The Bletchley Circle

3.0 out of 5.0 stars

Já foram feitos bons filmes sobre o trabalho dos britânicos decifradores de códigos durante a Segunda Guerra Mundial, e seria bom que outros ainda sejam feitos, porque é tema é importante – e também fascinante, apaixonante, glamouroso.

Ainda em 1980, a BBC exibiu uma peça escrita por Ian McEwan, The Imitation Game. Em 2001, Michael Apted lançou Enigma, uma beleza de filme, com Dougray Scott, Kate Winslet e Jeremy Northam. Em 2011, houve um filme feito para a TV britânica, Code-Breakers: Bletchley Park’s Lost Heroes (literalmente, Decifradores de códigos: os heróis perdidos de Bletchley Park).

Em 2014 veio O Jogo da Imitação, com Benedict Cumberbatch no papel do genial matemático Alan Turing, tido como o criador de uma máquina – um antecessor do que hoje conhecemos como computador – que decifrava as mensagens das forças armadas da Alemanha nazista, criptografadas por um aparelho chamado Enigma.

Dois anos antes de O Jogo da Imitação, em 2012, o canal ITV britânico exibiu a primeira parte da minissérie The Bletchley Circle. Duas novas partes foram exibidas em 2014.

Essas três histórias que formam a minissérie The Bletchey Circle, apresentadas em sete episódios de cerca de 45 minutos cada, estão agora disponíveis na Netflix. As duas primeiras são excepcionais – maravilhosamente bem produzidas, perfeitas em cada aspecto possível, da escolha do elenco à reconstituição de época, da engenhosidade da trama à interpretação das atrizes e atores.

Sobretudo atrizes. The Bletchley Circle é uma minissérie sobre mulheres. Escrita por um homem – Guy Burt, vencedor do Bafta de melhor roteiro por outra minissérie, Harriet’s Army, de 2014 –, é feminista até a medula, até a última gota, a raiz dos cabelos das personagens, da primeira à última cena.

Tramas policiais fascinantes – e um belo estudo de comportamento

Guy Burt criou três histórias em que um grupo de mulheres que trabalhou em Bletchley durante a Segunda Guerra, em 1943, volta a se encontrar em 1952 e 1953, envolvidas primeiro com um serial killer, depois com um assassinato misterioso, e depois com um grande esquema de contrabando e corrupção policial.

São belas tramas policiais, de thriller, as duas primeiras – inteligentes, ricas, bem engendradas, bem costuradas. Mas, à parte as tramas policiais, temos aí um belo estudo de comportamento, uma fascinante narrativa sobre a dificuldade de adaptação das mulheres que participaram dos trabalhos do serviço secreto à vida civil após o fim da guerra.

Tão fascinante quanto ver como aquelas mulheres vão desvendando os assassinatos do serial killer do primeiro segmento é acompanhar, por exemplo, o fosso que existe entre Susan (Anna Maxwell Martin, a terceira da esquerda para a direita na foto acima), a personagem mais importante entre as cinco mulheres do círculo de Bletchley focalizadas na minissérie, e seu marido, Timothy Gray (Mark Dexter).

Numa abertura fascinante, explica-se o trabalho dos decifradores

A abertura da minissérie é não menos que brilhante. O autor-roteirista Guy Burt consegue, em uma sequência rápida, de poucos minutos, demonstrar para o espectador um pouco do tipo do complexo trabalho que as decifradoras de código faziam em Bletchley – e, ao mesmo tempo, nos introduzir às personagens centrais da trama.

Um letreiro informa: “Bletchley Park, 1239. QG britânico de decifração de códigos”. Dezenas de mulheres trabalham diante de mesas cheias de papéis, máquinas de escrever, máquinas de telex.

Uma delas – veremos em seguida que se chama Susan – parece imersa em seus pensamentos, seus raciocínios. Repete o nome “Diederich”, que tem aparecido seguidas vezes nas mensagens das forças armadas nazistas interceptadas pelo serviço secreto britânico.

