Para um espectador mediano, comum, seguramente deve ter sido um absoluto choque. Para os críticos, e os cinéfilos apaixonados por filmes não convencionais, que alguns chamam “de arte”, gente apaixonada pelas obras de Fellini, Antonioni, Buñuel, Godard, Resnais, Kurosawa, Bergman, foi uma maravilha, um encanto.
Eu sei, porque o adolescente Sérgio Vaz gostava de filmes do cinemão comercial, mas também adorava os cineastas citados aí, e então se deslumbrou com Mickey One, que Arthur Penn realizou em 1965. Viu duas vezes em seguida, uma no dia 5 e a outra no dia 8 de janeiro de 1967, como mostra seu segundo caderno de cinema, e deu ao filme a cotação máxima, que era então de 5 estrelas.
Revisto hoje, Mickey One é um filme interessante, fascinante mesmo, por ser a expressão perfeita de sua época, do contexto em que foi feito. Arthur Penn sempre foi um realizador que demonstrava influência do cinema europeu, autoral, e este aqui é o mais abertamente, mais escancaradamente europeu de todos os seus filmes.
Me pareceu, na revisão agora, muito, mas muito do Fellini de Oito e Meio (1963) – imagens oníricas, surreais, tipos estranhos, esquisitos, close-ups de rostos escolhidos de propósito por serem feios, distantes do “normal” –, com pitadas fortes do Alain Resnais de O Ano Passado em Marienbad (1961) – narrativa quebrada, quebradiça, ida e volta no tempo, mistura de visão objetiva com a subjetiva do protagonista, mistura de lembrança com pesadelo.
A insistência nas peripécias formais, nos efeitos visuais e sonoros, na montagem que realça o distanciamento do realismo, nos maneirismos dos atores, tudo isso acaba tornando até difícil para o espectador acompanhar a história.
Bem, isso é o que me pareceu agora, quando, o ex-jovem vanguardeiro agora é um velho que aprecia o clássico – e, como sou velho, não tenho vergonha ou pudor de dizer o que sinto, mesmo que contrarie as normas do bom gosto elegante.
O filme escancara a miséria dos desvalidos, os esquecidos pelo sonho americano
O protagonista da história, que mais tarde será rebatizado de Mickey One, é um artista, uma mistura de comediante de stand-up com showman. Um cruzamento de Lenny Bruce antes de ficar chato com Sammy Davis Jr.
Ele não apenas escreve suas piadas como as conta de modo extremamente charmoso – e senta-se ao piano, toca bem e canta bem.
E é bonito pra cacete. Afinal de contas, vem na pele de Warren Beatty, aos 26, 27 anos de idade.
Faz um tremendo sucesso em sua cidade, Detroit. E sabe aproveitar a vida. Tem um caso com uma moça linda (Donna Michelle, creio), frequenta bons lugares, tem um carrão, bebe muito, gosta de jogo, gasta muito…
E aí – não estamos nem com dez minutos de filme – cai em desgraça junto aos chefões do crime organizado de Detroit.
Ele não fica sabendo exatamente qual foi seu crime. O espectador, muitíssimo menos. Ficou devendo muito dinheiro? Acumulou dívidas altas demais? Comeu uma moça que era protegida de um mafioso?
Jamais saberemos. O fato é que então ele foge de Detroit, queima todos os seus documentos, tenta apagar os vestígios de sua existência. Em Chicago, onde vai parar depois de perambular pelo país, pega o cartão de seguridade social de um homem que foi assaltado e morto por um bando de lúmpens, miseráveis, sem-teto, os desvalidos, os abandonados pelo sonho americano.
Oferece-se numa agência de emprego, vai trabalhar num restaurante como lixeiro. O homem do restaurante lê o nome que está no cartão de seguridade social, um nome polonês, impossível de se pronunciar para qualquer mortal que não seja polonês – e aí rebatiza nosso herói com o nome de Mickey One.
Mickey One trabalha duro carregando lixo no restaurante. Dorme entre as latas de lixo.
Arthur Penn, intelectual de esquerda, mostra o lado pesadelo do sonho americano com uma virulência poucas vezes vista. São imagens fortíssimas, apavorantes, chocantes – e de uma beleza plástica para a qual Henri-Cartier Bresson e Robert Doisneau tirariam o chapéu.
Não é à toa. Penn escolheu para fotografar seu filme ninguém menos que o belga Ghislain Cloquet (1924-1981), um dos melhores diretores de fotografia da História, que trabalhou com Resnais, Bresson, Demy.
Mickey One vive o tempo todo com medo de estar sendo perseguido pelos mafiosos
Depois que recebe os primeiros salários como lixeiro, Mickey One apresenta-se para George Berson (Teddy Hart, pequenino, quase um anão, grande ator, impressionante), um agente de artistas de bairro periférico de Chicago. George consegue um emprego para ele numa casa de espetáculos pouco importante, de periferia. Ele vai se dando bem ali, onde não aparece muito, não é muito visível, não chama a atenção dos mafiosos de Detroit que ainda não o perdoaram e não o perdoarão nunca.
