A idéia básica a partir da qual se constrói este Sono Tornato, produção italiana de 2018, é ao mesmo tempo brilhante e apavorante: de repente, do nada, 72 anos depois de sua morte, Benito Mussolini aparece vivo numa praça num bairro de Roma.
Ressuscita tonto, zonzo. Veste farda. Pergunta para si mesmo onde está; pergunta onde está Clara – haverá várias referências a Clara Petacci ao longo do filme. Acha estranho não estar ouvindo o ruído dos tiros do inimigo.
Garotos que jogavam futebol ali perto vão dar uma espiada naquele sujeito estranho; um dos garotos é negro, o outro é descendente de orientais.
O Duce começa a andar pela cidade. Fica impressionado com a quantidade de negros que vê: – “Estou em Roma ou em Adis Abeba?”, se pergunta.
Vê uma senhora idosa, cabelinho branco, fala consigo mesmo que finalmente encontrou uma italiana. Aproxima-se dela, vai perguntar alguma coisa – ela, assustada, temendo que fosse um ladrão, joga spray de pimenta na cara dele e se afasta depressa.
Vai parar numa banca de revistas. Olha um jornal, vê a data – abril de 2017 – e desmaia.
É acudido pelos dois donos da banca. Quando volta a si, e começa a falar, os dois sujeitos morrem de rir dele: têm certeza de que é um ator que está se fazendo passar por Mussolini, e acham engraçadérrimo o jeito com que ele personifica a sério, bem a sério o personagem.
O ator que interpreta o ditador italiano que ressuscita em 2017 se chama Massimo Popolizio, e de fato está a cara de Mussolini. A semelhança física é muito, mas muito impressionante. É um genovês nascido em 1961, e tem quase 40 títulos na filmografia, inclusive o elogiadíssimo A Grande Beleza (2013), de Paolo Sorrentino, e, mais lá atrás, As Afinidades Eletivas (1996), dos irmãos Taviani.
Massimo Popolizio deve seguramente ter visto muitos cinejornais em que Mussolini aparece, e treinado bastante para imitar o jeito de falar, os gestos, as expressões do ditador.
As situações em que o ressuscitado Mussolini se mete são engraçadas, algumas absolutamente hilariantes. A intenção do realizador Luca Miniero de mostrar o ditador como uma figura ridícula, um palhaço, um boçal, é óbvia – mas a semelhança é tanta que até assusta. Os italianos bem mais idosos que virem o filme seguramente vão ficar apavorados.
O Mussolini redivivo se torna atração da TV italiana – e faz sucesso
Naquela praça do bairro romano de Esquilino em que o Duce reaparece, um jovem aspirante a diretor de cinema estava filmando os garotos que jogavam bola. Chama-se Andrea Canaletti (Frank Matano, na foto acima), é um bom sujeito – mas um pouco sonso, desajeitado, avoado, sonhador. Demora um pouquinho a cair a ficha, mas acaba tendo a idéia de sair pela Itália afora, no carrinho da irmã, com aquele ator louco que parece de fato ter incorporado o ditador, filmando tudo, as conversas dele com as pessoas do povo, o que dizem as pessoas sobre a política, os políticos, os problemas da Itália hoje, a corrupção, a imigração.
E o que Canaletti filma aparece no filme um pouco menor do que a tela, como se estivesse sendo visto na televisão. É uma bela sacada do diretor Luca Miniero – e os depoimentos das pessoas do povo, aquela coisa absolutamente italiana, são deliciosos, engraçados, espirituosos. Mas muitos dos entrevistados demonstram, desgraçadamente, racismo, xenofobia, e uma visão muito limitada da realidade que os cerca.
Nessas sequências, tudo funciona: o ritmo é ágil, os depoimentos – mesmo os que a rigor são dolorosos de se ver – são engraçados, o jeito de Benito Mussolini ouvir as pessoas é hilariante.
Canaletti vivia oferecendo idéias para o pessoal de uma emissora de TV, a My TV. Não é um contratado da casa, mas está sempre por ali – até paquera, desajeitadamente, uma bela secretária, Francesca (Eleonora Belcamino, na foto abaixo).
