Mestre da comédia, dos melhores destes primeiros 120 anos de História do cinema, Woody Allen sabe muitíssimo bem fazer dramas. Demonstrou isso, de sobra, desde o primeiro deles, Interiores (1978).
Perdeu a mão, e errou feio – na minha opinião de woody-allen-maníaco de primeira hora – neste Roda Gigante, seu longa-metragem de número 46, o nono drama.
Ao contrário dos oito anteriores, não quis, ou simplesmente não soube fazer um drama com narrativa sóbria, séria, apropriada para o tipo de história que iria contar. Não. Roda Gigante é um drama com espírito, timing, interpretações, diálogos, todo o clima de uma comédia.
Os personagens são uns pobres coitados, que sofrem muito, sofrem demais – por culpa da vida, do destino, da sorte, dos fados, mas também por culpa deles mesmos, seus erros, suas escolhas equivocadas. No entanto, Woody Allen parece não ter pena, dó, simpatia, carinho por eles. Ao contrário: o autor parece estar o tempo todo gozando aqueles pobres seres humanos afundados em sua pequenez e sua infelicidade. Rindo de suas misérias.
É revoltante. Repulsivo. Disgusting.
São quatro protagonistas. A história é narrada por um deles
A história é narrada por Mickey – o papel do jovem galã Justin Timberlake, adorado por centenas de milhões de adolescentes mundo afora como cantor e ator. Michael é um dos quatro protagonistas da história – e, já na primeira sequência, em que vemos a praia de Coney Island lotada, com o parque de diversões bem à vista, a roda gigante que dá o nome do filme no centro da tela, ele apresenta para o espectador os dados básicos do que que virá – o onde, o quando, quem ele é:
– “Coney Island, anos 1950. A praia, o calçadão. No passado, uma jóia luminosa, mas ficando cada vez mais decadente à medida que o tempo passa. Durante o verão eu trabalho aqui no Posto 7. (Veremos que ele trabalha como salva-vidas.) Quando chega o outono, estudo na New York University; faço Teatro Europeu. Sou Mickey Rubin. Poético por natureza. Sonho me tornar um escritor. Um escritor de grandes peças, que um dia vai surpreender todo mundo com uma profunda obra-prima.”
E ele prossegue, do alto da cadeira de salva-vidas, dirigindo-se à câmara, os olhos na câmara – ou seja, voltado diretamente para os espectadores, como Woody Allen costuma fazer em muitos dos seus filmes:
– “Bem. Deixe-me ir para a história da qual sou um personagem. Fiquem avisados: como sou poeta, eu uso símbolos. E, como um dramaturgo iniciante, tenho admiração pelo melodrama e por personagens maiores que a vida. Surge Carolina.”
E então vemos Carolina, a segunda dos quatro protagonistas da história a aparecer na tela. Carolina (o papel da jovem inglesa Juno Temple, na foto abaixo) está chegando a Coney Island, carregando uma mala.
Veremos que está à procura do pai, que não vê há cinco anos.
Quando estava com apenas 20 anos, cinco anos antes, Carolina havia se apaixonado perdidamente por um um sujeito charmoso, filho de italianos, e, contra a vontade do pai, havia se casado com ele.
O rapaz era um gângster, um mafioso.
O casal teve um tempo de vida de chique, elegante – conforme ela vai contar bem mais tarde a Mickey –, com jantares em restaurantes finos, presentes de jóias, viagens a Cuba e outros lugares do Caribe. Mas vieram os desentendimentos, brigas; Carolina acabou se separando do marido – e contando ao FBI o que sabia sobre suas atividades no mundo do crime.
Agora fugia do marido e da gangue dele. Imaginou que o marido jamais iria procurá-la na casa do pai, já que ele havia rompido com a filha e nunca mais falara com ela.
O pai, Humpty (o papel de James Belushi), cuidava do carrossel do parque de diversões da Coney Island, a praia de mar aberto do Brooklyn. Estava casado de novo com uma mulher bem mais jovem do que ele, Ginny – o papel da maravilhosa, extraordinária, sensacional Kate Winslet.
Aos 39 anos, Ginny tinha longa história de vida. Tinha sido atriz, trabalhado em várias peças – em papéis pequenos, sem destaque. Tinha sido casada com um músico, por quem era absolutamente apaixonada; teve, no entanto, um caso com um outro homem, e por isso o casamento havia acabado. Veio um tempo difícil em sua vida, passou a beber muito – e foi quando conheceu Humpty, que havia ficado viúvo e perdera a filha para um gângster. Estavam os dois no fundo do poço – e então haviam se ajudado um ao outro. Viviam ali mesmo em Coney Island, bem perto do parque de diversões, num lugar barulhento, Humpty, ela e o filho dela do primeiro casamento, um garoto agora com uns 12, 13 anos, Richie (Jack Gore), um tipo problemático, que vinha desenvolvendo uma piromania – botava fogo em tudo o que via pela frente.
Trabalhava como garçonete num restaurante diante do parque de diversões. Detestava o trabalho, detestava morar ali no meio do barulho, sofria de enxaquecas terríveis, sentia saudade do tempo em que vivia com o marido músico que amava de paixão, não tinha grande amor por Humpty, e o filho era um problema eterno.
Ginny se apaixona por Mickey que se apaixona por Caroline
Ao chegar a Coney Island, fugindo do marido gângster, Carolina primeiro encontra a mulher do pai.
Ginny a leva para casa. Humpty havia saído. Quando chega de volta, tem como que um ataque histérico ao ver a filha.
Mas ele a ama demais, e, depois de dizer que não a aceitaria, de mandá-la embora várias vezes, permite, é claro, que ela fique.
