Mestre Andrzej Wajda, um dos maiores cineastas de todos os tempos, encerrou sua longa, gloriosa carreira com mais uma obra-prima. Afterimage, de 2016, é mais um poderoso documento sobre a Grande História como vista da Polônia, mais uma séria, pesada, profunda denúncia contra os totalitarismos – e mais uma grande obra de arte.
Assim como Katyn, de 2007 – que narra um dos episódios mais absurdos da Segunda Guerra, o massacre de cerca de 12 mil oficiais poloneses pela União Soviética –, Wajda recria fatos reais. Um pouco como em Cinzas e Diamantes, de 1958, mostra o início da transformação da Polônia em país satélite da URSS do ditador Stálin.
Afterimage é a reconstituição dos últimos anos da vida de Wladyslaw Strzeminski, que é considerado um dos maiores nomes do vanguardismo e o artista plástico polonês mais importante do século XX – e que o regime comunista sufocou de todas as formas possíveis e imagináveis.
Strzeminski nasceu em 1893 em Minsk, então Bielorrússia, e morreu em Lodz, em 1952. O filme focaliza o período final de sua vida, os quatro últimos e pavorosos anos.
Na Polônia do final dos anos 40, uma alegria juvenil como a do flower power
O roteiro (escrito por Andrzej Mularczyk, a partir de uma idéia de Wajda) foi elaborado de tal forma que, logo de cara, nos primeiros 10, 12 minutos, o filme já diz a que veio, já apresenta para o espectador toda a base da história que virá a seguir, já define a equação que vai demonstrar.
É assim como uma passagem bem rápida do céu para o inferno.
Na Polônia como um todo – sabe-se – não foi assim. O país não teve respiro: mal acabou de se livrar dos invasores nazistas, chegaram as tropas do Exército Vermelho de Stálin e o comunismo.
Mas para Strzeminski – é o que o filme mostra – foi uma passagem direta do céu para o inferno.
A primeira sequência é no campo, provavelmente durante o verão: num belo lugar, uma região montanhosa, junto de um terreno em aclive, alguns jovens pintores trabalham diante de seus cavaletes. Um casal se beija. Uma moça chega até os dois, identifica-se como Hania (Zofia Wichlacz) e pergunta pelo professor Strzeminski. O rapaz aponta para uma figura bem lá no alto – um homem sem uma perna e sem um braço, apoiado em muletas – e diz que ele já a viu lá do alto, e virá até ela.
Hanna pergunta como. Sim, como ele conseguirá descer todo aquele aclive?
O rapaz responde que ela verá – e ela e o espectador vêm como: o professor Wladyslaw Strzeminski coloca as muletas junto do corpo, deita-se, e vem rolando lá de cima até o local em que estão o casal e Hanna.
Assim que ele inicia a peripécia, vários outros jovens – alunos dele, obviamente – também se jogam no chão para rolarem morro abaixo, rindo, dando gargalhadas.
É uma explosão de alegria, uma coisa juvenil-libertária – algo que faz lembrar o flower power que invadiria o mundo duas décadas mais tarde.
O professor Strzeminski (interpretado, maravilhosamente, por Boguslaw Linda) pára aos pés de Hanna, pergunta se ela pode ajudar um velho aleijado a se levantar.
Já de pé, apresenta-se para a moça e diz: – “Seja bem-vinda à Escola de Belas Artes ao Ar Livre de Lodz”.
Na primeira sequência, Wajda já começa a definir quem é o protagonista
Os alunos que estavam espalhados ali pelo campo neste momento reúnem-se em torno do seu mestre. É visível a admiração e o respeito de todos por ele.
E ele recita para a recém-chegada – e para os espectadores do filme – o resumo de uma das teorias que desenvolveu, que seria depois publicada em livro e teria influência grande no universo das artes plásticas. É a teoria da afterimage – a palavra escolhida para ser o título do filme nos países de língua inglesa e diversos outros, inclusive o Brasil:
– “A imagem deve ser o que você absorve daquilo (olha para um lado) ou daquilo (olha para outro lado). Ao olhar para um objeto ficamos com o reflexo dele no olho. Quando desviamos o olhar e paramos de olhar para ele, a afterimage, a imagem residual, permanece no olho, com a forma do objeto, mas com a cor oposta. Essa afterimage, a imagem residual, são as cores do interior do olho que olhou para um objeto. Na verdade, nós só vemos coisas das quais nós temos consciência.”
