A Face de um Anjo (2014), do incansável realizador inglês Michael Winterbottom, trata de um crime real: o assassinato, a facadas e por asfixia, de uma jovem e bela estudante inglesa na Itália, em 2007. Mas não pretende, de forma alguma, reconstituir o crime, mostrar como aconteceu, quem matou. Passa longe, muito longe disso.
Em vez de tentar reconstituir os fatos reais, A Face de um Anjo conta a história – fictícia, ao que tudo indica – de um documentarista experiente, respeitado no meio cinematográfico, que é contratado para fazer um filme sobre o caso.
A fim de se preparar para escrever o roteiro do seu filme, o documentarista – ele se chama Thomas Lang, e e interpretado pelo ótimo alemão-espanhol Daniel Brühl – viaja até a Itália. Em Roma, fica conhecendo pessoalmente a jornalista americana Simone Ford (o papel da belíssima Kate Beckinsale), radicada há 15 anos na Itália, que cobriu o crime desde o início, acompanhou todo o julgamento dos acusados e escreveu um livro sobre o caso, The Face of an Angel – exatamente o nome do filme de Michael Winterbottom, uma co-produção Inglaterra-Itália-Espanha-EUA.
O crime, repito, havia acontecido em 2007. A viagem do diretor Thomas Lang à Itália, em 2009, coincide com o julgamento da apelação dos dois réus que, em um primeiro júri, haviam sido condenados pela morte da estudante inglesa Elizabeth Pryce (que aparece em vários flashbacks, interpretada por Sai Bennett). A principal acusada era Jessica Fuller, jovem estudante americana que dividia com a vítima um apartamento em Sienna, perto do centro medieval da cidade que atrai universitários e turistas do mundo inteiro. Junto com Jessica havia sido acusado – e condenado – seu namorado, o italiano Carlo Elias. (Eles são representados por Genevieve Gaunt e Ranieri Menicori).
Há jornalistas de diversos países, e o caso virou um grande circo
O diretor Thomas e a jornalista Simone e viajam juntos no carro dela para assistir ao julgamento da apelação dos condenados. Enquanto ela vai contando a ele sobre o caso, vamos vendo os fatos que ela descreve na tela – assim o espectador vai conhecendo os personagens centrais da trágica história, Elizabeth, Jessica, Carlo.
O casal acusado e condenado no primeiro julgamento vai aparecer ao longo de todo o filme.
O julgamento da apelação dos réus condenados se transforma, na prática, em um novo julgamento, em que se repetem as acusações e as defesas todas que já haviam sido apresentadas no primeiro, dois anos antes. Dura vários dias.
Simone apresenta Thomas a diversos jornalistas estrangeiros que estão em Siena para cobrir esse segundo julgamento. Thomas – assim como o espectador – vai tomando contato com o imenso circo que é a cobertura jornalística de um caso de assassinato que se tornou notícia mundial – afinal, uma jovem e bela americana havia sido assassinada supostamente por uma jovem e bela inglesa e seu namorado italiano numa das cidades mais charmosas da Toscana, e portanto do mundo.
É um danado de um circo.
A maioria dos jornalistas aposta em que Jessica e Carlo são mesmo os culpados – e formaram para o mundo uma imagem da jovem americana como uma mulher de vida sexual escandalosa, dada a usar drogas, ao mesmo tempo em que Elizabeth, a vítima, foi transformada em uma pessoa maravilhosa, simples, recatada, estudiosa.
Mas há quem, ao contrário, acredite piamente na inocência de Jessica. Nesse grupo está a correspondente de uma emissora de TV americana, que tem bancado a viagem dos pais da acusada dos Estados Unidos para Siena e a hospedagem deles lá.
E há também aqueles – como o blogueiro italiano Edoardo (Valerio Mastandrea), que Simone conhece muito bem – que apostam que a polícia italiana fez um péssimo trabalho, e não há prova alguma de que Jessica e Carlo sejam os assassinos.
