É forçoso admitir: O Congresso Futurista, no original só The Congress, é um filme peculiar. Original, sem paralelo. E profundamente inquietante, perturbador.
Tem elementos de ficção científica, de fantasia; é um drama denso, tenso.
Discute metafísica. Discute a cultura de massas, a sociedade de consumo, o poder das grandes corporações, as gigantescas mudanças que estão para acontecer com a humanidade devido ao desenvolvimento tecnológico.
Na metade de filme, há algo absolutamente surpreendente. Não dá para deixar de falar nessa característica, e vou falar dela já no parágrafo seguinte. Mas é de fato algo tão completamente impactante, espantoso, inesperado, que é preciso dar o aviso: quem ainda não viu o filme e tem interesse em vê-lo deveria parar de ler este texto agora mesmo.
Spoiler. Aqui já se revela uma característica surpreendente do filme
Lá pela metade, o filme vira uma animação – os personagens entram numa realidade paralela em que todos vivem num mundo de desenho animado.
É muito provavelmente o primeiro filme de animação que discute metafísica.
Passa-se num futuro próximo, bem próximo, em que os atores de cinema já não atuam mais: são inteiramente escaneados – eles, seus corpos, seus movimentos, suas expressões, seus sentimentos – e os estúdios passam a fazer filmes usando as imagens digitalizadas dos atores.
É difícil ver uma co-produção que envolva tamanho número de países: The Congress é uma produção Israel-Alemanha-Polônia-Luxemburgo-Bélgica-França.
O diretor é o israelense Ari Folman, o realizador do belo, fortíssimo, tristíssimo Valsa com Bashir (2008), uma animação sobre a invasão do Líbano por forças israelenses em 1982. Como é uma obra de Ari Folman, está cheia de referências ao nazismo, ao Holocausto.
Os atores principais são americanos, e supõe-se que a história se passe nos Estados Unidos, especificamente em Los Angeles, já que o tema são os estúdios de cinema. Grandes atores: Robin Wright, Harvey Keitel, Danny Huston, Paul Giamatti. E Jon Hamm, o Don Draper da série Mad Men, empresta a voz a um personagem de animação.
A personagem principal da história se chama Robin Wright, exatamente como a atriz que a interpreta. Algo que, por si só, é absolutamente incomum.
Mais ainda: além do nome, a personagem tem algumas características da atriz. Assim como a atriz, a Robin Wright personagem trabalhou nos filmes A Princesa Prometida, Forrest Gump, A Promessa. Esses filmes são citados em diálogos; no estúdio, há um grande cartaz de A Princesa Prometida.
O estúdio se chama Miramount. Um jogo de palavras mais do que óbvio com o nome Paramount, e, de que quebra, a Miramax.
Abre com um diálogo duríssimo entre uma atriz e seu agente
Já começa em tom maior. A abertura é impactante, poderosa. Close-up no rosto lindo de Robin Wright – ela acaba de chorar, há lágrimas que acabaram de cair de seus olhos. A câmara ficará mostrando o rosto de Robin Wright em close-up durante mais de um minuto, um minuto e meio, enquanto ela vai tentando se recompor do choro – mas faz um pequeno, suave zoom para trás, passa a mostrar também o pescoço dela, e não mais apenas e tão somente o rosto.
Durante toda a duração dessa primeira tomada do filme, ouvimos uma voz masculina, uma voz personalíssima, facilmente identificável – a de Harvey Keitel.
– “Robin! Olhe para mim, Robin.”
Robin Wright estava olhando bem para frente, para a câmara. Ela então vira os olhos um tantinho para a esquerda dela, para se fixar no personagem que o espectador ainda não viu, e que continua falando:
– “Há quanto tempo estamos nisso? Vinte e quatro anos? Vinte e cinco? Sempre estive ao seu lado, sempre, em qualquer situação. Todas as suas escolhas, todos os seus medos, todos os seus momentos de ansiedade – eu estive sempre a seu lado. Todas as coisas irracionais, sempre quando as filmagens estavam para começar. ‘Me faça o favor, Al, me tire desta, me tire desta outra, me ajude a sair fora desta sem prejudicar minha reputação. Aaron precisa de mim em casa.’ Mas Aaron era só uma desculpa.”