O chefão da My TV estava, naquele momento, nomeando diretora editorial a funcionária Katia Bellini (Stefania Rocca), uma moça que se mostra ambiciosa, carreirista, do tipo topa qualquer coisa por um aumento na audiência.
Canaletti pretendia vender seu documentário com o ator que se passava por Mussolini para a My TV. Mas acaba que Katia Bellini vê naquele ator uma boa possibilidade de dar audiência. E cria uma programa para ele.
Dá certo. Dá audiência – e de repente toda a Itália se mostra interessada naquele Benito Mussolini. As pessoas querem tirar selfies com ele nas ruas. Todo mundo achando, é claro, que era um ator. Todo mundo – com a única exceção de Benito Mussolini.
É necessário registrar: Francesca, a bela secretária da My TV, está na história não apenas para que haja um “female interest”, como se diz em Hollywood sobre a necessidade da presença de uma mulher em todos os filmes. Sim, ela está lá porque é sempre bom ter uma bela mulher e uma história de amor em um filme – mas também porque é através dela que surge a Nonna Lea, a avó com quem Francesca vive, e tem Alzheimer, não se lembra do que aconteceu 5 minutos atrás – mas, quando vê Benito Mussolini redivivo, cara a cara, se lembra perfeitamente quem é, e os crimes que cometeu, as milhares de mortes que ordenou e/ou permitiu.
É o momento mais emocionante – e terrivelmente pesado, triste, doloroso – desta sátira. A atriz Ariella Reggio (na foto abaixo), que interpreta a Nonna Lea, dá um show.
Sono Tornato é uma adaptação para a Itália de um livro e um filme alemães
É uma sátira mordaz, muitas vezes engraçadíssima, muitas vezes inquietante, apavorante. Neste nosso tempo em que o populismo de direita e a xenofobia assustam nos Estados Unidos, na Hungria, na própria Itália, em vários países europeus, e também no Brasil, é um grito de alerta.
A idéia original não tem a ver com a Itália. A idéia – e o desenvolvimento dela nessa história que apresentei resumidamente – são do alemão Timur Vermes, nascido em Nuremberg, em 1967. Em 2012 ele publicou seu primeiro romance, Er ist wieder da, traduzido para o inglês como Look Who’s Back, vejam quem voltou – uma sátira política em que Adolf Hitler acorda em 2011 num terreno baldio em Berlim.
O livro de Timur Vermes foi transformado em filme em 2015, com o mesmo título do livro, Er ist wieder da, no Brasil Ele Está de Volta, dirigido por David Wnend, com o ator Oliver Masucci no papel do ditador nazista,
O que o diretor italiano Luca Miniero fez foi adaptar a história do livro e do filme alemães para a realidade italiana. Ele mesmo escreveu o roteiro, juntamente com Nicola Guablionone.
Aparentemente, foi uma adaptação bastante fiel. O roteiro manteve até detalhes do original, como a senhora idosa que joga spray de pimenta no rosto do sujeito que se aproxima dela. O original alemão também tem uma emissora chamada My TV, e nela trabalha Katja Bellini (na versão italiana, Katia Bellini).
Naturalmente, eu não sabia nada disso quando vi Sono Tornato, que está na programação do canal Max. Vimos o nome, a sinopse, achamos a idéia muito boa, claro, e fomos atrás. Só depois de ver o filme foi que fiquei sabendo da existência do livro e do filme alemães.
“É dos italianos de hoje que se deve ter medo”, diz uma bela crítica de um italiano
Por pura sorte, encontrei um interessantíssimo texto sobre o filme no site Spettacolo.eu, assinado por Ivan Zingariello.
O olhinho, a linha fina, o destaque no alto do texto já impressiona: “Sono Tornato, de Luca Miniero, traz o Duce aos nossos dias para demonstrar que é dos italianos de hoje que se deve ter medo.” E acrescenta: “Grandissimo Masimo Popolizio”.
