Orson Welles é o diretor mais incensado da História – e A Marca da Maldade/Touch of Evil, que ele lançou em 1958, após oito anos longe de Hollywood, em andanças pela Europa, é um dos filmes mais incensados de todos os tempos.
“Do famoso plano tomado de uma grua, que abre o filme e joga com toda a gama da ilusão cinematográfica (emprego de grande angular, profundidade de campo anormal, distorção de espaço, etc.), ao ataque final num estranho cenário de terreno baldio, vigas e águas estagnadas, estamos imersos num mundo de puro pesadelo, espantosamente reproduzido por uma câmara onipresente, de uma agilidade proteiforme, que não se dá um instante de trégua.”
Essas loas são do livro As Obras-Primas do Cinema, de Claude Beylie, no original Les Films-Clés du Cinema.
“Uma obra-prima admiravelmente bizarra de técnica, imaginação e audácia”, diz o livro 1001 Filmes para Ver Antes de Morrer, de Steven Jay Schneider. “Rivalizando com a abertura, há uma série de sequências ousadas e complexas que deram ao filme a reputação de epitáfio do gênero noir, com Welles exagerando teatralmente os elementos estilísticos enquanto alcança um hiper-realismo com a fotografia em preto-e-branco contrastada de Russell Metty e a trilha sonora de Henry Mancini, que mistura música latina, jazz e rock’n’roll. A perseguição final é um delírio de extravagância visual, efeitos sonoros experimentais e perdição generalizada.”
Cada tomada é um berro de Welles dizendo “Vejam como eu sou genial!”
“É Welles que brilha, diante e atrás da câmara como diretor. A fotografia e o trabalho de câmara virtuoso fazem de Touch of Evil um tenso e bem ritmado thriller”, diz o livro 501 Must-See Movies. “A sutileza de sua direção dá ao filme uma sensação de intimidade e uma atmosfera nervosa. Touch of Evil foi o último filme de Welles como diretor em Hollywood, e, como um dos pontos altos de sua carreira, é tão inesquecível e espetacular quanto o próprio clímax do filme.”
Sutileza de sua direção? Vixe Maria. A direção de Welles tem a sutileza de dez elefantes nervosos em uma pequena loja de cristais. Cada tomada é um grito, um berro de “Vejam como eu sou genial!”
Mas tudo bem, o 501 Must-See Movies diz que a direção é sutil, e então vamos em frente.
Leonard Maltin dá 4 estrelas, a cotação máxima, é claro: “Especialista em narcóticos Heston e policial corrupto Welles se enredam na investigação de um crime numa suja cidade mexicana de fronteira, com Leigh, a noiva de Heston, se tornando peão na luta entre os dois. A sequência de abertura fantástica, justificadamente famosa, é apenas o começo de uma obra-prima estilística, deslumbrantemente fotografada por Russel Metty. Grande trilha sonora com jazz latino de Henry Mancini; participações especiais não creditadas de Joseph Cotten, Ray Collins e especialmente Mercedes McCambridge.”
O Guide des Films de Jean Tulard dá 4 estrelas ao filme. Acho que é a primeira vez que vejo essa cotação máxima do gigantesco guia de 3 volumes, 3.700 páginas, 15 mil filmes comentados. Poucos filmes são agraciados com estrelas; os com 3 estrelas são raridade; 4, então…
“Confiado, a pedido de Charlton Heston, a Orson Welles, então sem trabalho, este policial tipo B se revela como uma nova obra-prima do realizador. A direção, criando uma atmosfera pegajosa, viscosa, é de uma rara eficácia, e as interpretações são notáveis (Marlene Dietrich, Orson Welles, sujo e inchado, e Akim Tamiroff estão excelentes), o fecho surpreendente: é o policial de métodos contestáveis que tinha razão contra o policial honesto e liberal. É preciso ver para compreender como um grande realizador pode transformar um policial normal em um grande filme.”
O filme “é mais uma variante do estudo do homem em contato com o poder”
Naturalmente, o CineBooks’ Motion Picture Guide dá a cotação máxima, 5 estrelas. Sua longa crítica começa assim: “O mestre da realização Orson Welles abre Touch of Evil com o que pode ser a maior única tomada jamais filmada”.