O rosto de Robin Wright agora já está bem recomposto. Ela enxugou as lágrimas, não está mais com expressão de quem acabou de chorar. Olha firme para o homem que está falando com crueza coisas que ela seguramente não gostaria de estar ouvindo.
– “Escolhas ruins. Escolhas ruins. Esta é a história de sua vida, Robin, escolhas ruins. Filmes ruins, homens ruins, amigos em que você não pode confiar. (…) E você tinha tudo, Robin. Estrela de cinema aos 24 anos. Todos os grandes estúdios rastejando por você.”
Só nesse momento há o primeiro corte do filme. Na segunda tomada de O Congresso Futurístico, vemos então Al-Harvey Keitel sentado diante de uma mesa na casa de Robin.
– “Talvez eu tenha sido muito brando com você, que é o que todos dizem. Talvez tenha sido. Mas você era apenas uma criança. E você tinha medo. Mas foi você que fez as escolhas. E você fechou todas as portas que estavam abertas diante de você, destruiu todos os sonhos. E agora…
Al faz uma pausa, e toma um gole do uísque caubói que tem num copo baixo diante de si.
Ouvimos pela primeira a voz de Robin Wright interpretando Robin Wright:
– “Agora o que, Albert? O que eles ofereceram?”
– “Não tenho idéia do que eles estão oferecendo. Gostaria de saber. Me ligaram hoje de manhã, gritaram comigo durante 20 minutos, dizendo como estão fartos de nós, e aí disseram que têm uma oferta – a oferta final. Que essa seria a última. E que a oferta não ficaria na mesa por muito tempo.”
– “O que você acha que é?”
– “Como eu vou saber? Agora, de uma coisa eu sei. Não vão nos chamar de novo. (E, depois de uma pausa, mostrando-se magoado, ofendido: ) Nunca tinham falado comigo daquele jeito. Nunca.”
O filho mais novo é inteligente, mas tem uma doença irreversível
Nesse momento, a filha mais velha de Robin, Sarah (Sami Gayle), pede desculpas e interrompe a conversa. Robin pergunta o que houve, Sarah diz que é o de sempre: ligaram da segurança do aeroporto, sobre Aaron.
Sarah tem aí talvez uns 13, 14 anos. Aaron, o caçula (interpretado por Kodi Smit-McPhee), de uns 8 anos, estava naquele momento soltando um papagaio – em formato de um avião de duas asas – junto do aeroporto. A casa dos Wright fica afastada da cidade, bem grudada no aeroporto. O papagaio de papel de Aaron – o leitor percebe logo – já havia incomodado a segurança outras vezes.
Aaron é o grande motivo das preocupações de Robin. Por ele ela já havia abandonado papéis, e mais de uma vez, conforme o espectador já soube pelo que Albert dizia. É um garoto problemático. Parece ter uma inteligência prodigiosa – é absolutamente apaixonado por tudo que diz respeito a aviões, aviação, e conhece bastante sobre o assunto. Mas é um tanto alheio ao que acontece a seu redor, não se interessa muito pelos aspectos práticos da vida – e tem uma doença rara, irreversível, que deverá privá-lo completamente da audição em alguns anos.
Esse diagnóstico é dado pelo médico que cuida dele, o dr. Barker (o papel de Paul Giamatti, na foto abaixo).
O chefão do estúdio é o papel de Danny Huston, com a cara de mau dele
Dias depois daquela conversa que abre a narrativa, Albert visita novamente a casa de Robin, dessa vez acompanhado de um jovem advogado, um especialista nos contratos dessa coisa que os estúdios vinham fazendo nos últimos meses, a coisa de escanear completamente os atores para a partir daí usar as imagens digitais deles, e não mais as pessoas.
