O alemão de origem turca Fatih Akin e a alemã ariana Diane Kruger fizeram juntos um filmaço, uma maravilha de filme sobre racismo, ódio, terrorismo, os eventuais impasses do sistema judiciário e o desejo de vingança, a Lei do Talião, o olho por olho dente por dente,
Ele é um diretor talentoso, dos melhores em ação nestas duas primeiras décadas do século, e ela é uma atriz também de imenso talento, uma beleza impressionante e muito bom gosto na escolha de papéis. Neste Em Pedaços, em que reuniram seus talentos, parecem exceder, chegar aos píncaros, às alturas.
Como na maioria de seus filmes, Fatih Akin é também um dos autores do argumento e do roteiro – aqui, ao lado de Hark Bohm. É uma bela história – forte, dura, chocante –, e uma perfeição de roteiro. A narrativa é escorreita, límpida, clara. Às vezes beira a secura, o que obriga o espectador não apenas a se envolver emocionalmente com a história, com o drama pesado, mas a pensar sobre aquilo tudo, a raciocinar, avaliar, pesar as coisas.
E Diane Kruger, por sua vez, nos dá uma interpretação magnífica, extraordinária, das mais marcantes que vi nos últimos muitos anos.
A personagem dela, a protagonista da história, Katja, aparece no início na narrativa como uma mulher extremamente feliz. A mais terrível tragédia que pode haver se abate sobre ela quando o filme ainda está bem em seu início – e a partir daí Katja é uma pessoa literalmente em pedaços, despedaçada, desesperada, desesperançada.
Diane Kruger mostra a dor dessa Katja como quem mostra as vísceras.
É uma descomunal demonstração de talento. Um interpretação impressionante, marcante, apavorante.
Uma história mostrada em um introito e três atos bem marcados
Fatih Akin e Hark Bohm estruturam o filme como uma narrativa em três atos, bem marcados, antecedidos por um intróito. A rigor, relatar o que acontece a partir da metade do primeiro ato é spoiler, e vou reiterar isso quando o texto chegar lá.
Como na grande maioria dos filmes atuais, Em Pedaços não tem créditos iniciais – apenas a apresentação dos nomes das companhias produtoras. A primeira sequência mostra um rapaz moreno, bem vestido, com um belo paletó imaculadamente branco, caminhando pelos corredores do que obviamente é uma prisão. Enquanto ele caminha, acompanhado de guardas, os presos o saúdam com grande alegria.
A câmara é de mão, um tanto trêmula. Ouvimos “My Girl”, aquela musiquinha romântica dos anos 60, com The Temptations.
O espectador pode perfeitamente achar que aquele rapaz está sendo solto naquele momento. Não, não está: está sendo levado a um salão da prisão em que será celebrado seu casamento civil com uma linda e loura jovem – linda, mas com grandes tatuagens.
Ele se chama Nuri Sekerci (o papel de Numan Acar, que trabalho na série Homeland), e, como o diretor Fatih Akin, é um alemão descendente de turcos. Vai demorar um pouco para o espectador ficar sabendo por que ele está preso, qual o crime cometeu.
Ela se chama Katja Jessem – e, como Diane Kruger, que a interpreta, é alemã da gema, para racista alemão nenhum reclamar. Mas, como ela passará a ser Katja Sekerci, eles reclamarão. Num diálogo amedrontador, quase ao final, ela será chamada de “a turca”.
Corta, longo fade out, vemos na tela o letreiro “I – A Família”, e agora Katja está com seu filho de uns 6 ou 7 anos, Rocco (Rafael Santana), um menino bonito, inteligente, esperto. Katja está levando Rocco para o escritório de Nuri, que funciona no térreo de um prédio, como se fosse uma loja. Vai deixar o garoto com o pai naquela tarde, para sair com sua grande amiga Birgit (Samia Muriel Chancrin). Irá com o carro da família – voltará no começo da noite para pegar o marido e o filho para irem juntos para casa.
Essa sequência é rápida, mas, feita com talento e precisão, demonstra cabalmente para o espectador que aquela é uma família feliz: marido e mulher se amam, se dão bem, se tratam de forma extremamente afetuosa, e os dois adoram o filho, que é um garoto simpático, inteligente, legal.