Eis o que diz Pauline Kael, a primeira dama da crítica americana, na tradução de Sérgio Augusto para a edição brasileira de 1001 Noites no Cinema:
“Como a madame de um bordel mexicano, Marlene Dietrich (réplica da sua maquiagem em Cigana Feiticeira, de 1947) cumprimenta um Orson Welles grotescamente obeso, alcochoado e de nariz postiço com gloriosa discrição – “Você está um lixo. Tem comido doce demais”.
Em seguida dame Kael fala da última sequência do filme, o que eu vou pular. Continua o texto assim: “Primeira produção americana de Welles numa década, este thriller maravilhosamente espalhafatoso tem alguma coisa a ver, mas não demais, com drogas e corrupção policial numa cidade de fronteira. Tem a ver mesmo é com amor ao cinema, e se Welles não consegue resistir ao açucarado de sombras, ângulos e decoração barroca, transforma-o numa alimentação muito mais forte que a maioria do solene feijão-com-arroz dos diretores. É uma diversão fantástica.”
Bela sacada de Sérgio Augusto ao usar a brasileiríssima expressão feijão-com-arroz no lugar da “meat and potatoes” – carne e batatas – do original.
Em seu livro O Outro Lado da Noite: Film Noir, o estudioso e professor carioca A.C. Gomes de Mattos escreveu: “Tal como fez em A Dama de Shangai, Welles aproveitou os personagens e incidentes de uma história policial comum, orientou-os segundo o seu tema predileto – as corrupções do poder –, e filmou-os como um artista, criando algumas imagens mais fascinantes de sua carreira.”
Outro carioca, o poeta, ensaísta, tradutor, jornalista e pesquisador José Lino Grunenwald (1931-2000), começa seu texto sobre A Marca da Maldade com uma afirmação peremptória: “Orson Welles é o maior realizador do cinema sonoro”.
José Lino – um dos nomões da crítica de cinema dos grandes jornais brasileiros que o adolescente Sérgio Vaz admirava boquiaberto e queixo-caído – escreveu o texto assim que A Marca da Maldade chegou ao Brasil; foi publicado na edição de fevereiro/março de 1959 no Jornal de Letras, do Rio de Janeiro – e faz parte do livro Um Filme é um Filme – O cinema de Vanguarda dos anos 60, coletânea de textos de José Lino organizada por Ruy Castro.
“Para Welles”, escreve, numa sacada fascinante que engloba diversos filmes do realizador, “é mais uma variante do estudo do homem em contato com o poder – Kane, Macbeth, Arkadin e Quinlan são todos produtos de um mesmo feixe de pesquisas do indivíduo em uma situação. Eles representam o mito do homem superior, o domínio a alimentar um auto-endeusamento, a crise do caráter mediante a opção pela força.”
De Kane não é necessário dizer nada. Macbeth, Orson Welles filmou em 1948, ele mesmo no papel central – foi seu último filme nos Estados Unidos, antes deste A Marca da Maldade, feito exatos dez anos depois. Arkadin é o nome do personagem central de Grilhões do Passado/Mr. Arkadin, de 1955, uma co-produção França-Espanha-Suíça, em que Welles fez tudo, do roteiro original à direção, passando pela interpretação do personagem-título. E Quinlan é o nome do policial corrupto que Welles interpreta em A Marca da Maldade.
O filme foi completamente remontado sem a autorização de Welles
O CineBooks’ Motion Picture Guide faz um longo relato sobre os bastidores, a produção do filme. Vai aí abaixo, sem aspas, para me desobrigar a ser literal:
Nessa sua volta aos Estados Unidos depois de dez anos fora, Orson Welles foi chamado para apenas atuar em Touch of Evil. Charlton Heston, então um atores de maior bilheteria de Hollywood, ouviu falar que Welles estava envolvido no projeto de filmar a novela Badge of Evil, de Whit Masterson, e imaginou que o genial realizador iria dirigir enfim um filme nos Estados Unidos. Procurou então o produtor Albert Zugsmith e disse que adoraria participar do projeto. Para não perder a oportunidade de ter Heston no elenco, Zugsmith convenceu os chefões da Universal a permitir que Welles dirigisse o filme e também reescrevesse o roteiro. Ficou combinado que Welles receberia US$ 150 mil pelo trabalho como ator – um bom salário, na época –, e escreveria e dirigiria sem custo extra.