Essa é a primeira sequência do filme – visualmente bela, num lugar aprazível, cheio de jovens bonitos, gente sorridente, feliz. Em poucos minutos, Wajda já define algumas características básicas de Strzeminski e de sua vida naquele momento: é um homem alegre, cheio de vida – apesar de ter perdido um braço e uma perna –, e é adorado pelos alunos.
Rapidamente, o filme informará ao espectador que Wladyslaw Strzeminski havia sido um dos fundadores da Escola de Belas Artes de Lodz e do Museu de Arte Moderna de Lodz, o primeiro museu dedicado à arte moderna da Polônia e o segundo em toda a Europa. Havia trabalhado ao lado de alguns dos maiores nomes das artes plásticas da primeira metade do século XX, como Kandinsky e Chagall.
O vermelho da propaganda comunista acaba com a luz do pintor
A segunda sequência deste Afterimage é simplesmente brilhante.
Strzeminski está na sala ampla de seu apartamento, começando a pintar um quadro. A sala é bastante iluminada, a grande janela está aberta, entra a luz do sol.
De repente, o ambiente fica todo avermelhado.
Uma tomada da janela mostra que um pano vermelho cobriu a janela do lado de fora.
Uma tomada externa do prédio de apartamentos mostra que um cartaz gigantesco, de, sei lá, uns 50 metros de comprimento, com a figura de Stálin no meio, com as beiradas de vermelho vivo, foi colocada na frente do edifício. Na rua, há uma parada militar, e de alto-falantes sai uma voz de locutor falando das conquistas que serão obtidas pelas massas graças à ação do Partido dos Trabalhadores Poloneses Unidos – o nome do partido comunista polonês.
Strzeminski vai até a janela de sua sala e, com a ponta de uma das muletas, rasga o imenso cartaz stalinista.
É preso imediatamente.
A prisão não dura muito, e o veterano artista volta a dar aula na Escola de Belas Artes que ajudou a fundar.
Não se passaram nem 15 minutos do filme e o ministro da Cultura vai visitar a Escola de Belas Artes. Lá, diante dos alunos e professores, Strzeminski inclusive, claro, faz o seguinte discurso:
– “A nação tem o direito de fazer reinvindicações aos artistas. Uma delas é exigir que as camadas mais profundas de uma obra de arte, que seu objetivo, suas intenções, atendam às necessidades do povo, sem levantar dúvidas, quando ele precisa de incentivo para acreditar na vitória. Não se pode enaltecer a depressão quando o povo quer viver e trabalhar. As próximas etapas da ofensiva do Partido nos círculos artísticos têm como base as seguintes exigências: realismo socialista nas artes; luta contra o cosmopolitismo e servidão à cultura ocidental; a utilização das obras dos artistas soviéticos e seus laços com as massas. O Partido vai defender o realismo socialista mesmo ciente de que ele poderá causar o esquematismo – o que não será um problema. Temos que nos revoltar contra a arte formalista e cínica, sem ideologia. Contra a decadente arte capitalista e contra o cosmopolitismo americano. Por isso repito em alto e bom som: a arte que proclama a falta de ideologia é inimiga do trabalhador.”
O filme que começou alegre, primaveril, vai se tornando cada vez mais duro, sombrio
O discurso é chocante, apavorante.
Qualquer pessoa de bem estremece de pavor diante dessa enxurrada demente de ódio à liberdade. Imagine-se um artista que tinha, a princípio, apoiado a Revolução, com seus ideais libertários, de luta contra a injustiça, a opressão – e depois, quando o regime demonstrou-se cada vez mais totalitário, ditadorial, sanguinário, liberticida, dedicou-se exatamente à arte que o stalinismo agora combatia.
A partir do momento daquele discurso do ministro da Cultura, e da reação de Strzeminski a ele, o Estado Totalitário começa a esmagar o homem e sua arte.
Stálin mandava tirar das fotos oficiais os antigos companheiros que caíam em desgraça. São famosos os exemplos de fotos em que ele aparecia ao lado de Trotski e que foram retocadas para que o ex-líder do Partido desaparecesse.
O filme de Andrzej Wajda mostra como a ditadura stalinista instalada na Polônia fez com Wladyslaw Strzeminski o que a União Soviética fez com as fotos de Trotski. Foi apertando o cerco a ele, cada vez mais – e destruindo a sua obra.
Um trabalho sujo, nojento, de uma ditadura apagando uma vida e a arte que o homem criou.
O filme – que começa com aquela sequência alegre, juvenil, primaveril – vai ficando cada vez mais duro, pesado, trágico.