Susan se levanta de sua mesa, vai até uma pequena sacada em uma amiga está fumando – Millie, o papel de Rachael Stirling, uma atriz de beleza forte (a segunda da esquerda para a direita na foto abaixo). Susan pergunta a Millie: “Como foram criptografadas as transferências de pessoal?”

– “Ultra”, responde Millie, que, veremos, além de grande inteligência, tem um notável domínio de diversas línguas além do alemão, é claro.

Por que usar o código “ultra-secreto” para a transferência de um oficial chamado Diederich?

Essa é a questão que surgiu na cabeça privilegiada de Susan, e que ela e Millie expõem em seguida à sua supervisora, Jean McBrian (Julie Graham, a primeira da esquerda para a direita na foto abaixo).

Susan chama então a colega do lado, Lucy (Sophie Rundle, a quarta da esquerda para a direita na foto abaixo). Lucy, o espectador verá imediatamente, é dotada de uma memória absolutamente fantástica, prodigiosa. Como a de um computador – essa máquina que na época começava a nascer, em parte a partir do trabalho do matemático Alan Turing.

Susan pergunta o que Lucy se lembra de transferências do capitão-tenente Dieter von Diederich – e Lucy começa a recitar diversas ordens de transferência de von Diederich que haviam sido interceptadas pelos britânicos nos últimos meses.

Ninguém seria transferido tantas vezes em tão pequeno espaço de tempo.

Susan – inteligência faiscante – começa a imaginar que aquele nome poderia ser um código dentro de um código.

Jean, a mais velha, a supervisora, diz para ela levar aquelas informações e suposições para a Central.

Susan estava certa em sua desconfiança, em suas suposições: aquele não era o nome de um oficial, e sim um código para reposicionamento de tropas. “Os números dos batalhões indicam áreas geográficas diferentes, e Diederich é a ordem para posicioná-las”, Susan conta para as três companheiras depois de uma longa reunião na Central. “Com isso, vamos saber onde os alemães estarão com três dias de antecedência.”

De quebra, a abertura nos apresenta as quatro personagens centrais

Em 4 minutos, os primeiros 4 minutos de 7 episódios, a minissérie The Bletchley Circle resumiu para o espectador o tipo de trabalho que se fazia no quartel-general de decifração de códigos do serviço secreto britânico – e, de quebra, nos apresentou as quatro personagens centrais:

* Susan é a mais brilhante de todas elas. As quatro são mulheres muito inteligentes, de inteligência bem acima da média, como todas as pessoas recrutadas para trabalhar em Bletchley Park. Mas Susan é a mais brilhante de todas.

* Millie é uma mulher forte, corajosa, firme, independente. Sua grande vantagem é o domínio de várias línguas, a facilidade para línguas – mas sua maior especialidade de fato é a força, o vigor, a independência. É também uma mulher bela, vistosa, atraente.

* Jean, a mais velha, mais experiente, sabe gerenciar, administrar – coisas, situações, pessoas. Tem capacidade natural de liderança – e sabe usar o dom.

* Lucy, a máquina de memorizar tudo que vê e ouve, é a mais bela e mais jovem das quatro. É também a mais insegura, indefesa delas.

O trabalho realizado no Bletchey Park encurtou a Segunda Guerra Mundial

Aqui é bom resumir o que aprendi sobre Bletchey Park depois de ver a série. Esse era o nome uma magnífica propriedade de campo, situada 80 km a Noroeste de Londres, desde que foi comprada em 1877 por um sujeito chamado Samuel Lipscomb Seckham. A propriedade teve depois disso vários donos, e, na segunda metade do século XIX, ganhou uma gigantesca mansão que misturava diversos estilos arquitetônicos, além de vários edifícios menores.

