Expresso para Bordeaux, de 1972, foi o último dos poucos filmes de Jean-Pierre Melville, um realizador sui generis, autor de filmes personalíssimos, tido por muitos como um sujeito maluco, louco de pedra.
Pode-se detestar os filmes de Melville, pode-se amar os filmes de Melville – mas não dá para ficar indiferente a eles.
Maluco, obsessivo, independente, solitário, enigmático – esses adjetivos todos já foram usados a respeito de Jean-Pierre Grumbach (1917-1973), autor de apenas 13 filmes, lançados ao longo de 26 anos, entre 1946 e 1972.
Neste Expresso para Bordeaux, no original Un Flic, um tira, um policial, há uma sequência de um roubo de um carregamento de cocaína. A ação – os ladrões previram com antecedência, com cuidado, com esmero – iria durar 20 minutos.
O filme leva exatos 20 minutos mostrando o roubo.
Não há choque, luta, briga, tiroteio, nada disso. Tudo corre conforme havia sido meticulosamente planejado.
Durante uns 5 destes 20 minutos, o que vemos é um bandido se arrumando no banheiro.
Que outro cineasta, além deste louco Jean-Pierre Melville, mostraria um assalto em que não há choque, luta, briga, tiroteio, em tempo real – cada minuto da ação correspondendo a um minuto de filme?
Que outro cineasta, além de Melville, levaria 5 minutos mostrando um bandido se arrumando no banheiro?
Toda a ação dos ladrões é mostrada detalhadamente, detalhadissimamente
Verdade que não é o banheiro de uma casa – é o banheiro, bem apertado, de um trem. E o bandido chega ao trem de helicóptero.
É assim:
Simon (Richard Crenna), o chefe de uma pequena quadrilha, homem sofisticado, dono de uma elegante boate em Paris, fica sabendo que o traficante conhecido como Mathieu La Valise, receberá um carregamento de cocaína e irá transportá-lo em um trem, o trem do título brasileiro – que na verdade não é propriamente um expresso, e apenas passa por Bordeaux.
O filme mostra Mathieu La Valise recebendo o carregamento, que chega a ele numa mala bem grande. O traficante se instala confortavelmente numa cabine leito do trem que faz a rota Paris-Lisboa, passando por diversas cidades francesas, Bordeaux inclusive, e depois espanholas. Retira os diversos pacotes da droga e os acondiciona, cuidadosamente, no fundo falso – enorme – de duas maletas iguais, novinhas, bonitas.
E então descansa.
Simon e sua quadrilha sabiam de tudo, de todos os detalhes. Sabiam que aquela linha ferroviária tinha uma das mais antigas redes elétricas da França – e que, por isso mesmo, estava naquela ocasião sendo substituída por outra, novinha em folha. Naqueles dias, sem acesso à rede elétrica, o trem Paris-Lisboa estava fazendo o percurso entre Morcenx e Bordeaux puxado por uma velha locomotiva, que viajava a uma velocidade extremamente inferior à normal das locomotivas movidas a energia elétrica.
Era esse detalhe que facilitaria a ação da quadrilha de Simon.
Em um helicóptero, Simon e seus dois auxiliares, Paul Weber e Louis Costa (interpretados por Riccardo Cucciolla e Michael Conrad) passam a seguir o trem que naquele momento anda a menos de 60 km por hora.
O próprio Simon desce, preso a uma corda, até o trem.
Demora um tanto até conseguir abrir uma das portas de um dos vagões, o vagão específico em que está o traficante com a droga.
No vagão, entra no banheiro, tranca a porta. Está com gorro, um casaco e uma calça impermeável por fora, sobre outra roupa. Seu rosto ficou sujo na manobra toda até entrar no trem – e então ele lava o rosto, cuidadosamente, na pia do banheiro. Muito cuidadosamente.
Tira aquelas roupas que usava como sobretudos, guarda-as num compartimento que parece destinado ao lixo.
O ato de tirar as roupas não é fácil. É preciso destravar uns zípers. Simon parece ter sangue de barata – é calmo, cauteloso, cuidadoso. Não tem pressa – afinal, toda a sequência vai durar longos 20 minutos.
Retira os grandes tênis.
Por baixo daquela espécie de sobretudo, usava impecável robe de chambre que por sua vez recobria um imaculado pijama.
Não teve um filme de 007 em que James Bond-Sean Connery sai debaixo da água do mar, tira o traje de mergulhador e sob o traje de mergulhador traja um imaculado black-tie?
Pois então!
Simon retira dos bolsos do robe de chambre um também imaculado par de chinelos.