A câmara mostra Katja saindo do escritório. Na calçada, logo que ela sai, há uma bicicleta estacionada; Katja fala com a moça que acaba de deixar a bicicleta ali: – “Melhor você botar a trava, para evitar que roubem”. A moça responde que não vai demorar nada – e Katja atravessa a rua até o carro da família estacionado do outro lado da rua.
Durante alguns poucos minutos, acompanhamos Katja e sua amiga Birgit.
Quando Katja chega para buscar o marido e o filho, a rua do escritório de Nuri está interditada, há faixas impedindo a passagem, muitos policiais, movimentação de bombeiros. Uma bomba havia explodido, duas pessoas haviam morrido – um homem e um menino. Nuri e Rocco.
A vida de Katja foi despedaçada. Estamos com uns 15 minutos de um filme que dura 106.
Atenção: que não viu ainda o filme não deve continuar a ler este texto
Informações sobre o que acontece a partir daqui são, a rigor, spoilers, eu insisto.
Não vou relatar em detalhes o que virá na história, mas gostaria de fazer algumas considerações – e de fato não tem sentido alguém que não viu ainda este filme belo, pavoroso e importante, continuar lendo este texto.
O primeiro dos três atos do filme ocupa cerca de metade dos 106 minutos de duração
Esse primeiro ato da história ainda leva um bom tempo. Não marquei exatamente, mas creio que a primeira parte ocupa mais ou menos a metade do filme.
Um comissário de polícia pede, desde a primeira noite, a noite do atentado, a ajuda de Katja para ajudar na investigação. Apesar de toda a dor, ela se lembra de falar para o policial sobre a moça que deixou a bicicleta bem em frente ao escritório de Nuri. E se lembra de ter visto um bagageiro na bicicleta – um lugar perfeito para carregar uma bomba.
O comissário faz, é claro, muitas perguntas sobre as atividades de Nuri. É aí que o espectador fica sabendo que ele havia sido preso por tráfico de droga. Katja conta ao policial que conheceu o futuro marido ao comprar maconha, na época em que fazia faculdade. Segundo ela, Nuri estudou Administração enquanto esteve preso; ao sair, montou aquele escritório, que fazia tradução de alemão para turco e vice-versa, e ajudava pessoas da comunidade turca ali em Hamburgo em todas as suas necessidades.
Não, ele não havia voltado a traficar drogas, ela garante. Ele não mexeu mais com nada ilegal.
O comissário não acredita muito nela. Acha que Nuri pode ter mantido contatos com o mundo do crime, sem contar para a esposa. Acha que ele foi vítima de algum tipo de vingança da máfia turca, ou da máfia curda.
Katja diz para o comissário, com absoluta firmeza: – “Aquela mulher que deixou a bicicleta era tão alemã quanto eu”.
Está segura que foi um crime de racistas, de nazistas.
Quzno o crime é hediondo demais dá para defender o olho por olho dente por dente?
A segunda parte do filme, o segundo ato, que começa, como já foi dito, ali pela metade dos 106 minutos de duração, chama-se “Justiça”.
Acho um absurdo, mas as sinopses do filme, mesmo as mais curtas, revelam muito do que acontece na segunda metade. Só falo disso, e transcrevo exemplos aqui, porque já foi avisado claramente que haveria spoilers.
No IMDb, a sinopse é esta: “A vida de Katja se desmorona após a morte de seu marido e seu filho num ataque a bomba. Depois de um tempo de luto e injustiça, Katja procura vingança”.
A sinopse no site official do filme (https://www.inthefadefilm.com/) tem apenas oito linhas, mas entrega bastante da história nas suas duas últimas frases: “Katja luta muito para aguentar o julgamento dos dois suspeitos: um jovem casal neonazista. O julgamento leva Katja ao limite e simplesmente não há alternativa para ela: ela deseja justiça.”
Quando começou o terceiro ato, “O Mar” – que é bem mais curto que os dois primeiros –, Mary comentou que viria então a parte problemática, a coisa da vingança, da justiça com as próprias mãos. Respondi que Fatih Akin jamais faria um filme defendendo a Lei do Talião, o olho por olho dente por dente.