Em maio de 1938 Bletchey Park foi comprada pelo almirante Sir Hugh Sinclair, então chefe do Secret Intelligence Service, SIS, mais tarde conhecido pela sigla M16, para sediar a GC&CS (Escola de Código e Cifras do Governo) e parte do pessoal do próprio serviço secreto.

Foi lá que trabalharam as centenas de pessoas, em sua maioria mulheres, encarregadas de decifrar os códigos nazistas durante toda a Segunda Guerra. Foi lá que trabalharam Alan Turing e diversos outros grandes matemáticos, linguistas e outros acadêmicos recrutados pelo governo nas universidades de Cambdrige e Oxford. Durante a guerra, recebeu a visita do primeiro-ministro Winston Churchill.

Bletchley Park virou um museu, em 1993, e recebe anualmente centenas de milhares de visitantes.

O lugar serviu de cenário para o filme O Jogo da Imitação, entre outros.

Segundo vários historiadores e estudiosos, o trabalho de decifração dos códigos nazistas realizados em Bletchley Park ajudou a encurtar a Segunda Guerra por um período entre 2 e 4 anos, poupando a vida de centenas de milhares de pessoas no mundo todo.

Quem trabalhava em Bletchley ficou proibido de falar sobre o que acontecia

Depois daquela introdução nos primeiros 4 minutos do primeiro dos sete episódios, vêm os créditos iniciais – brilhantemente construídos. E, ao fim dos créditos iniciais, já se passaram nove anos, estamos em 1952. Susan é agora Susan Gray, está casada já faz vários anos com Timothy Gray. Têm dois filhos, um casal, aí de uns 6 e 7 anos de idade.

Timothy – o espectador verá – é uma boa pessoa; ama a mulher, ama os filhos, dá atenção e carinho aos três. Serviu na Guerra como tenente do Exército britânico, foi ferido na perna; durante sua recuperação, num hospital de Londres, ficou conhecendo Susan, que então já havia se desligado de Bletchley Park, assim como as amigas.

É um servidor público, trabalha no Ministério de Transportes. No primeiro dos três segmentos da minissérie, “Decifrando o Código de um Assassino/Cracking a Killer’s Code”, vai receber uma promoção para um cargo de chefia no departamento de licenciamento de veículos. Num belíssimo diálogo, ao responder a uma pergunta de Susan sobre se gosta de seu trabalho, Timothy dirá que sim, gosta; não é um trabalho cheio de aventuras, mas ele já teve sua cota de momentos turbulentos na vida, durante a Guerra.

A grande questão naquele aparentemente perfeito casal classe média inglês é que ele não sabe absolutamente nada do que sua mulher fez durante a Segunda Guerra.

Não tem a menor idéia de que ela foi uma das mentes mais brilhantes de Bletchley Park, a sede dos decifradores de códigos que foram capazes de acelerar a derrota nazista e assim encurtar a Segunda Guerra.

Todas as pessoas convidadas a trabalhar para o serviço secreto britânico em Bletchley Park tinham que assinar documento se comprometendo a cumprir as determinações do Official Secret Act – legislação criada para garantir a proteção de segredos de estado e informações oficiais relacionadas à segurança nacional.

Mesmo para o marido Susan – para cumprir o que mandava a lei – escondeu suas atividades como decifradora de códigos. Assumiu a versão oficial de que fazia lá apenas trabalho de secretária, sem conhecimento dos segredos de estado.

Susan usa seu talento para investigar os crimes de um serial killer

Naquele ano de 1952, um assassino serial estava agindo em Londres. Os jornais e a rádio davam muitas notícias do caso. Uma quarta mulher foi encontrada morta com as mesmas características das vítimas anteriores: estrangulada e com o corpo abandonado em um lugar subterrâneo – algum porão.

Absolutamente em segredo, sem contar para ninguém, sem dizer uma palavra a Timothy, Susan ouvia todas as notícias, guardava os recortes de jornal sobre os crimes do serial killer. Acompanhava todos os movimentos do assassino, em busca de um padrão – exatamente como fazia no tempo da guerra.