Falta pentear os cabelos.
Simon penteia-o muito cuidadosamente.
Há menos palavras neste filme inteiro do que em 3 minutos de um de Woody Allen
Seguramente haverá quem se irrite, e se irrite muito, ao ver esses longos 20 minutos de roubo de um carregamento de cocaína executado por um bandido elegante que desce de um helicóptero – e depois sobe para o helicóptero levando a cocaína.
Achei a sequência divertida. Estranha, sim. Peculiar. Sui generis. Coisa de Jean-Pierre Melville. Típica de Jean-Pierre Melville.
Janet Maslin, a ótima crítica do New York Times, evidentemente chamou a atenção de seus leitores para essa sequência. Ela também a descreveu – de forma, é claro, mais escorreita e mais elegante que a minha.
“Mr. Creena – escreve Janet Maslin – chega com um macacão e entra num banheiro para trocar de roupa. Nós o vemos pentear seu cabelo. Nós o vemos desamarrar um tênis, depois o outro. Nós o vemos tirar o macacão, embaixo do qual está usando pijama e um robe. Depois nós o observamos pentar seu cabelo de novo, e limpar o rosto também. Nada é deixado de lado. E no entanto o efeito é enervante, não entediante.” (Mr. Creena está na foto abaixo.)
Janet Maslin nota, é claro, um detalhe que é absolutamente fundamental, e que eu ainda não havia citado até aqui: a ausência de palavras, de diálogos.
Não ouvimos uma palavra, ao longo dos 20 minutos dessa sequência que é o clímax de Un Flic.
Poucas palavras é uma das características dos filmes de Jean-Pierre Melville. Os diálogos são poucos – e econômicos. Falam-se menos palavras, ao longo dos 98 minutos de Un Flic, do que em 3 minutos de um filme de Woody Allen.
O filme abre com longas tomadas de um carro negro numa cidade à beira-mar, com grandes prédios baixos, modernosos, na rua diante da praia. Venta demais, chove demais, a rua está coberta de névoa. É inverno bravo – veremos que é a antevéspera do Natal. Dentro do carro há quatro homens ali pela meia-idade, todos de terno, gravata e sobretudo. Veremos depois que são Simon e seus cúmplices.
O carro preto fica parado a uns cem metros de uma agência bancária – o único lugar que parece aberto naquele lugar, que tem um jeito de cidade fantasma do Velho Oeste.
O nome da cidadezinha à beira-mar será mencionado – é Saint-Jean-de-Monts, diante do Atlântico.
O espectador percebe, é claro, que aqueles homens vão assaltar o banco.
A sequência é longa, bem lona – não tanto quanto aquela do helicóptero e do trem, mas é bastante longa.
Vemos, com todos os detalhes, o assalto.
Se forem ditas três frases, é muito.
Quando parece que o assalto vai terminar, um dos funcionários do banco reage, há um tiroteio, um dos quatro homens, Marc Albouis (André Pousse), leva um tiro. Os assaltantes fogem tendo que deixar de lado um dos dois grandes sacos que haviam enchido de dinheiro.
Antes mesmo de levar Marc para ser atendido por algum médico, os bandidos param numa estrada deserta, cavam um buraco e enfiam ali as notas roubadas. Vão esperar algum tempo até voltar lá, desenterrar e usar a fortuna no preparativo de um novo grande roubo – o do carregamento de cocaína no trem Paris-Lisboa quando ele estiver passando na região de Bordeaux.
Uma loura belíssima é mulher do bandido e amante do policial
Pelo que falei até aqui, o nome do filme deveria ser Les Voleurs, os ladrões, e não Un Flic, um tira.
Le flic, o tira, aparece depois dessa longa sequência de abertura, que mostra o assalto a banco e depois os ladrões enterrando o butim. Ele mesmo conta para o espectador que seu nome é Édouard Coleman, comissário de polícia em Paris, e vem na pinta – e que pinta! – de Alain Delon.
Ao longo do filme, veremos várias tomadas em que o comissário Coleman está em seu carro, em campanhia do fiel escudeiro Morand (Paul Crauchet), fazendo a ronda pela Champs-Elysées e outras vias de regiões nobres de Paris. Acompanharemos o comissário em suas rondas, o veremos em ação resolvendo ora um caso de tentativa de roubo de um velho milionário (uma participação especial de Jean Desailly, que, oito anos antes, em 1964, havia feito o principal papel em Um Só Pecado/La Peau Douce, de François Truffau), ora o caso de três imigrantes ladrões pé de chinelo. Coisas desse tipo.