E depois vão, os três – Robin, Albert e o advogado –, ao encontro do chefão do Miramount, Jeff Green.
O chefão do estúdio é representado por Danny Huston. Uma figura, Danny Huston, neto do grande ator Walter Huston, filho do diretor John, irmã de Anjelica, tio do jovem Jack. Parece ter se especializado em fazer papel de bandido, ou mau caráter.
Com aquela cara de maus bofes que Danny Huston desenvolveu, Jeff Green diz para Robin Wright:
– “Nós da Miramount queremos escanear você. Você inteira: seu corpo, sua face, sua emoção, sua risada, suas lágrimas, seu orgasmo, sua felicidade, suas depressões, seus medos, suas saudades. Queremos samplear você, queremos preservar você, queremos… tudo, tudo, tudo dessa coisa chamada Robin Wright.”
E Robin pergunta: – “O que vocês vão fazer com essa… essa coisa que vocês chamam de Robin Wright?”
– “Nós vamos fazer todas as coisas que a sua Robin Wright não faria.”
E então Robin Wright, o filme e o espectador entram num cartoon
Algum tempo depois, há um corte no tempo. Um letreiro informa que se passaram 20 anos. Robin Wright, já então com cerca de 65 anos, está indo de carro para uma localidade em que vai se realizar o tal Congresso Futurístico de que fala o título brasileiro – um grande evento patrocinado pela Miramount, agora parte de um grande conglomerado multinacional com capital japonês, a Miramount-Nagasaski, ou coisa parecida.
Robin Wright dirige seu carro por uma estrada no meio de um deserto – algo como os desertos da Califórnia e do vizinho Nevada. No meio do nada há um posto de segurança. Depois que a viajante se identifica, o guarda a avisa que toda a área em que acontecerá o Congresso Futurístico é uma animação.
Robin Wright, o filme The Congress e o espectador entram então numa animação, um cartoon.
Não exatamente como se fôssemos o pobre detetive Eddie Valiant entrando na Toontown de Uma Cilada para Roger Rabbit (1988) – e sim como se fôssemos aqueles intelectuais que adoram um papo-cabeça e caminham pelas centenárias paisagem do Monte Saint-Michel discutindo a respeito do estado do mundo de Ponto de Mutação/Mindwalk (1990).
O filme é uma adaptação bem livre de um romance de Stanislaw Lem
O roteiro de The Congress é do diretor Ari Folman, a partir do livro Futurlogical Congress de Stanislaw Lem. Stanislaw Lem (1921-2006) é um judeu polonês com formação em Física que escreveu livros de ficção científica, crimes e filosofia. Baseia-se em um dos livros de Lem o famosérrimo Solaris, que o diretor russo Andrei Tarkovsky lançou em 1972 (e foi refeito por Steven Soderbergh, com George Clooney, em 2002).
Esta definição sobre a obra do escritor, feita pela Wikipédia, me parece que dá bem a medida do que trata este O Congresso Futurista:
“Os trabalhos de Lem exploram temas filosóficos através de especulações sobre a tecnologia, a natureza da inteligência, a impossibilidade de comunicação e entendimento entre as pessoas, o desespero diante das limitações humanas, o lugar da humanidade no universo. Esses temas são apresentados em obras de ficção e também em forma de ensaios ou livros filosóficos.”
O roteiro é uma adaptação bastante livre do romance, pelo que dá para perceber por informações que estão no IMDb e em outras fontes. O fato de a personagem central ser uma atriz de cinema foi uma invenção do roteirista e diretor. Mas diversos pontos fundamentais da trama são idênticos aos da história original de Stanislaw Lem.
O português Jorge Mourinha abre assim seu excelente texto sobre o filme, no site do jornal Público:
“Depois de Valsa com Bashir, Ari Folman regressa com um novo OVNI, inclassificável e desorientador, ancorado por uma interpretação notável de Robin Wright.