Depois de algum tempo, convencida de que tinha informações importantes para oferecer à polícia, Susan pergunta a Timothy se seu amigo dos tempos de guerra continuava na Scotland Yard. Sim, diz o marido: Wainwright (Michael Gould) é alto comissário na Polícia, vice-diretor. Susan pede então para que o marido marque uma entrevista dela com o comissário.

É extraordinário ver a expressão de surpresa, de choque de Timothy, boa pessoa, cidadão exemplar, mas absolutamente ignorante a respeito do talento da mulher, e, afinal, machista, como toda a sociedade em que vivia, diante do pedido de Susan. Mas você acha que tem alguma pista que pode ser útil à polícia? – ele pergunta para ela, absolutamente incrédulo, atônito.

Mas arranja o encontro, e leva Susan para uma entrevista com o comissário Wainwright. Susan explica ao policial que, com base em tal e tal fato, pode dizer com certeza que há alguma outra vítima, em determinada área da cidade. O policial a ouve com uma ponta de descrédito, mas alguma atenção – e pergunta se ela trabalhou em Bletchley Park.

É outro momento grandioso. Susan não pode dizer que sim, trabalhou, é boa demais nessa coisa de decifrar códigos – falar a verdade, ainda que para usar como argumento em defesa do que estava apresentando ao policial, seria contra a lei. E então ela diz: – “Sim, mas apenas em trabalho burocrático”.

Mesmo assim, o comissário resolve ouvir o que ela diz, e manda que se faça uma busca na região indicada por Susan. A busca não dá em nada.

Heroínas durante a guerra, aquelas mulheres não podem ter seu valor reconhecido

Sem poder contar com a polícia, Susan vai atrás das três antigas companheiras, Millie, Jean e Lucy.

Passam a trabalhar juntas, tentando identificar os padrões de comportamento do serial killer para em seguida localizá-lo.

Jean tem agora um bom cargo em uma importante biblioteca pública, e isso será útil nas investigações das quatro mulheres a partir daí.

Millie viajou muito pelo mundo até que suas economias acabaram. Aí então quietou-se em Londres; ganhava a vida com seu talento para línguas – tinha trabalhos de tradução e como secretária em uma empresa alemã. Jean, a certa hora, faz o comentário triste, cruel: – “Mudou tudo; agora somos aliados dos alemães e inimigos dos russos.”

Lucy, a mais jovem, mais frágil, está casada com um tal Harry (Ed Birch), um sujeitinho imprestável, machista, violento, do tipo que bate em mulher.

É muito chocante ver o que os tempos de paz fizeram com aquelas quatro mulheres que foram silenciosas heroínas durante a guerra.

E a minissérie dá a devida importância a isso.

Mas a atenção maior dos espectadores tende mesmo a ficar com a trama policial, é claro.

E a trama policial desse primeiro segmento, “Decifrando o Código de um Assassino”, é fascinante. Assim como a do segundo segmento, que só foi apresentado na TV britânica dois anos depois do primeiro.

No segundo segmento da série, de novo uma abertura brilhante

Assim como o primeiro, o segundo segmento, “Sangue nas Mãos/Blood on Their Hands”, também tem um pequeno intróito que se passa em Bletchley Park, em 1943 – e, nele, uma nova personagem é introduzida. Chama-se Alice Marren, e é interpretada por Hattie Morahan (nas duas últimas fotos abaixo).

Um letreiro informa que estamos na Casa de Máquinas de Bletchley Park. Como já foi dito, a grande propriedade que passou a pertencer ao serviço secreto inglês a partir de 1938 tinha diversos edifícios, além da imensa mansão principal. As decifradoras de código ficavam numa casa – e as que cuidavam das máquinas usadas na decodificação, em outra.

Alice Marren, a nova personagem, é expert em máquinas.