Essa é uma questão moral importantíssima, fundamental.
É defensável, pode ser defensável – em algumas ocasiões muito especiais, como nessa história de Katja –a Lei do Talião?
Quando o crime é absurdo demais, hediondo demais, é possível abrir uma exceção no princípio básico de que a Lei do Talião só leva a mais ódio, mais ira, mais guerra?
Quando a Justiça eventualmente falha – não por absoluto erro, descaso, desídia, mas por alguma tecnicalidade, por algum motivo previsto nas leis, em defesa da presunção de inocência até prova contundente de culpa – é possível abrir uma exceção e justificar a vingança com as próprias mãos?
Quem se entrega à vingança se consomo no mesmo fogo de ódio do assassino
Me lembrei muito de outro belo filme que trata também desses mesmos temas e é do mesmo ano deste Em Pedaços: em Três Anúncios para um Crime/Three Billboards Outside Ebbing, Missouri, uma mãe não se conforma com o fato de que a polícia não conseguiu, em sete meses, prender sequer um suspeito de ter estuprado e matado sua filha adolescente.
Da mesma maneira que esta Katja interpretada brilhantemente por Diane Kruger, aquela Mildred interpretada também soberbamente por Frances McDormand é consumida pelo desejo de vingança.
Claro, óbvio, cada caso é um caso. O estupro e assassinato de uma jovem adolescente é um crime hediondo, sem dúvida alguma – mas talvez não possa haver absolutamente nada mais hediondo do que colocar uma bomba cheia de pregos para matar diversas pessoas simplesmente pelo fato de elas serem imigrantes ou filhas de imigrantes.
De novo, dúvida, questionamento, pergunta: é o caso de se discutir grau de crime hediondo? Há crime hediondo mais hediondo que outros? Há um grau de horror que permita, que desculpe, que justifique o olho por olho dente por dente?
Assim como Três Anúncios para um Crime, este Em Pedaços vai a fundo na discussão dessas questões. E, assim como o filme do inglês Martin McDonagh, esta belíssima co-produção Alemanha-França de Fatih Akin demonstra que quem se entrega totalmente ao desejo de vingança se consome no mesmo fogo de ódio que os assassinos de quem pretende se vingar.
O filme recebeu 14 prêmios, inclusive o Globo de Ouro
Aus dem Nicht venceu o Globo de Ouro de melhor filme estrangeiro. Foi um de seus 14 prêmios, fora outras 17 indicações. O filme participou da mostra competitiva do Festival de Cannes, e Diane Kruger ganhou lá o prêmio de melhor atriz.
Sobre o título: Aus dem Nicht é uma expressão que significa “do nada” – algo que veio do nada. Sem explicação, sem lógica, sem aviso prévio. Do nada.
Os exibidores mundo afora se dividiram muito na hora de titular Aus dem Nicht em seus idiomas.
Em inglês, o filme teve o título de In the Fade – no escuro, na sombra, na penumbra. Os distribuidores espanhóis foram nessa mesma idéia: En la Sombra. Os brasileiros foram por um caminho completamente diferente, mas que faz todo sentido: Em Pedaços é um título bastante apropriado para o filme: descreve com perfeição o estado em que Katja é deixada com o crime brutal. Desta vez, foram os distribuidores portugueses que fizeram besteira: lá o filme teve o título de Uma Mulher Não Chora. Ridículo.
Fatih Akin se inspirou em fatos reais para criar a história
Quando o filme termina, e antes dos créditos finais, há um letreiro com esta informação:
“Entre 2000 e 2007, a NSU atirou em nove imigrantes e em uma policial, além de executar ataques a bomba. O motivo dos ataques foi a origem não germânica das vitimas.”
NSU é a sigla em alemão de um dos grupos neonazistas que atuam no país – literalmente, Clandestinidade Nacional-Socialista.
Em entrevista, Fatih Akin contou que, no julgamento de uma acusada de ataques a pessoas de origem turca, Beate Zschäpe, ficou claro que a polícia primeiro suspeitou que os crimes eram de autoria de turcos ligados ao tráfico de drogas. Só mais tarde foi necessário que a polícia admitisse, diante de novas provas, que os criminosos eram neonazistas.