No circo da imprensa vale tudo. Ao final do primeiro dia do segundo julgamento, a própria Simone é entrevista por um colega de TV para dar sua opinião de expert, já que afinal de contas é autora do livro que conta a história do caso até então. Simone não se faz de rogada, e comenta que Jessica veio mais preparada, com uma roupa mais recatada, o cabelo mais bem tratado, e com um italiano muito melhor do que no primeiro julgamento.
É fundamental para o cineasta conseguir fazer um bom filme sobre o caso
O roteiro de A Face de um Anjo – escrito por Paul Viragh – vai fundo no mundo do personagem central, o diretor de cinema Thomas Lang. Ficamos sabendo que ele tem uma filhinha que adora, Bea (Ava Acres), apelido vindo do nome Beatrice – com a pronúncia italiana, Beatriche, assim como a musa de Dante Alighieri em A Divina Comédia. O nome foi escolhido por causa da admiração de Thomas pelo grande poeta italiano – e também porque a garota, como o documentarista conta para a jornalista Simone logo na primeira vez em que se vêem pessoalmente, foi concebida na Itália.
Naquele primeiro encontro, Simone conta que tem marido e dois filhos. Bem mais tarde, revelará para Thomas que está separada do marido. Já ele conta de cara para ela que está separado da mãe de Bea.
Veremos, ao longo do filme, que Thomas parece ainda muito apaixonado pela ex-mulher, Katherine (Rosie Fellner), uma bem sucedida atriz de Hollywood. Ela se casou de novo, com um sujeito chamado Timothy, que Thomas detesta. Ele chegou a brigar com Katherine na Justiça pela guarda de Bea.
Também é dito, quase en passant – o espectador menos atento poderá sequer perceber –, que o último filme realizado por Thomas, quatro anos antes da época em que se passa a ação, foi um fracasso. Depois houve um projeto para ele filmar uma história envolvendo o FBI, mas não foi para frente.
Realizar esse novo filme sobre o caso de assassinato que despertou a curiosidade do mundo todo é o grande desafio da carreira de Thomas. Dá para o espectador compreender isso perfeitamente.
O roteiro não foi escrito, e os produtores já pensam nos possíveis atores
Quando estamos com uns 20 minutos de filme, vemos uma reunião de trabalho de Thomas com a equipe de produtores americanos do filme a ser feito com base no caso das jovens Elizabeth e Jessica. São quatro pessoas, dois homens, duas mulheres: Steve (Alistair Petrie), Adam (Nathan Stewart-Jarrett), Caroline (Lucy Cohu), Hannah (Sophie Rundle).
Todos perguntam como Thomas está vendo a história toda, o que tem observado em sua viagem a Siena – mas, enquanto ele vai tentando dizer algo, as pessoas do grupo já estão pulando etapas e pensando nos nomes das atrizes para os principais papéis do filme. Adam fala em Carey Mulligan para uma das duas jovens estudantes.
Àquela altura dos acontecimentos, Thomas está pensando em angular o filme pelo mundo dos correspondentes estrangeiros reunidos em Siena para acompanhar o julgamento de Jessica e Carlo. Ele diz ao grupo de produtores que paretende dar importância, no roteiro que vai escrever, para a jornalista Simone, uma mulher inteligente, atraente.
O grupo já começa a pensar em nomes para o papel de Simone. São citadas Naomi Watts e Chloë Sevigny.
O cineasta conclui que nunca se saberá quem matou a garota
Quando o filme está com 55 minutos, e muita água já se passou embaixo das pontes – inclusive um caso entre Thomas e Simone, que já se prenunciava desde o início –, há uma nova reunião entre Thomas e aquele mesmo grupo de produtores.
O diálogo que acontece nessa reunião é, para mim, o âmago do filme de Michael Winterbottom. O cerne, o fulcro da questão.
Ainda não terminou o segundo julgamento; já se passaram vários dias, mas ainda não houve o veredito do tribunal.
Caroline, mulher bonita (a atriz Lucy Cohu é fascinante), pergunta se Thomas acha que os réus, Jessica e Carlo, vão ganhar, vão ser absolvidos, e Thomas responde que não tem a menor idéia.
Caroline comenta que deve estar sendo difícil para Thomas escrever o roteiro do filme sem saber como o julgamento vai acabar, sem saber se, afinal, os acusados são mesmo os assassinos ou não.