Dois homens estão verificando que as máquinas que recebem os códigos nazistas roubados pelo setor específico da inteligência britânica tinham parado de fazer seu trabalho. – “A culpa não é nossa”, diz um deles. “A única explicação é que os alemães trocaram as máquinas deles.”

Está absolutamente claro que aqueles homens ocupam cargos um pouco mais elevados que os das moças que trabalham diligentemente ali.

– “Se trocaram as máquinas, podemos desistir e ir embora.”

Nesse momento, entra ali Jean, a coordenadora do trabalho das moças da Casa 4. – “Já se passaram dois dias”, ela diz para os dois homens. “Na Casa 4, tenho moças à toa esperando textos para tentar decodificar.”

Um dos homens propõe ao outro: – “Vamos comparar com os dados da semana passada.”

Aí a jovem Alice Marren se aproxima deles, dizendo que acha que descobriu o que há. De novo: está absolutamente claro que a função dela é menor, é inferior – e os dois homens se surpreendem por uma funcionária pouco graduada se meter na conversa deles.

Alice diz: – “Não mudaram as máquinas. Mudaram os códigos.”

Diante da cara de surpresa dos dois homens e de Jean ali o lado, Alice diz: – “Ninguém conta as letras no cabeçalho das mensagens?”

Um dos homens, um de grandes óculos: – “E por que alguém faria isso?”

Alice: – “O cabeçalho está com três caracteres a mais. Acho que mudaram o sistema de codificação. Puseram três caracteres indicadores no cabeçalho.”

O homem de óculos: – “Por quê?”

Alice: – “Fica mais fácil para os operadores. Eles usam o sistema há dois anos. Acham que é indecifrável.”

O homem de óculos, admitindo que ela pode estar certa: – “Estão ficando relaxados…”

Alice: – “Os três caracteres estão atrapalhando tudo. Só precisamos (e ela vai até uma das máquinas, começa a mexer nela) fazer isto aqui. Veja, isso deve resolver.”

O outro homem, que está mais cético: – “Não pode ser tão simples assim.”

Alice: – “Por que não? Pode-se construir a máquina mais complexa do mundo, mas ela será operada por pessoas. Pessoas adoram atalhos.”

O de óculos pede para que ela tente acionar novamente as máquinas da maneira com que ela está sugerindo.

As máquinas começam a operar.

De novo, assim como no primeiro segmento, o autor-roteirista Guy Burt consegue, através de um exemplo simples, facilmente inteligível pela audiência, demonstrar um pouco como era o trabalho em Bletchley Park – e, ao mesmo tempo, ilustrar como é brilhante o raciocínio daquela personagem que nos está sendo apresentada.

O melhor cinema que se faz hoje é nas Ilhas Britânicas – e bom cinema se faz para a TV

Estamos nesse momento com ínfimos, ridículos 2 minutos apenas da nova história de The Bletchley Circle. Ainda falta, antes dos créditos iniciais e do pulo para daí a dez anos, uma outra informação fundamental para a trama.

Assim que as máquinas voltam a trabalhar, Alice se afasta dos dois superiores hierárquicos, vai continuar a trabalhar com as suas coisas. Jean caminha junto dele por alguns metros, e pergunta – obviamente impressionada com a inteligência da moça – se ela não deveria estar trabalhando na Casa 4.

Alice responde com absoluta tranquilidade, sem um traço de presunção, sequer de orgulho por ter resolvido um problema que paralisava os trabalhos ali: – “Não sei. Sou melhor trabalhando com máquinas.”

Jean diz que está às ordens caso ela mude de idéia.

O homem de óculos – veremos que se chama John Richards (Paul McGann) – chama Alice: – “Srta. Marren, pode ir até a Central comigo?”

E saem os dois da Casa das Máquinas. John pergunta como ela descobriu aquilo; – “Você sempre conta as letras?” E ela: – “Só quando as outras opções não funcionam.”

