em 10. (No IMDb, foi de 7,0.) O site afirma que o filme conta uma dolorosa – e ainda relevante – história da vida real, “com interpretações sensíveis que dão vida a um drama histórico superlativo”.
Nos créditos finais do filme, há um agradecimento a Peggy Loving, a filha do casal. E é dito que o filme é “baseado em parte no documentário The Loving Story, de Nancy Buirski”, lançado em 2011.
O filme parece ter sido bastante fiel à história real. Num debate com os espectadores após uma exibição do filme em Princeton, New Jersey, o produtor Peter Saraf afirmou: “Richard Loving era de fato tão estoico quanto Nichols e Edgerton o retratam; a pequena comunidade rural da Virgínia em que eles viviam era (e ainda é) bastante integrada racialmente; Mildred Loving de fato escreveu diretamente para Robert Kennedy, e a carta dela está na coleção dos Kennedy; e o advogado dos Loving de fato disse na Suprema Corte, a pedido de Richard, que ele amava sua mulher.”
Anotação em setembro de 2017
Uma História de Amor/Loving
De Jeff Nichols, EUA-Inglaterra, 2016.
Com Joel Edgerton (Richard Loving), Ruth Negga (Mildred Loving)
e Nick Kroll (Bernie Cohen, o advogado), Will Dalton (Virgil), Andrene Ward-Hammond (Laura, a amiga de Washington), Marton Csokas (xerife Brooks), Michael Shannon (Grey Villet, o fotógrafo da Life), Jon Bass (Phil Hirschkop), Alano Miller (Raymond Green), Chris Greene (Percy), Sharon Blackwood (Lola Loving, a mãe de Richard), Christopher Mann (Theoliver), Bill Camp (Frank Beazely), Bridget Gethins (a secretária do tribunal), David Jensen (juiz Leon M. Bazile), Matt Malloy (Chet Antieau)
Roteiro Jeff Nichols
Baseado em parte no documentário The Loving Story, de Nancy Buirski (2011)
Fotografia Adam Stone
Música Davide Wingo
Montagem Julie Monroe
Casting Francine Maisler
Produção Raindog Films e Big Beach Films
Cor, 123 min (2h03)
Disponível no Now.
***1/2
Parabéns amigos pela linda história de amor .