Thomas responde: – “Acho que isso não importa no filme. Imagino que no final a polícia poderá chegar à verdade. Mas na minha opinião é impossível saber. As evidências são tão contraditórias que não saberemos nunca quem matou Elizabeth. Se eles a mataram, não faz sentido algum. Se eles não a mataram, também não faz sentido algum. O que importa é saber se queremos ver essas pessoas presas por 20 anos.”
O grupo – os quatro produtores e Thomas – está almoçando em um belo restaurante. Depois dessa afirmação de Thomas, há um rápido silêncio. Dá para perceber o mal estar que pousou sobre a mesa.
Caroline: – “Mas no filme teremos que decidir se eles mataram ou não, como foi que aconteceu.”
Thomas: – “Não é essa a história. A história é que não existe real verdade e justiça absoluta. (O julgamento) é como um concurso de popularidade.”
Caroline: – “Isso não é um filme.”
Thomas: – “Eu acho que pode ser.”
Caroline: – “Teríamos que mostrar quem são aquelas garotas, como era o relacionamento delas, o que aconteceu naquela noite.”
Thomas: – “Mas isso seria falso! Seria a minha visão, o que eu imaginei que teria acontecido. É mais honesto dizer que eu não sei.”
No meio do processo todo, o cineasta se perde completamente
Depois desse diálogo impressionante, Thomas vai ficar cada vez mais mergulhado em dúvidas sobre a história das duas moças, sobre o que vai ser seu filme, cada vez mais enfeitiçado pela idéia de se afastar do relato do crime e aproximar a história de Elisabeth e Jessica da Divina Comédia de Dante.
Misturam-se a tudo isso uma saudade forte que sente da filhinha, com quem tenta conversar sempre via computador, o mal estar que sente com a filha viver com um sujeito de quem ele não gosta, a tristeza pelo fim do caso não inteiramente resolvido com a ex-mulher, a atração que sente pela bela Simone Ford…
Acho que a rigor não chega a ser spoiler se eu disser que ele vai se perder totalmente, para depois começar a se encontrar de novo – em boa parte devido ao surgimento de um outro anjo, uma garotinha de 21 anos, chamada Melanie – interpretada por uma moça que tem de fato a face de um anjo, Cara Delevingne (nas duas fotos abaixo).
Além deste aqui, foram feitos mais cinco filmes sobre a história real
A Face de um Anjo, como já foi dito, é de 2014. Chegou a ser apresentado no Festival do Rio, em outubro de 2014, segundo o IMDb, mas, aparentemente, não teve lançamento comercial aqui. Na Inglaterra chegou aos cinemas em março de 2015, e nos Estados Unidos, em junho daquele ano.
Àquela altura, já haviam sido feitos 3 outros filmes sobre a história real do assassinato de uma jovem estudante inglesa na Itália. Este aqui foi o quarto, e em 2016 sairia mais um, o quinto.
Dois dos outros quatro filmes são documentários: Amanda Knox Trial: 5 Key Questions é de 2013 e Amanda Knox é de 2016. Os outros dois, pelo que dá para perceber, fazem exatamente aquilo que Thomas, o personagem fictício deste A Face de um Anjo, queria evitar: tentam contar como foi o assassinato da estudante inglesa Meredith Kercher, e se sua colega e amiga Amanda Knox, que dividia o apartamento com ela, foi ou não a assassina. O primeiro deles foi feito em 2011 – Amanda Knox: Julgamento na Itália; o segundo, em 2014 – The Murder of Meredith Kercher.
As indicações são de que o roteiro deste A Face de um Anjo procurou ser fiel à realidade quando mostra os acontecimentos envolvendo as duas garotas estrangeiras que passavam uma temporada de estudos na Itália, as condições em que foi encontrado o corpo da vítima, como se deu o primeiro julgamento, como se deu o segundo.
Mas, ao contrário dos quatro outros filmes sobre o caso real, neste aqui os nomes das personagens centrais foram trocados. Até mesmo a cidade em que se deu o crime foi trocada: o crime ocorreu em Perugia, na Úmbria, em 1º de novembro de 2007; o filme transportou a ação para Siena, na Toscana, região vizinha da Úmbria. A data do crime real foi mantida no filme.