Os problemas começaram quando, depois das filmagens – que Welles acelerou, para ficar dentro do prazo e do orçamento e, assim, evitar reprimendas do estúdio – chegou a fase da montagem. Os executivos da Universal ficaram confusos com a narrativa complexa, e, enquanto Welles viajava para a América do Sul para fazer Don Quixote (um projeto que ele jamais concluiria), trocaram o montador Virgil Vogel por Aaron Stell.
Qundo voltou, Welles encontrou Touch of Evil completamente remontado – e os executivos do estúdio exigiam que novas cenas fossem filmadas, para conectar alguns episódios a outros. Diante da recusa de Welles em fazer isso – ele dizia que aquele já não era mais um filme seu -, um tal Harry Keller foi chamado para filmar algumas cenas adicionais.
Na estréia nos Estados Unidos, o filme não provocou furor algum. Mas, como sempre acontecia com as obras que levavam o nome de Welles, o filme foi um absoluto sucesso de crítica na Europa. Ganhou o prêmio internacional de melhor filme concedido pela Feira Mundial de Bruxelas – e o gênio aceitou a honra, sem repetir o que havia dito em casa sobre o filme não ser mais dele.
Há três versões do filme. A terceira é a mais próxima do que Welles queria
O Cinebooks’ não fala de outras versões do filme: fala apenas da versão oficial da Universal, lançada nos cinemas em 1958.
Mas há outra versão. Pauline Kael termina o texto dela falando sobre isso: “Quando o filme estreou em 1958, tinha 93 minutos, e diziam que continha cenas adicionais dirigidas por Harry Keller; em 1976, foi distribuída uma versão de 108 minutos, que se diz representar as intenções originais de Welles.”
Leonard Maltin também faz referência à existência de duas versões. A última frase do verbete dele sobre o filme é: “Evite a versão de 95 minutos”.
Mas a coisa é mais complexa: existem três versões.
A primeira é a distribuída pela Universal em 1958, de 93 (e não 95) minutos. É bastante diferente da montagem original de Welles, e tem cenas adicionais dirigidas por Harry Keller.
A segunda tem 108 minutos, foi lançada em 1976, e incorporava material que havia sido retirado na primeira versão.
Mas existe também a terceira versão, lançada em 1998, esta, sim, obedecendo às idéias originais de Orson Welles, detalhadas num longo memorando escrito pelo cineasta aos chefões da Universal.
Esse trabalho de tentar reconstruir o filme, usando todos os negativos que a Universal ainda possuía, e seguindo passo a passo o que o memorando de Orson Welles pedia, foi feito com o total aval da então direção da Universal; a reconstituição foi dirigida por Walter Murch em conjunto com Bob O’Neil, diretor de restauração de filmes do estúdio.
Nessa terceira versão, as tais cenas adicionais feitas por Harry Keller foram retiradas.
Algumas mudanças em relação à primeira versão, a de 1958, são profundas.
Na versão original, vão sendo apresentados os créditos iniciais enquanto está rolando o famosérrimo plano-sequência de 4 minutos que abre o filme. Retirar os créditos daí foi uma providência inteligentíssima, sem dúvida alguma, porque os créditos iniciais de fato distraem o espectador, justamente no momento do plano-sequência sensacional.
Essa terceira versão, de 1998, a mais próxima que poderia haver do que Welles gostaria que fosse, teve uma carreira limitada, mas bem sucedida, nos cinemas americanos. E foi também lançada em DVD.
Nunca vi essa versão. A que vi em 1992, e depois agora, apresentada no Telecine Cult, é a versão original distribuída pela Universal em 1958.
Marlene aparece pouco mas dá um show. Janet sofre mais que em Psicose
Minha opinião pessoal sobre A Marca da Maldade?