É extremamente difícil resistir ao choro.
Strzeminski sofre demais, demais, demais – e também Nika, sua filha
A escultora Katarzyna Kobro, que foi mulher de Strzeminski, não aparece no filme. Quando a ação começa, em 1948, os dois já haviam se se separado – e foi uma separação duríssima, pelo que o filme mostra. Eles não se falavam nunca, apesar de terem tido uma filha, Nika (interpretada, muitíssimo bem, por Bronislawa Zamachowska). Adolescente aí de uns 13, 14 anos em 1948, ela visitava o pai com frequência e demonstrava grande afeto por ele – ao contrário de Strzeminski, que estava sempre frio e distante durante as visitas da filha.
Já estamos para lá da metade do filme quando Nika é chamada na escola com o aviso de que a mãe está gravemente doente. A rápida sequência do enterro de Katarzyna Kobro, num cemitério tomado pela neve, é impressionante: duas mulheres passam pelo cortejo e uma delas comenta: – “No enterro da mãe, com casaco vermelho!” A garota ouve a frase idiota e reage chocada; – “É o único que eu tenho!”
Wladyslaw Strzeminski sofre demais, demais, demais, à medida em que a ditadura polonesa vai tirando dele todas as possibilidades de trabalhar para garantir o sustento – er o sofrimento da garota Nika também é chocante. Alguns dias depois de ter perdido a mãe, ela chega em casa da escola – e na casa há um desconhecido, um oficial do Exército. Ela pergunta o que ele está fazendo ali e o ele diz que o governo deu a casa para ele. Ela que vá morar com o pai.
Quando chega à casa do pai e conta o que aconteceu, Strzeminski pergunta quando a mãe dela morreu. Ela diz que foi há três dias, ele pergunta porque não foi avisado, e Nika responde que sua mãe não queria a presença do ex-marido no seu enterro.
O ódio ao comunismo, a ligação com as artes e com Lodz – tudo liga Wajda a Strzeminski
É absolutamente natural que Wajda tenha querido filmar a história dos anos finais da vida de Wladyslaw Strzeminski e a forma brutal com que o regime comunista o esmagou. O cineasta jamais escondeu seu profundo desprezo pelo regime totalitário que se abateu sobre seu país após o fim da Segunda Guerra – e a história de Strzeminski é emblemática dos males da ditadura.
Mas seguramente há dois outros motivos que atrairam o grande cineasta. Em primeiro lugar, Wajda foi um estudante de artes plásticas na Cracóvia. E há o fato de que a vida de Strzeminski esteve tão umbilicalmente ligada à cidade de Lodz. Wajda foi aluno da Escola de Cinema de Lodz, a mais famosa e respeitada escola de cinema que funcionou nos países comunistas europeus, por onde passaram todos os grandes nomes poloneses do cinema, como Roman Polanski, Krzysztof Kieslowski, Jerzy Skolimovsky.
Afterimage foi o filme indicado pela Polônia para a corrida pelo Oscar de melhor filme estrangeiro, mas não ficou entre os escolhidos pela Academia. A estréia mundial foi no Festival Internacional do Filme de Toronto, no dia 10 de setembro de 2016. Menos de um mês depois, em 6 de outubro, Andrzej Wajda morreu, aos 90 anos muito bem vividos.
Anotação em março de 2018
Afterimage/Powidoki
De Andrzej Wajda, Polônia, 2016.
Com Boguslaw Linda (Wladyslaw Strzeminski)
e Bronislawa Zamachowska (Nika Strzeminska), Zofia Wichlacz (Hania), Krzysztof Pieczynski (Julian Przybos), Mariusz Bonaszewski (Madejski), Szymon Bobrowski (Wlodzimierz Sokorski), Aleksander Fabisiak (Rajner), Paulina Galazka (Wasinska), Irena Melcer (Jadzia), Tomasz Chodorowski (Tomek), Filip Gurlacz (Konrad), Mateusz Rusin (Stefan), Mateusz Rzezniczak (Mateusz), Tomasz Wlosok (Roman), Adrian Zaremba (Wojtek)
Roteiro Andrzej Mularczyk, a partir de idéia de Andrzej Wajda
Fotografia Pawel Edelman
Música Andrzej Panufnik
Montagem Grazyna Gradon
Casting Ewa Brodzka
Produção Akson Studio, EC1 Lódz – Miasto Kultury, NINA, Narodowy Instytut Audiowizualny
Cor, 98 min (1h38)
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Título na França: Les Fleurs Bleues.
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