O IMDb, o site mais enciclopédico sobre filmes que existe, diz que o roteiro é de Paul Viragh, “baseado no livro de Barbie Latza Nadeau”.
Não é o que dizem os créditos finais. Lá está escrito o seguinte: “A personagem ‘Simone Ford’ é baseada em Barbie Latza Nadeau, autora do livro Angel Face”.
O livro Angel Face, que de fato foi escrito pela jornalista americana Barbie Latza Nadeau, virou, no filme, The Face of an Angel. A jornalista Barbie Latza Nadeau virou Simone Ford. Amanda Knox no filme é Jessica Fuller, e Meredith Kercher é Elizabeth Price.
Os acusados foram julgados diversas vezes, e acabaram inocentados
Muito provavelmente, essas mudanças foram feitas para deixar absolutamente claro que o filme não pretendia ser a reconstituição fiel dos fatos, e sim era uma ficção criada a partir dos eventos reais.
Ficção – mas inspirada na história real. Ao final dos créditos aparece o letreiro: “Em memória de Meredith Kercher (1985-2007)”.
Apenas 21 anos! Meredith Kercher foi assassinada a facadas e por asfixia quando tinha apenas 21 anos de idade.
No primeiro julgamento pelo assassinato, Amanda Knox e seu namorado italiano Raffaele Sollecito foram condenados. A defesa apelou, foi realizado um segundo julgamento – como este filme aqui mostra –, e o casal foi absolvido.
No entanto, em 2013, a Suprema Corte da Itália considerou nulo veredito do segundo julgamento. Realizou-se então um novo julgamento para atender à apelação da defesa, dessa vez em Florença – e nesse os dois réus foram condenados!
O caso voltou à Suprema Corte e, em março de 2015, a condenação de Amanda Knox e Raffaele Sollecito foi anulada. A Suprema Corte invocou uma cláusula de código legal que fala em “dúvida razoável” – e determinou que não haja novos julgamentos sobre o caso.
Os acusados foram, assim, inocentados.
É bem possível que sejam feitos novos filmes sobre a terrível história da americana e da inglesa que se conheceram numa milenar cidade italiana.
Certo mesmo, ao que tudo indica, estava o diretor de cinema Thomas Lang, criado pelo roteirista Paul Viragh e vivido por Daniel Brühl neste filme do sempre competente Michael Winterbottom. “As evidências são tão contraditórias que não saberemos nunca quem matou Elizabeth. Se eles a mataram, não faz sentido algum. Se eles não a mataram, também não faz sentido algum.”
Anotação em fevereiro de 2018
A Face de um Anjo/The Face of an Angel
De Michael Winterbottom, Inglaterra-Itália-Espanha-EUA, 2014
Com Daniel Brühl (Thomas Lang), Kate Beckinsale (Simone Ford), Cara Delevingne (Melanie), Ava Acres (Bea, Beatrice, a filha de Thomas), Valerio Mastandrea (Edoardo), Genevieve Gaunt (Jessica Fuller, a acusada), Sai Bennett (Elizabeth Pryce, a vítima), Ranieri Menicori (Carlo Elias, o namorado de Jessica), Andrea Tidona (Alberto Baldini), Corrado Invernizzi (Francesco), Roberta Cartocci (Maria Argento), Sara Stewart (Sarah), Rufus Wright (William), Nathan Stewart-Jarrett (Adam), Lucy Cohu (Caroline), Sophie Rundle (Hannah), Alistair Petrie (Steve), Nikki Amuka-Bird (Roxanna), Rosie Fellner (Katherine, a ex-mulher de Thomas)
Roteiro Paul Viragh
Fotografia Hubert Taczanowski
Música Harry Escott
Montagem Marc Richardson
Casting Jina Jay, Annamaria Sambucco, Mary Vernieu
Produção BBC Films, Cattleya, Hornil Brothers Productions, Multitrade, Revolution Films, Vedette Finance, Ypsilon Films.
Cor, 101 min (1h41)
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