Foi a partir daí que nasceu a idéia de se fazer este filme.
O realizador foi a Munique assistir a algumas audiências do julgamento de Beate Zschäpe. “Eu queria ver que tipo de mulher era ela. Os assassinos do filme, embora sejam mais jovens, são inspirados nela: uma mulher que não fala, que só se comunica com a corte através da escrita.”
Fatih Akin pediu cópia do processo – “cerca de 5 mil páginas!”, diz ele.
(A neonazista Beate Zschäpe viria a ser condenada à prisão perpétua por um tribunal de Munique em julho de 2018, por participar do assassinato de oito turcos ou de origem turca, um grego e uma policial alemã. Estava com 43 anos.)
O cineasta contou que conhece alguns traficantes. “Conheço um que se casou na prisão. Aquela cena do casamento me permitiu dizer muitas coisas de uma forma muito compacta.”
Cuidadoso com detalhes, Fatih Akin pediu a Diane Kruger que não usasse maquilagem alguma nas sequências que se passam nos primeiros meses após a morte do marido e do filho de Katja. Recomendou também ao diretor de fotografia Rainer Klausmann que utilizasse os recursos de iluminação para “amplificar a lourice de Diane”. Uma alemã absolutamente loura, absolutamente ariana.
Diane Kruger, por sua vez, contou que conheceu Fatih Akin pessoalmente durante o Festival de Cannes de 2012. Os dois são da mesma geração – ele é de 1973, ela, de 1976 –, mas até então não haviam se encontrado. “Cinco anos depois, ele entrou em contato comigo, através de uma de suas produtoras, e veio me visitar em Paris. Me falou de Katja, a protagonista, e das hesitações que ele ainda tinha: será que eu gostaria de encarnar esse personagem que é a própria negação do glamour?”
A alemã da gema respondeu ao alemão turco que estava muito interessada.
Ainda bem. Juntos, fizeram um grande filme. Não é – como não poderia deixar de ser – um filme a favor da Lei do Talião. É um filme contra todo tipo de racismo.
Anotação em junho de 2018
Em Pedaços/Aus dem Nichts
De Fatih Akin, Alemanha-França, 2017
Com Diane Kruger (Katja Sekerci)
e Denis Moschitto Danilo Fava (o amigo e advogado), Numan Acar (Nuri Sekerci, o marido), Samia Muriel Chancrin (Birgit, a amiga), Rafael Santana (Rocco Sekerci, o filho), Johannes Krisch (Haberbeck, o advogado de defesa), Ulrich Brandhoff (André Möller, o réu), Hanna Hilsdorf (Edda Möller, a ré), Ulrich Tukur (Jürgen Möller, o pai de André), Yannis Economides (Nikolas Makaris, o grego dono do hotel),
Hartmut Loth (Vorsitzender Richter, o juiz presidente)
Argumento e roteiro Fatih Akin e Hark Bohm
Fotografia Rainer Klausmann
Música Josh Homme
Montagem Andrew Bird
Produção Bombero Internationalm Corazón International, Macassar Productions, Pathé, Warner Bros.
Cor, 106 min (1h46)
***1/2
Título em inglês: In the Fade. Na Espanha: En la Sombra. Em Portugal: Uma Mulher Não Chora.
Vi ontem no HBO. Graças aos deuses ainda se encontram pérolas destas.
Gostei muito apesar de não ser nada agradável de ver, antes pelo contrário.
Katja de facto consome-se no seu ódio que a levará à destruição dos assassinos e dela própria.
O fim do filme é excelente, não poderia ser melhor.
Digo isto apesar do crítico de serviço do jornal Público escrever meia dúzia de linhas mais ou menos depreciativas.
Em relação às críticas deste jornal (são as únicas que leio) tomei há muito tempo esta atitude: se são muito elogiosas fico logo desconfiado, penso logo que deve ser um filme a puxar ao intelectual e se são negativas penso que terei de saber mais pois pode ser um bom filme.