O comissário é um homem extremamente requisitado. A cada momento há uma ligação para ele, no telefone móvel que já havia nos carros dos comissários de polícia de Paris em 1972, duas décadas antes da popularização da telefonia celular. Ao longo do filme, o telefone do seu carro toca umas seis vezes, talvez mais – estão sempre requisitando a presença dele em algum local de crime.
Num momento de folga, entre essas rondas, o comissário entra numa boate, numa hora ainda sem movimento, antes da abertura ao público. Todos os funcionários o cumprimentam com gentileza, chamando-o de Monsieur Le Commissaire.
É mais que óbvio que o comissário é frequentador assíduo.
Muito à vontade, senta-se ao piano e toca ali alguma coisinha.
Uma mulher belíssima o observa de longe, sorrindo – Catherine Deneuve, aos 29 anos de idade, já uma das maiores estrelas do cinema mundial.
Seu personagem se chama Cathy. Ela não aparece muito na tela, infelizmente – está presente em, sei lá, umas seis ou sete sequências –, mas Cathy é uma peça fundamental do filme. Ela é a mulher de Simon, o dono daquela boate, o chefe da quadrilha de assaltantes. E é amante do comissário Coleman.
Cathy é o traço de ligação entre o comissário e o bandido.
Simon e o comissário se dão bem. Não dá para afirmar que são grandes amigos, mas se conhecem, se tratam com cordialidade. Numa cena, lá pelo meio do fim, os três juntos tomam um uísque na boite de Simon que Cathy ajuda a administrar.
É só quando o filme está com 38 minutos que o espectador fica sabendo que Cathy e o comissário são amantes. Os dois se encontram num quarto de hotel – aquele excesso absurdo de beleza, Catherine Deneuve e Alain Delon –, e fazem uma brincadeira, ele fingindo que chegou ali para prendê-la. Depois se beijam, e há um estranho diálogo. Cathy pergunta se ele não acha que Simon suspeita de alguma coisa. Coleman responde que Simon não suspeita – ele sabe. – “Desde quando?”, pergunta a mulher dos dois homens, o bandido e o policial. – “Desde sempre”, ele responde.
Não há evidência alguma de que o comissário seja corrupto – mas eu achei que é
Botei na cabeça que o comissário é corrupto, que fazia parte do grupo de Simon, ajudava a quadrilha, dava dicas, talvez alguma proteção.
Botei na cabeça, e não tirei mais – embora não haja evidência alguma disso no filme, absolutamente nada que comprove essa teoria. Nada, nadinda.
Eis o que diz o Guide des Films de Jean Tulard:
“No inverno, em Saint-Jean-de-Monts, estação balneária, um banco é atacado por um bando cujo cérebro, Simon, proprietário de uma boate parisiense, é muito ligado ao comissário Coleman. (…) Para sua última colaboração com Delon, Melville não inovou, permanecendo fiel a seu tema favorito: o filme noir, com policiais e malfeitores. Exercício de estilo brilhante que se expande por longos planos-seqüência mostrando uma ronda da noite em bairros quentes. O resto do filme fica muito complicado, com efeitos fáceis, como a sequência do trem e do helicóptero, filmada com uma trucagem trabalhosa. Catherine Deneuve realiza a performance de não pronunciar mais que três palavras durante todo o filme.”
Nessa última frase, o Guide comete um exagero. La Deneuve, lindérrima demais da conta, deve dizer umas cinco frases…
Leonard Maltin deu 2.5 estrelas para Dirty Money – o título do filme nos Estados Unidos: “Melodrama sem brilho sobre assalto a banco e tráfico de drogas. Delon e Crenna estão fortes, Deneuve e as paisagens são deslumbrantes.”
O filme só foi lançado nos Estados Unidos em 1979, sete anos depois de ser exibido na França e em diversos outros países. Quando começou a era do DVD, foi lançado no mercado americano com os dois títulos – Dirty Money e o original Un Flic. Como dá para ver pelas críticas de leitores do IMDb, acabou sendo cultuado por alguns cinéfilos americanos, como um que se assina Mister Whiplash. “Un Flic – ele escreve – é um filme de crime que vai um passo além do gênero assalto, um passo (menor) além na relação tira/assaltante, e mostra Melville em completo controle de sua forma de contar uma história.”
O leitor do IMDb termina assim suas longas considerações: “Em suma, não é uma obra-prima de filme de crime (o último de Melville antes de seu ataque cardíaco fatal), mas permanece fascinante 30 anos depois, com qualidades memoráveis.”