Arranjam para Carolina emprego de garçonete no mesmo restaurante em que Ginny trabalha. O pai a faz estudar à noite: tem esperança de que ela se forme, vire professora, melhore de vida.
Mickey reaparece para continuar conversando com o espectador, olhando para ele.
Conta que ele e Ginny se tornaram amantes.
Uma mulher frustrada, levando uma vida que detesta – e um namoro com um jovem bonito, bem mais novo do que ela, que estuda drama na universidade. Ginny, é claro, se apaixona perdidamente.
O espectador não precisa ser atento, não precisa ser muito esperto, não precisa de nada, a não ser somar 1 com 1, para sacar que Mickey vai se apaixonar por Carolina.
A gente sai do filme deprimido, triste, acabrunhado
Tenho admiração imensa por Woody Allen; é um dos cineastas que mais admiro. E tenho admiração imensa por Kate Winslet. Acho Kate Winslet uma das maiores atrizes em atuação nos dias de hoje. Acho que ela é grande como Katharine Hepburn, Jane Fonda, Meryl Streep.
Kate Winslet tem uma atuação brilhante como Ginny, essa mulher sofrida, triste, acabrunhada, frustrada, que só levou porrada da vida.
A câmara do diretor de fotografia Vittorio Storaro trata bem Kate Winslet-Ginny: em diversas sequências, o rosto dela aparece com uma iluminação especial, caprichada, estudada, que realça sua beleza. O gênio italiano – 3 Oscars, autor da fotografia de, entre muitos outros, Apocalypse Now, Reds, O Último Imperiador – envolve o rosto da atriz com uma luz quente, amarela-alaranjada, uma maravilha.
O roteirista Woody Allen, no entanto, não trata bem essa personagem tão triste. Muito ao contrário. Parece se comprazer com cada nova infelicidade que cai sobre os ombros dela.
Dela, e também de Humpty.
Como disse no início, Woody Allen parece não ter qualquer simpatia por seus personagens. Parece estar o tempo todo rindo daqueles pobres seres humanos, tão pequenos, tão infelizes.
Nas comédias de Woody Allen, a falação sem parar dos personagens é engraçada, gostosa, divertida.
Aqui, neste drama soturno, ele põe seus atores para falar sem parar, como se estivessem na mais pândega comédia.
Ficou chato. Ficou irritante.
Em geral, a gente sai dos filmes de Woody Allen alegre, leve, sorridente, às vezes alguns centímetros acima do solo. Com a sensação de que a vida é bela. Satisfeito por ter visto uma bela obra de arte.
Ao final deste Wonder Wheel, me senti deprimido, triste, acabrunhado.
Praticamente todo o filme foi de fato rodado em Coney Island
Algumas informações sobre o filme e sua produção, tiradas da página de trívia do IMDb, com um ou outro acréscimo meu:
* Roda Gigante estreou nos Estados Unidos no dia 1º de dezembro de 2017 – o dia em que Woody Allen completava 82 anos.
* A Roda Gigante da Coney Island ainda funciona em 2018.
* Foi a primeira vez que Kate Winslet trabalhou com Woody Allen. O nome dela chegou a ser cogitado quando Match Point (2005) estava em pré-produção, mas ela acabou não sendo contratada – as duas atrizes principais de Match Point foram a americana Scarlett Johansson e a inglesa Emily Mortimer.
* Foi o segundo filme consecutivo de Woody Allen com o diretor de fotografia Vittorio Storaro, após Café Society (2016).
* Com exceção das sequências no interior do apartamento de Ginny e Humpty, praticamente todo o filme foi rodado de fato em Coney Island. As fachadas de muitas das lojas e restaurantes existentes passaram por uma reforma para ganhar um visual dos anos 50.
* Estão no elenco três atores que trabalharam na série Família Soprano: Max Casella,Tony Sirico e Steve Schirripa. Todos eles fazem papéis pequenos.
“O filme é um Woody Allen desastroso”, definiu o site rogerebert.com
O site criado pelo grande Roger Ebert, rogerebert.com, é bastante duro com Wonder Wheel. Eis o início do texto assinado por Glenn Kenny:
“Como o filme foi muito bem recebido por um alarmante número de colegas quando passou no New York Film Festival, em setembro (de 2017), fiquei tentando pensar uma forma pela qual Wonder Wheel pode ser visto como bom. Inchado, reescrito de uma tal maneira que não consegue esconder sua aparência de rascunho, com os atores principais – com uma única exceção – exagerando nas atuações, o filme é um Woody Allen desastroso.”
Para concluir assim: “Acho que Wonder Wheel é uma confusão danada em que pastiches de Tennessee Williams e melodramas CinemaScope dos anos 50 são usados para brilhar como fogos de artifício mas só conseguem estourar como bombinhas fedorentas”.
É por aí mesmo.
Anotação em agosto de 2018
Roda Gigante/Wonder Wheel
De Woody Allen, EUA, 2017
Com Kate Winslet (Ginny), James Belushi (Humpty), Justin Timberlake (Mickey), Juno Temple (Carolina)
e Max Casella (Ryan), Jack Gore (Richie, o filho de Ginny), David Krumholtz (Jake), Tommy Nohilly (um amigo de Humpty), Tony Sirico (Angelo), Steven R. Schirripa (Nick), John Doumanian (garçom do Ruby’s)
Argumento e roteiro Woody Allen
Fotografia Vittorio Storaro
Montagem Alisa Lepselter
Casting Patricia Kerrigan CiCerto
Desenho de produção Santo Loquasto
Produção Amazon Studios, Gravier Productions,
Perdido Productions.
Cor, 101 min (1h41)
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