Esse Leslie Nielsen é uma figuraça, uma daquelas coisas que, como Deus para Voltaire, se não existisse, seria necessário inventar. Morreu em 2010 aos 84 anos, e sua passagem desta para melhor não foi lamentada como se lamenta o adeus aos grandes criadores.
E nisso aí não houve erro, porque Leslie Nielsen não é nem jamais pretendeu ser um grande criador. Foi apenas um comediante, um palhaço – engraçadíssimo, hilariante. Excepcional no seu metiê.
Como dizia Stephen Sondhein em “Send in the clowns”, os palhaços são necessários. São imprescindíveis.
Creio que Leslie Nielsen jamais atuou em um filme que, segundo qualquer critério com alguma sanidade, merecesse mais do que a nota 7 em 10, ou 3 estrelas em 4, que é a classificação mais usual nos guias de filmes. Filme grande, filmaço, obra-prima, então, nem pensar – absolutamente nem pensar.
E, no entanto, Leslie Nielsen fez milhões de pessoas rirem, darem gargalhadas, viverem bons momentos.
Outro dia, zapeando, passei por um dos muitíssimos filmes que Leslie Nielsen fez, e simplesmente não consegui desligar o raio da TV. Vi até o fim, porque o sujeito é engraçadíssimo, e os filmes que ele fez, em especial as sátiras escancaradas, desavergonhadas, desassombradas, tipo Apertem os Cintos… O Piloto Sumiu (1980), são bobos demais da conta, e em geral têm a profundidade de um pires e a inteligência de uma guarda-roupa, mas são irresistivelmente engraçados.
Quando o grande Preston Sturges escreveu a dedicatória de sua obra-prima Sullivan’s Travels, no Brasil Contrastes Humanos, de 1941, é claro que ele não sabia, mas estava falando de Leslie Nielsen: “À memória daqueles que nos fizeram rir: os saltimbancos, os palhaços, os bufões, em todas as épocas e em todas as nações, cujos esforços diminuíram um pouco nosso fardo, este filme é carinhosamente dedicado.”
O título do filme já é uma piada. O nome de protagonista, WD-40, é outra
As piadas começam já no título do filme, Spy Hard, um jogo de palavras, uma gozação com Die Hard, de 1988, com Bruce Willis, que teve várias continuações. No Brasil, Die Hard virou Duro de Matar – uma boa tradução, aliás, e então Spy Hard aqui foi Duro de Espiar. Spy, espiar, espião – porque o personagem de Leslie Nielsen é um agente da CIA.
Chama-se Dick Steele, e tem o codinome de WD-40, o que já é outra piada, claro – WD-40 é o nome daquele produto que serve para azeitar a fricção de metais, lubrificar instrumentos de metal.
Dick Steele, o WD-40, é o oposto de seu colega britânico James Bond, aquele agente bonitão, elegante, sempre perfeito em tudo o que faz. Dick Steele é tão trapalhão quanto o inspetor Clouseau dos filmes de Blake Edwards com Peter Sellers. Ou mais ainda. É um desastre ambulante, é o caos em forma de gente – mas sempre acaba conseguindo sucesso em suas missões.
Estava já aposentado, quando foi chamado de volta pelo Diretor – o Diretor, interpretado por Charles Durning, não tem nome, e o filme, pelo que me lembre, não usa a sigla CIA, mas é dela que se trata.
Na antessala do Diretor fica a secretária, Miss Cheevus (o papel de Marcia Gay Harden, mais bonita do que em qualquer outro filme que já vi com ela), que – exatamente como a Miss Moneypenny por James Bond – é absolutamente fascinada pelo agente WD-40.
A missão que o Diretor confia a WD-40 é caçar o general Rancor (Andy Griffith), antes que ele consiga obter um dispositivo que acaba de ser inventado pelo professor Ukrinsky (Elya Baskin) e com ele destrua o planeta. Para enfrentar o general Rancor e seu grande exército de bandidos, WD-40 terá a ajuda de Kabul, um motorista afegão muito doido (John Ales), e depois da gostosinha Veronique Ukrinsky (Nicollette Sheridan), uma agente da KGB, já que, afinal, o filme é de 1996, e a Rússia já não era mais a inimiga número 1 dos Estados Unidos.