“Pela sua própria natureza, Valsa com Bashir (2008) era um objecto ‘fora’, um OVNI – um ‘documentário animado’ onde o israelita Ari Folman expiava, de modo catártico, a sua experiência no exército judeu durante os massacres de Sabra e Chatila. Mas, mesmo OVNI, ainda se conformava a uma narrativa mais ou menos tradicional e estruturada. O Congresso, o regresso de Folman à longa-metragem cinco anos depois, num registo completamente diferente, estica as fronteiras do que é ser um OVNI – ou devolve-as ao que elas eram há 40 anos, paredes-meias com o radicalismo contra-cultural do psicadelismo dos anos 1960 e 1970. Mas, por trás dessas alucinações lisérgicas, entre o Submarino Amarelo que George Duning criou para os Beatles em 1968 e O Homem Duplo de Philip K. Dick que Richard Linklater animou aqui há uns anos, reside uma meditação sobre o mundo moderno e uma profecia desconfortável sobre um possível futuro alienado.”
Perfeito. A ligação com o ácido lisérgico, a contracultura dos anos 60 é perfeita. Enquanto víamos o filme, Mary e eu comentamos que o ácido que o autor tomou era dos melhores que já houve.
Um filme muito, muito doidão.
Doidão, mas muito bom. Doidão e muito bom.
Anotação em fevereiro de 2017
O Congresso Futurista/The Congress
De Ari Folman, Israel-Alemanha-Polônia-Luxemburgo-Bélgica-França, 2014.
Com Robin Wright (Robin Wright), Harvey Keitel (Albert), Jon Hamm (a voz de Dylan Truliner), Kodi Smit-McPhee (Aaron Wright), Sami Gayle (Sarah Wright), Danny Huston (Jeff Green), Michael Stahl-David (Steve),
Paul Giamatti (Dr. Barker)
Roteiro Ari Folman
Baseado no livro de Stanislaw Lem
Fotografia Michal Englert
Música Max Richter
Montagem Nili Feller
Produção Bridgit Folman Film Gang, Pandora Filmproduktion, Opus Film, Paul Thiltges Distributions, Entre Chien et Loup, Liverpool.
Cor, 122 min
***
Fui direto olhar a ficha técnica e estava lá: baseado no livro de Stanislaw Lem. Sei que o romance saiu em português, mas ainda não adquiri pra ler. Os outros dois de Lem que tive o prazer de ler – Solaris e A Voz do Mestre – são inusitados, diferente de tudo que eu já lera ou sabia sobre o gênero “ficção cientifica”, do qual nunca fui fã. Mas Stanislaw Lem é outra coisa.
Depois fui ler a resenha e vi que você menciona Lem. O filme deve ser bom!
Oi, Carla!
Muito obrigado pelo comentário.
Bem, eu, ao contrário de você, sempre gostei de ficção científica. Bem, pelo
menos desde os 18 anos, quando conheci a coleção Argonautas, publicada em
Portugal, com os grandes clássicos de Isaac Asimov, Arthur C. Clarke,
Clifford D. Simak…
Você vai gostar muito do filme. Está no Now.
Um abraço.
Sérgio
Não acredito que agora, mais de cinco anos após seu lançamento, não havia ainda um comentário aqui.
Assisti Valsa com Bashir e não me encantei. Talvez deva assistir de novo, porque a julgar agora por O Congresso Futurista, devo ter perdido a precisão do olhar e entendimento. Ou talvez fosse outra proposta.
O Congresso Futurista, é para ser assistido e aplaudido de pé. E assistido de novo, pois é enriquecedor rever essa obra de arte .
Sugiro a professores universitários, principalmente de Artes, Psicologia e Letras.
Desculpe, quis dizer que só havia um comentário aqui, quando deveria haver muitos mais.