Mas George, encantado com o talento do rapaz, fala dele para Ed Castle (Hurd Hatfield), um dos donos de um night club importante, no centro de Chicago.
A perspectiva de aparecer num lugar de muita visibilidade apavora Mickey One. Ele vive o tempo todo com a paranóia de que está sendo perseguido, de que cada pessoa que conhece pode estar a mando dos mafiosos da sua cidade.
Surge na vida dele uma bela mulher, Jenny Drayton – que vem na pele de Alexandra Stewart, uma das atrizes da América do Norte mais européias que já houve.
Num primeiro momento, Mickey One teme que Jenny seja uma enviada dos mafiosos. Em seguida, se entrega a ela, confia nela, conta pela primeira vez toda a sua história.
O filme derrama talento para todo lado – mas é tudo não maneirístico que cansa
Paranóia. Perseguição. Um artista que está sendo perseguido o tempo todo – ou pelo menos que acha que está sendo perseguido o tempo todo – por uma força invisível, sem rosto, mas poderosíssima.
Claro: uma parábola sobre o macarthismo, a horrenda caça às bruxas que botou na lista negra dezenas e dezenas e dezenas de atores, escritores, diretores do cinema e da televisão nos anos 50 tidos como comunistas ou simpatizantes do comunismo.
É muito nítido, muito claro: Mickey One é uma parábola sobre o macarthismo.
E é um filme que derrama talento para todo lado – do grande ator que Warren Beatty é, da maestria da fotografia em glorioso preto-e-branco, da mis-en-scène de Arthur Penn.
Mas, repito, é tudo tão peripécia formal, tudo tão maneirístico, que cansa.
Warren Beatty e Alexandra Stewart eram jovens e lindos
Uma palavrinha sobre Alexandra Stewart. Ah, como o adolescente Sérgio Vaz babou por Alexandra Stewart…
Alexandra Stewart é canadense de Quebec, onde nasceu em 1939 (ela é dois anos mais nova que Warren Beatty, de 1937); foi para Paris estudar arte aos 19 anos, em 1958 – o ano em que a nouvelle vague irrompeu na cena mundial, e no ano seguinte já fazia sua estréia no cinema, em Les Motards, uma comédia que se perdeu na poeira do tempo.
Faria depois filmes importantes, com grandes diretores, alguns nos Estados Unidos, a maioria na Europa. Trabalhou em Exodus (1960), de Otto Preminger. Com Louis Malle, fez Trinta Anos Esta Noite (1963), Lua Negra (1975) e um filho. Com François Truffaut, participou de A Noiva Estava de Preto (1968) e A Noite Americana (1976). Esteve em Retratos da Vida (1981), de Claude Lelouch, e Busca Frenética (1988), de Roman Polanski.
Warren Beatty estava em começo de carreira, mas vinha de filmes com grandes diretores – Clamor do Sexo/Splendor in the Grass (1961), de Elia Kazan, O Anjo Violento/All Fall Down (1962), de John Frankenheimer, Lilith (1964), de Robert Rossen. E já demonstrava personalidade forte. Peter Biskind, autor do livro Star: How Warren Beatty Seduced America, conta que ele insistia em fazer perguntas direto e reto a Arthur Penn – por que fazer esta cena? o que ela significa? – e em fazer a mesma tomada várias vezes.
Parece que Warren Beatty tem essa característica, além da de ter namorado mais mulheres bonitas do que qualquer outro ator em qualquer tempo ou lugar: adora um retake, refilmar diversas vezes a mesma tomada até chegar ao que considera excelente.
Dois anos depois, voltaria a trabalhar com Arthur Penn em um filme que faria um tremendo sucesso de público e crítica e teria forte influência sobre o cinema de Hollywood, Bonnie and Clyde (1967).
Autor de 15 filmes, vários deles grandes, Penn dirigiu 8 atores indicados ao Oscar
Mickey One foi apenas o terceiro longa metragem dirigido por Arthur Penn (1922-2010).
Depois de servir Exército durante a Segunda Guerra Mundial, Penn começou a carreira na então nascente televisão, e de lá foi para o teatro: dirigiu sua primeira peça na Broadway em 1956. Como Elia Kazan antes dele, obteve grande sucesso e admiração no teatro. Teve três indicações ao Tony de melhor diretor, e venceu em 1960, pela direção de The Miracle Worker, que ele filmaria em 1962.
A estréia no cinema foi com um western, The Left-Handed Gun, no Brasil Um de Nós Morrerá, de 1958, em que Paul Newman interpretava Billy the Kid.
O segundo filme foi The Miracle Worker, no Brasil O Milagre de Anne Sullivan, um extraordinário sucesso de crítica, cinco indicações ao Oscar, com as estatuetas indo para Anne Bancroft como melhor atriz e a garota Patty Duke como melhor atriz coadjuvante.
Em 1965 veio Mickey One. E em seguida viriam Caçada Humana/The Chase (1966), Bonnie and Clyde (1967), Deixem-nos Viver/Alice’s Restaurant (1969), Pequeno Grande Homem (1970), Um Lance no Escuro/Night Movies (1975). Vários desses aí filmões, obras importantíssimas.