É uma sátira de James Bond, mas goza cenas de vários outros filmes
Ao longo das aventuras do agente WD-40, Kabul e Veronique para salvar o mundo, temos:
* uma demonstração dos mais recentes gadgets criados pelo time de inventores da CIA, exatamente como acontece nos filmes de 007; o desastrado agente WD-40 aperta alguma coisa que não deveria apertar, e um lança-chamas queima um sujeito tremendamente parecido com Michael Jackson que estava passando por ali;
* um ônibus que sai na maior velocidade do mundo pelas ruas de Los Angeles, e é dirigido por ninguém menos que Ray Charles, fazendo uma participação especialíssima, numa gozação danada de Velocidade Máxima/Speed (1994);
* no meio da corrida maluca, o ônibus como que levanta vôo, antes de cair espalhafatosamente – e então ele passa na frente de uma gigantesca lua, exatamente como a bicicleta do garotinho Elliott em E.T. – O Extraterrestre (1982), na cena antológica que virou o logotipo da Amblin, a produtora de Steven Spielberg;
* o agente WD-40 entra num convento de freiras, para fugir da perseguição dos homens do general Rancor, e se fantasia de freira, num momento em que um coral delas está ensaiando – uma gozação, é claro, de Whoopi Goldberg em Mudança de Hábito/Sister Act (1992);
* o agente WD-40 – com uma peruca de cabelo grande e rabo de cavalo – e uma das muitas gatinhas que ele conquista ao longo do filme executam uma dança que tenta desesperadamente imitar a de John Travolta e Uma Thurman em Pulp Fiction (1994); é de morrer de rir;
* o professor Ukrinsky vai se esconder na casa de um garotinho muito parecido com o ator mirim Macaulay Culkin; mais tarde, o esconderijo é descoberto pelos homens do general Rancor, que enchem o garoto de porrada dizendo: “Este tapa aqui é por Esqueceram de Mim. Este é por O Primeiro Amor”.
É uma piada atrás da outra, numa velocidade estonteante.
Bobo. Bobo demais, a não mais poder. Sem qualquer tipo de valor artístico. Mas engraçadérrimo.
Anotação em março de 2017
Duro de Espiar/Spy Hard
De Rick Friedberg, EUA, 1996.
Com Leslie Nielsen (Dick Steele, o agente WD-40)
e Nicollette Sheridan (Veronique Ukrinsky, agente 3.14), Charles Durning (o diretor), Marcia Gay Harden (Miss Cheevus, a secretária do diretor), Barry Bostwick (Norman Coleman), John Ales (Kabul), Andy Griffith (general Rancor), Elya Baskin (professor Ukrinsky), Mason Gamble (McCluckey), Carlos Lauchu (Slice), Stephanie Romanov (Victoria Dahl / Barbara Dahl),
e, em participação especial, Ray Charles (o motorista de ônibus)
Roteiro Rick Friedberg & Dick Chudnow e Jason Friedberg & Aaron Seltzer
Baseado em história de Jason Friedberg e Aaron Seltzer
Fotografgia John R. Leonetti
Música Bill Conti
Montagem Eric Sears
Produção Hollywood Pictures.
Cor, 81 min
**
Agora que eu li esse texto tão delicioso, PRECISO ver esse filme. Nunca tinha notado que o elenco era tão bom.
No começo desse ano, tive uma paixão incontrolável pelo Leslie Nielsen jovem, aquele que fazia filmes não tão engraçados. Já me curei (leia-se: me apaixonei por outro ator velho/morto), mas gostaria de pontuar duas coisas desse texto que animou minha segunda pós-jeannemoreau:
1. Eu assisti Airplane! em seguida ao Zero Hour!, um drama com a mesma história (carne/peixe, piloto traumatizado, etc) e até usando os mesmos diálogos (eles compraram os direitos para usar o mesmo texto – sério, no original, e que em Airplane! fica divertidíssimo), e achei genial. Parece uma comédia boba, mas é uma paródia genial e muito bem feita de um filme antigo muito bom;
2. Eu consigo elencar uns cinco filmes do Leslie Nielsen com mais de 7 estrelas 🙂
1. “Ransom”, que inspirou “O preço de um resgate com o Mel Gibson;
2. O PLANETA PROIBIDO CLASSICÃO IMPORTANTÃO E BONZÃO;
3. “Tammy”, com a Debbie Reynolds;
4. “O destino do Poseidon”
5. “Creepshow”
Moral da história: nunca subestime uma mulher apaixonada, rsrsrsrs
Esta é a Senhorita!
Que figura, você!
Adorei o comentário. Perdão, os comentários.
Um abraço.
Sérgio