– “Estou impressionado”, diz John, enquanto vão caminhando de noite, ao ar livre, entre um prédio e outro de Bletchley Park. “Estou sempre impressionado.”

Num trecho em que não há outras pessoas passando, ele pede que ela espere um pouco e, com um lenço, gentilmente, tira uma sujeira de tinta da testa dela.

– “Não preciso que você vá até a Central. Tenho notícias”, diz ele. “Vão me transferir para outro departamento.”

Ela pergunta para onde é, ele diz que não sabe – e, se o espectador não havia ainda reparado, agora é para ele reparar: John Richards, posição hierárquica superior, e a jovem Alice Marren, funcionária da Casa de Máquinas, são namorados, amantes, têm um caso.

– “Então isso é um adeus?” – ela pergunta, e, nesse exato momento, Jean McBrian está passando por ali e vê o casal, que não a vê.

Alice dá um beijo de despedida em John, começam os créditos iniciais – e então este espectador aqui teve todo o direito de dar um suspiro e dizer, mais uma vez, que o melhor cinema que se faz hoje no mundo é nas Ilhas Britânicas, e nestes últimos anos muito do melhor cinema que se faz no mundo é para a TV.

Dez anos depois, a cientista Alice é acusada de ter matado o namorado

Depois dos créditos iniciais deste primeiro dos dois únicos episódios de “Sangue nas Mãos/Blood on Their Hands”, um letreiro informa que se passaram dez anos. Estamos, portanto, em 1953, um ano depois que Susan, Millie, Jean e Lucy decifraram o código do assassino serial que matava mulheres na Inglaterra.

Na biblioteca em que exerce uma função de chefia, Jean McBrian recebe em uma mesa o exemplar do Evening Standard que traz a seguinte manchete: “Marcada a data para o julgamento da cientista assassina”. No alto da primeira página, há uma grande foto de Alice Marren.

Alice está sendo acusada de assassinar com um tiro no peito exatamente John Richards.

Jean não acredita que tenha sido Alice a assassina. Vai procurá-la na prisão – e Alice a dispensa, diz que não quer ajuda alguma. Jean conversa com o advogado designado para fazer a defesa de Alice, e ele conta que a ré simplesmente não quer falar nada, não quer ajudar, não quer se defender. Está absolutamente entregue, como se quisesse ser condenada. E, na Grã-Bretanha de 1953, ainda existia aquela coisa pré-histórica, sinal das trevas, da barbárie, que é a pena de morte, o homicídio praticado pelo Estado.

Jean vai em busca das amigas Susan, Millie e Lucy para que a ajudem a descobrir o que houve de verdade. Para que achem provas de que não foi Alice que matou o homem que, durante a guerra, ela namorava.

São dois episódios fascinantes, bem realizados em todos os quesitos, os deste segundo segmento da minissérie.

De uma maneira grotesca, apavorante, ininteligível, a minissérie cai no chão no terceiro segmento, “Contrabando/Uncustomed Goods”. A direção é pavorosamente ruim – as atrizes que tínhamos visto trabalhando muito bem estão bastante ruins. Tudo é ruim – tão vergonhosamente ruim que nem vou tentar me dar ao trabalho de dar exemplos, de explicitar por que fiz esse juízo tão implacável.

Tem, seguramente, a ver com a direção.

Os três primeiros episódios, os da primeira história, foram dirigidos por Andy De Emmony. Os dois episódios de “Sangue nas Mãos”, por Jamie Payne. Não os conhecia, mas eles se demonstram absolutamente firmes, seguros, competentes. O oposto de Sarah Harding, que assina a direção dos dois episódios da terceira história.

Não conhecia nenhuma das cinco atrizes principais da série

Nunca se deve dizer que a gente conhece bastante de alguma coisa.

Eu poderia, num momento de desatenção qualquer, dizer algo do tipo “conheço bastante do cinema inglês”. Estaria falando besteira. No máximo, no máximo, a gente pode dizer que conhece um pouquinho.