Em 1976, errou a mão feio – ao menos na minha opinião – com Duelo de Gigantes/The Missouri Breaks (1976).
A partir daí, só faria mais seis filmes: Amigos para Sempre (1981), O Alvo da Morte (1985), Morte no Inverno (1987), Perseguidos por Acaso (1989), O Retrato (1993) e O Preço da Liberdade (1996), os dois últimos para a TV. Quinze filmes, no total.
Quatro deles foram reunidos agora numa caixa de DVDs pela sempre ótima Versátil: Um de Nós Morrerá, Michey One, Deixem-nos Viver e Amigos para Sempre. Tive imensa curiosidade em rever Mickey One, e pretendo, claro, rever os outros três.
Arthur Penn detém um recorde, creio que somente comparável ao de Elia Kazan e pouquíssimos outros diretores: nada menos que oito atores dirigidos por ele foram indicados ao Oscar: Patty Duke, Anne Bancroft, Estelle Parsons, Warren Beatty, Faye Dunaway, Gene Hackman, Michael J. Pollard e o Chefe Dan George. Desses oito indicados, as três primeiras levaram para casa as estatuetas.
Isso serve para dar uma noção do talento desse grande realizador.
O próprio Penn disse que se arrependeu por não ter sido mais claro
O livro The Columbia Story define o filme assim: “Uma excursão intencionalmente artística à paranóia, Mickey One era a história de um cantor de nightclub (Warren Beatty) em Chicago que, acreditando que a Máfia está atrás dele, por causa de dívidas de jogo, foge de sua existência suja e dissipada e, num esforço de enterrar seu passado, destrói todos seus documentos pessoais e assume a identidade de um polonês enigmaticamente chamado Mickey One.”
E prossegue: “Confuso e pesado com simbolismo, Mickey One, escrito por Alan M. Surgal, poderia, na melhor das hipóteses, ser chamado de um desastre ambicioso em que Warren Beatty não consegue enfrentar o personagem complexo que está interpretando. Um sujeito desagradável, dado a ataques de irracionalidade e violência, era difícil decifrar a que ele vem. Alexandra Stewart sai-se melhor como a garota que o ama, e havia uma atuação intrigante de Hurd Hatfield como o dono de um nightclub com um interesse homossexual por Beatty.”
Cacete: nem reparei que Ed Castle, o personagem desse Hurd Hatfield, tinha uma queda homossexual por Mickey One. Só achei o personagem difícil de compreender. Indecifrável, para usar a expressão do The Columbia Story.
Leonard Maltin deu 2.5 estrelas em 4: “Comediante de nightclub com problemas com a Máfia foge e assume uma nova identidade. Incomum, excêntrico, para dizer o mínimo; esta é a versão de Penn para um filme da nova onda francesa, carregada de símbolos visuais, mas não ficamos bem certos do que é que se trata, afinal. Bela trilha musical de Eddie Sauter com solos de Stan Getz.” (Maltin não usa a expressão nouvelle vague; escreve em inglês, new wave.)
O Guide des Films de Jean Tulard diz: “Obra desconcertante que nos deixa várias vezes sem explicação para o comportamento de Mickey. ‘Eu me arrependo’, confidenciou Penn, ‘de não ter seguido uma linha narrativa mais clara, porque há ali, potencialmente, uma história muito forte que poderia, penso, ter feito esse filme muito mais compreensível.’”
Mestre Jean Tulard nunca decepciona.
Bem, depois dessa frase do próprio Arthur Penn, não há nada a acrescentar.
Anotação em abril de 2017
Mickey One
De Arthur Penn, EUA, 1965
Com Warren Beatty (Mickey One)
e Alexandra Stewart (Jenny Drayton), Hurd Hatfield (Ed Castle), Franchot Tone (Ruby Lapp), Teddy Hart (George Berson), Jeff Corey (Larry Fryer), Kamatari Fujiwara (O Artista), Donna Michelle (A Garota), Ralph Foody (capitão de polícia), Norman Gottschalk (o evangelista), Dick Lucas (o homem da agência de emprego), Jeri Jensen (Helen), Charlene Lee (a cantora), Benny Dunn (o comediante do nightclub), Denise Darnell (a stripper), Helen Witkowski (a dono do imóvel), Bill Koza (o homem da galeria de arte), Michael Fish (o dono do restaurante italiano)
Roteiro Alan Surgal
Música Eddie Sauter
Saxofone e improvisações Stan Getz
Montagem Aram Avakian
Produção Columbia Pictures. DVD Versátil
P&B, 93 min (1h33)
R, **1/2
Se tem um cara que eu não consigo de jeito maneira achar bonito pra cacete, é esse Warren Beatty… Embora (até hoje) nunca tenha visto um filme ruim com ele.
Assisti no Cine Bijou em São Paulo, 66/67. História muito marcante e como disse o ótimo Arthur Penn ” … poderia, penso, ter feito esse filme muito mais compreensível.”
Ótima lição de cinema.