Ivan Zingariello destaca uma frase que Mussolini diz no filme: “Vocês eram um povo analfabeto; depois de 80 anos volto e reencontro um povo analfabeto.” E o crítico diz: “Essa é uma frase símbolo, e lamentavelmente verdadeira, que conduz a essência do filme de Luca Minieri. (…) Minieri, junto com o roteirista do momento, Nicola Guaglianone, se propõe um objetivo bem preciso: não julgar Mussolini, mas utilizá-lo como instrumento para mostrar o populismo, o racismo, as desilusões que invadem a Itália e os italianos destes nossos tempos.”
Mais adiante, Ivan Zingariello fala daquelas entrevistas com gente do povo, que citei acima, e afirma que elas revelam a verdadeira face dos italianos: “Um povo dominado pela ignorância, superficialidade, racismo, xenofobia e indiferença. Mussolini encarna perfeitamente o ‘lado escuro’, e este é o aspecto mais interessante (e trágico) desta espécie de investigação sociológica mascarada de comédia. De fato, depois da primeira meia hora as risadas vão se reduzindo progressivamente, com o aumento da nova popularidade do Duce, que corre o risco de ganhar um renovado consenso, porque, no fundo, aquilo que ele diz é o que muitos italianos pensam mas não têm a coragem de externar. Que mais se pode esperar de um povo que se indigna profundamente com um cãozinho morto, mas não diante de todas as mortes imputadas ao ditador?”
De fato, uma beleza de texto.
Sim, um belo filme. O espectador começa rindo e depois vai ficando apavorado.
Que mundo foi este que criamos, meu Deus.
Anotação em novembro de 2018
Estou de Volta/Sono Tornato
De Luca Miniero, Itália. 2018
Com Massimo Popolizio (Mussolini), Frank Matano (Andrea Canaletti)
e Stefania Rocca (Katia Bellini), Gioele Dix (Daniele Leonardi), Eleonora Belcamino (Francesca), Ariella Reggio (Nonna Lea), Massimo De Lorenzo (Giorgio), Giancarlo Ratti (Mario Capogrossi), Guglielmo Favilla (redator da TV), Luca Avagliano (Gianni), Daniela Airoldi (Laura), Piera Russo (Carla), Elena Staropoli (Dada), Marta Bulgherini (redator da TV), Danilo Sarappa (redator da TV)
Roteiro Nicola Guaglianone e Luca Miniero
Baseado no livro de Timur Vermes e no filme de David Wnend, Er ist wieder da
Fotografia Guido Michelotti
Música Pasquale Catalano
Montagem Valentina Mariani
Produção Indiana Production Company.
Cor, 100 min (1h40)
***
Por coincidência, assisti o “Ele está de volta” semana passada. Tive deja-vu lendo seu texto, rsrsrsrs.
Perfeito!
Apavorante, não consegui achar graça. O que vi nesse filme foi a realidade escancarada, a verdadeira face do ser humano que não tem a ver só com a Itália, mas com pessoas, tanto lá quanto aqui, são as mesmas, sanguinárias por excelência. Bolsonaro é aprendiz de Mussolini, de Hitler, e é apoiado por pessoas como as do filme que saudaram a passagem de Mussolini, quando passava de carro, acenando para todos. Não importa se era um sósia fazendo um tipo, mas era a figura, o que tinha por detrás daquela figura, que deveria ser considerado incômodo e causar repulsa. Foi o que senti.
Não Gema Galgani, chamar o Bozo de aprendiz de “Mussolini e Hitler” é uma ofensa a esses últimos dois por mais loucura que isso pareça ser. Bolsonaro é uma caricatura de milico que nunca fez nada na vida e se apropriou do termo nacionalismo. Getúlio e até os militares do regime militar devem se revirar no túmulo. O filme é bom porque expõe como a população de modo geral pode ser levada por um demagogo qualquer.. mesmo numa democracia liberal.
Olá, Bruno.
Obrigado por enviar sua opinião.
Concordo em gênero, número e grau com sua última frase!
E concordo em gênero, número e grau com tudo que disse a Gema…
Boa Páscoa!
Sérgio