Pra quê? Já transcrevi tantas opiniões de gente que sabe muitíssimo mais que eu…
Mas tá bom. Este é um site com as minhas opiniões pessoais sobre os filmes, então alguma coisa eu tenho que falar, apesar da preguiça – já escrevi demais sobre o filme.
O plano-sequência inicial é espetacular. Qualquer adjetivo, por mais superlativo que seja, é pouco para ele. É deslumbrante. Vi umas três vezes, e ainda quero ver outras. É uma absoluta maravilha.
A fotografia é um estupor.
Marlene Dietrich aparece pouco, mas dá um show. E está mais bela do que nunca com os cabelos escuros.
Janet Leigh sofre muitíssimo mais do que em Psicose, que ela faria dois anos depois.
Como tem plongée e contreplongée, meu Deus do céu e também da terra! Em pelo menos um terço das tomadas, se não for mais, a câmara está ou acima das pessoas, mostrando-as lá embaixo, ou abaixo das pessoas, mostrando primeiro suas barrigas, e só lá mais pro alto suas cabeças.
Welles adorava plongées e contreplongées. Usou-os demais em Cidadão Kane, e aí não parou mais de abusar.
Cada sequência, cada tomada é feita para impressionar, embasbacar os cinéfilos. É tudo exageradamente exagerado. Cada tomada grita no ouvido do espectador: “Olhem como eu sou genial! Meu nome é Orson Welles e eu sou o maior diretor de cinema do mundo”.
Ih, parece que, lá pra cima, já falei isso. Estou sendo repetitivo.
Então, para encerrar:
Achei maravilhoso o diálogo entre Hank Quinlan, o chefe de polícia americano corrupto, que planta provas para ferrar os suspeitos, sujeito sujo, balofo, interpretado pelo próprio Welles, e Miguel Vargas, o figurão do governo mexicano anti-narcóticos, feito por Charlton Heston.
Vargas, o mexicano, fala para o gringo corrupto e supremacista, que despreza mexicanos:
– “Nos países livres, os policiais devem impor as leis, e as leis protegem tanto os culpados quanto os inocentes.”
Quinlan, o corrupto nauseabundo, com cara de desprezo pelo mexicano:
– “Como se nosso trabalho já não fosse duro demais…”
E Vargas: – “É para ser duro mesmo. O trabalho da polícia só é fácil num estado policial. Esta é a questão toda. Quem manda? A lei ou o policial?”
Só esse diálogo já valeria o filme. Nem precisava de tanto foguetório, tantos fogos de artifício.
Orson Welles abusa, exagera nos fogos de artifício. Mas não adianta o espectador ficar incomodado, como eu às vezes fico: o bicho é gênio mesmo, fazer o quê?
Anotação em outubro de 2016
A Marca da Maldade/Touch of Evil
De Orson Welles, EUA, 1958
Com Charlton Heston (Ramon Miguel Vargas), Janet Leigh (Susan Vargas), Orson Welles (Hank Quinlan), Joseph Calleia (Pete Menzies), Akim Tamiroff (Joe Grandi), Valentin de Vargas (Pancho), Ray Collins (promotor Adair), Dennis Weaver (funcionário do motel), Joanna Moore (Marcia Linnekar), Mort Mills (Schwartz), Victor Milian (Manolo Sanchez), Lalo Rios (Risto), Michael Sargent (rapaz bonito)
e, em participações especiais, Marlene Dietrich (Tanya), Mercedes McCambridge (a líder da gangue), Joseph Cotten (detetive), Zsa Zsa Gabor (a dona do bar de striptease)
Roteiro Orson Welles
Baseado na novela Badge of Evil, de Whit Masterson
Fotografia Russell Metty
Música Henry Mancini
Montagem Virgil W. Vogel e Aaron Stell
Produção Albert Zugsmith, Universal International.
P&B, 93 min (a versão do estúdio), ou 108 min (versão lançada em 1976 seguindo as intenções originais do diretor)
R, ***1/2
Título na França: La Soif du Mal. Em Portugal: A Sede do Mal.
Excelente avaliação sobre mais este trabalho de Orson Welles.