Sou admirador do cinema inglês, do cinema irlandês, dos atores ingleses, irlandeses, galeses, escoceses – e no entanto não conhecia sequer um dos três diretores desta minissérie e, não me lembrava de sequer uma das cinco ótimas atrizes que fazem as protagonistas, as mulheres de Blentchley, embora três delas tenham sido coadjuvantes em filmes que já estão aqui no site (nos links abaixo).

Já me tornei fã de todas, e vou passar a prestar atenção a elas nos próximos filmes que vir – Anna Maxwell Martin, que fez Susan, Rachael Stirling, que fez Millie, Julie Graham, que fez Jean McBrian, a jovem e bela Sophie Rundle, a Lucy.

Mas fiquei especialmente impressionado com essa Hattie Morahan, que interpreta Alice Marren. Desde as primeiras sequências, aqueles quatro minutos iniciais do segmento dois em que ela aparece pela primeira vez, resolvendo um problema que os superiores não tinham idéia de como resolver e em seguida se despedindo do amante que mais tarde ela seria acusada de assassinar.

Que maravilha de atriz.

Esta é uma bela minissérie. Se algum eventual leitor tiver chegado até aqui, que aceite a sugestão: procure este The Bentchley Circle, vá atrás, veja. De preferência, veja só os dois primeiros segmentos, sem perder tempo com o terceiro.

Sem o terceiro segmento, esta seria uma minissérie para cotação máxima. Cinema de primeiríssima qualidade.

Anotação em fevereiro de 2018

The Bletchley Circle

De Guy Burt, criador, roteirista, Inglaterra, 2012 e 2014

1 – “Decifrando o Código de um Assassino/Cracking a Killer’s Code”

Diretor Andy De Emmony, 2012

2 – “Sangue nas Mãos/Blood on Their Hands”

Diretor Jamie Payne, 2014

3 – “Contrabando/Uncustomed Goods”

Diretora Sarah Harding, 2014

Argumento e roteiro Guy Burt

Com Anna Maxwell Martin (Susan Gray), Rachael Stirling (Millie), Julie Graham (Jean McBrian), Sophie Rundle (Lucy), Hattie Morahan (Alice Marren)

e Mark Dexter (Timothy, o marido de Susan), Faye Marsay (Lizzie, a filha de Alice), Nick Blood (Ben Gladstone, o policial fã de Lucy), Ed Birch (Harry, o marido de Lucy), Michael Gould (comissário Wainwright, da Scotland Yard), Elliot Kerley (Sam), Jocelyn Macnab (Claire), Steven Robertson (Crowley), Edyta Budnik (Elishka), Brana Bajic (Marta, a líder da quadrilha), Orestes Sophocleous (Lazzru Magros), Simon Williams (Cavendish), Paul McGann (John Richards, o namorado de Alice), Rob Jarvis (Jasper, o amigo de Millie)

Argumento e roteiro Guy Burt

Fotografia John Pardue, Jake Polonsky, Adam Suschitzky

Música Nick Green

Montagem Stephen O’Connell, St. John O’Rorke, David Rees

Casting Rebecca Wright, Julie Harkin

Produção World Productions.

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5 Comentários para “The Bletchley Circle”

  1. Já vi esta série umas três vezes e sempre com grande agrado.
    “O melhor cinema que se faz hoje é nas Ilhas Britânicas” escreve o Sérgio e eu concordo inteiramente.

  2. Olá Sérgio! Fiquei maravilhada com o seu texto acima! Não vi essa série e me animei em vê-la!
    abraços

  3. Me impressiona como os atores britânicos são bons, muito bons. Acho que eles nascem interpretando. E sem dúvida que o melhor cinema está na Europa hoje em dia. O advento dos filmes de super-heróis que os americanos adotaram enche a paciência de quem gosta de uma boa história que fale de pessoas comuns

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