Quem conheceu Melville conta histórias fascinantes sobre ele
Un Flic é um dos seis filmes da caixa de 3 DVDs Filme Noir Francês, lançada em 2018 pela Versátil. A caixa traz um precioso documentário de 25 minutos com longos – e absolutamente francos – depoimentos de duas pessoas que participaram da produção do filme, duas pessoas de sobrenome estelar: Jean-François Delon e Florence Moncorgé-Gabin.
Jean-François, irmão de Alain Delon, trabalhou como o primeiro assistente de Melville na direção. Foi a primeira pessoa a ser chamada pelo realizador para participar da realização do filme. Florence Moncorgé-Gabin é filha de Jean Gabin, o monstro-sagrado do cinema francês.
As histórias que os dois contam sobre as filmagens e sobre o comportamento de Jean-Pierre Melville são fantásaticas, deliciosas.
Jean-François conta que, na primeira semana em que se apresentou para trabalhar na pré-produção do filme, Melville não quis saber de discutir planos, iniciar o planejamento, coisa alguma. Chamava Jean-François para ver grandes filmes noir americanos, na cabine de projeção do estúdio. Viram Homens em Fúria (1959), de Robert Wise, O Segredo das Jóias (1950), de John Huston, Um Clarão nas Trevas (1967), de Terence Young. “Depois de uma semana”, lembra Jean-François Delon, “eu sugeri que começássemos a preparar o filme”.
Florence conta que, na época da pré-produção de Un Flic, ela estava apenas começando a carreira como continuísta – scripte, se diz na França. Duvidava que seria aceita por Melville, mas apresentou-se a ele. Ele estava, dentro de sua sala, seu escritório, de óculos escuros e chapéu – duas de suas marcas registradas.
– “Acho que ele me escolheu porque tinha vontade trabalhar com Gabin”, ela conta, com uma sinceridade impressionante. – “Ele me disse: ‘O cinema francês tem poucos atores ótimos’. Citou Montand, Delon e Gabin, e disse que nunca tinha trabalhado com ele. Não citou Ventura, porque na época estava brigado com ele. (…) Lamentava nunca ter filmado com Gabin.”
Melville já havia dirigido Yves Montand e Alain Delon em O Círculo Vermelho (1970); Delon havia trabalhado com ele também em O Samurai (1967). Lino Ventura trabalhou com o diretor em Os Profissionais do Crime (1966);
Segundo conta Florence, Melville se divertia com o fato de que havia três técnicos trabalhando em Un Flic parentes de grandes nomes: ela mesma, Jean-Pierre Delon e ainda Pierre Tatischeff, filho do realizador Jacques Tati.
Melville costumava dar notas para os atores e técnicos, a cada final de dia de trabalho. Os premiados com a melhor nota ganhavam um papelzinho que dava direito a ver, ao lado do diretor, um filme americano, em geral um antigo, dos anos 40 ou 50.
A continuísta comentou com o pai famoso sobre o jeito de Melville de trabalhar. “O cara é um louco”, sentenciou Jean Gabin.
É. Jean-Pierre Melville não teria mesmo a honra de dirigir Jean Gabin.
Anotação em agosto de 2018
Expresso para Bordeaux/Un Flic
De Jean-Pierre Melville, França-Itália, 1972
Com Alain Delon (comissário Edouard Coleman) e
Richard Crenna (Simon), Catherine Deneuve (Cathy), Riccardo Cucciolla (Paul Weber), Michael Conrad (Louis Costa), Paul Crauchet (Morand), Simone Valère (a mulher de Paul), André Pousse (Marc Albouis), Léon Minisini (Mathieu la Valise), Jean Desailly (o senhor rico de quem tentaram roubar uma estátua), Valérie Wilson (Gaby), Henri Marteau (instrutor de tiro)
Argumento e roteiro Jean-Pierre Melville
Fotografia Walter Wottiz
Música Michel Colombier
Montagem Patricia Nény
Produção Michel Colombier, Euro International Film, Oceania Produzioni Internazionali Cinematografiche. DVD Versátil.
Cor, 98 cm (1h38)
**1/2 ou ***
Título nos EUA: Dirty Money. Em Portugal: Cai a Noite Sobre a Cidade.
Filme estranho, né Sergio?
Há mais momentos de irritação do que de emoção. Eu não conhecia esse diretor, mas como deixar de assistir um filme com Alain Delon e Catherine Deneuve?
Contei às vezes que Alain põe e repõe os óculos. Demais!
O que valeu foi sua crônica, com a qual aprendi alguma coisa sobre o amalucado regista. Abraço