Uma deliciosa surpresa este Borderline, de 1950, de que eu jamais tinha ouvido falar, não tinha qualquer tipo de referência. Como é gostoso descobrir um filme sobre o qual não sabemos absolutamente nada.
Está na programação do Now; estávamos dando uma olhada para ver o que o Now tem no gênero Clássicos, vi os nomes de Claire Trevor e Fred MacMurray, e resolvi experimentar.
Na TV a cabo, o filme está com o título Alarme na Fronteira, algo próximo do original, que é apenas fronteira, Borderline. Vi depois no IMDb que esse foi o título na Espanha, Alarma en la Fronteira. Na época de seu lançamento no Brasil, no entanto, Borderline foi chamado aqui de Reinado do Crime.
É uma saborosa mistura de gêneros. É um policial, mas tem toques cômicos – e a rigor, a rigor, é uma comédia romântica, mas o espectador só vai perceber isso quando o filme já está aí com uns bons 30 minutos dos curtíssimos 88 de duração
A trama – criada pelo próprio roteirista, Devery Freeman, diretamente para o cinema – é bastante engenhosa, inteligente, atraente.
Uma experiente policial de Los Angeles aparece no México disfarçada de call-girl
Um órgão do governo federal americano – o serviço de alfândega do Departamento de Tesouro, o Ministério da Fazenda deles – está atrás do chefão de uma quadrilha de traficantes de drogas, conhecido como Pete Richie, Big Richard ou Big Ritchie (o papel do grandalhão Raymond Burr, à esquerda na foto acima, que foi bandido em uma dezena de filmes, inclusive Janela Indiscreta, de Hitchcock).
Esse Richie opera no México, e uma das formas que sua quadrilha usa para levar droga do México para os Estados Unidos é empregar duplas de homem e mulher fingindo-se de recém-casados, com ar de turistas inocentes, para fazer o transporte.
Os homens do governo já sabem alguma coisa do modus operandi da quadrilha, mas querem ter mais informações que permitam desbaratar completamente o esquema.
Na primeira sequência do filme, um oficial do governo está interrogando um casal que foi preso transportando droga no carro do México para Los Angeles. O espectador atento perceberá que o homem e a mulher tentam se fazer passar por um casal casado, mas na verdade não se conhecem bem, foram apenas contratados para se fazer passar por turistas inocentes.
O oficial, no entanto, não fica muito satisfeito com o que consegue extrair do homem e da mulher. Os depoimentos deles acrescentam pouco ao que já se sabia.
Numa sala ao lado, policiais e funcionários do governo acompanhavam o interrogatório. Entre eles está uma mulher, o papel de Claire Trevor – veremos que se chama Madeleine Haley, e é uma experiente investigadora da Polícia de Los Angeles. Quando homem e mulher deixam a sala e são levados presos, o grupo se junto ao oficial encarregado do interrogatório.
O policial e o outro funcionário apresentam Madeleine Haley ao oficial, e sugerem enviá-la ao México para ficar na cola de Big Richie, tentar obter mais informações sobre quem são os fornecedores da droga, quem distribui o material dentro dos Estados Unidos.
A princípio, o oficial não admite sequer pensar na idéia. Argumenta que já tem homens no México, mas que eles não conseguiram ainda muita coisa – Ritchie é arisco, percebe de longe a presença de um investigador.
Em defesa de Madeleine, os outros argumentam que ela é muito experiente, trabalhou bem para o governo federal durante a guerra e fala muito bem “o mexicano”. O oficial dá uma olhadinha para ela e ainda não aceita a idéia: Ritchie gosta muito de mulheres, sim, mas de mulheres vulgares.
Um dos defensores de Madeleine diz que ela pode se fantasiar de vulgar – e nessa hora Claire Trevor-Madeleine dá uma olhada irada para o homem que está argumentando a seu favor.
O oficial acaba cedendo aos argumentos dos outros, corta e, aos 5 minutos de filme, Madeleine está desembarcando de um ônibus no México, em cidade não identificada. Vemos que ela vê um cartaz diante de um clube noturno anunciando “La Gran Fiesta – 6 Señoritas Encantadoras”, e, quando o filme está com 7 minutos, Madeleine é uma das 6 senhoritas encantadoras e está dançando no meio delas, fazendo todo o possível para atrair as atenções de um Big Ritchie que não dá a menor pelota para ela.
Ela acha que ele é traficante; ele acha que ela é amante de traficante
Há em seguida uma sequência em que Madeleine se mostra bastante esperta, conversando com o guarda-costas de Ritchie e o fazendo beber além da conta.
Para encurtar um pouco a história: um pouco depois, irrompe na suíte de hotel ocupada por Ritchie, onde estão também o guarda-costas ainda bêbado e mais Madeleine fazendo-se passar por corista e call-girl, um americano grandalhão – o papel de Fred MacMurray, claro – chamado Johnny McEvoy, conhecido por trabalhar na quadrilha de Harvey Gumbin (Roy Roberts), outro grande traficante de drogas.
Para Johnny, fica claro, óbvio, que aquela mulher com todo jeitão vulgar é amante de Big Ritchie.
Há um tiroteio. Big Ritchie é baleado. Johnny escapa dali levando com ele a dame, a broad, a mulher com jeitão de puta. Leva-a até o homem que chama de chefe, o traficante Harvey Gumbin. Harvey acha que pode obter informações sobre o seu concorrente Big Ritchie com a amante dele.
Boa policial, Madeleine percebe que pode obter informações sobre Harvey Gumbin se não revelar sua verdadeira identidade, se continuar se passando por amante do outro traficante.
Gumbin dá a Johnny uma boa quantidade de droga para que ele leve de carro até Los Angeles. Pode aproveitar a dame e fingir que os dois são casados, boa forma de tentar não chamar muita atenção na fronteira.
Johnny pergunta como fazer para identificar quem vai receber a droga. Gumbin diz que ele não precisa se preocupar: basta estar ao meio-dia em um determinado lugar do zoológico de Los Angeles, que o pessoal do grupo irá procurá-lo.
Começa aí – o filme está então com uns 20, 25 minutos – uma longa série de sequências sobre a viagem daqueles dois rumo à fronteira americana.
Vai ficando óbvio para o espectador que os dois protagonistas vão se apaixonar
O espectador não vai demorar a sacar que esse Johnny não é da quadrilha de Gumbin coisa nenhuma – é um investigador do governo federal americano que soube se infiltrar na quadrilha.
Johnny é da lei, mas acha que Madeleine é bandida, amante do bandido Big Ritchie.
Madeleine é da lei – disso o espectador sempre soube o tempo todo –, mas acha que Johnny é traficante da quadrilha de Gumbin.
E aí o espectador saca também que os dois protagonistas da história, os personagens interpretados pelos astros do filme, Claire Trevor e Fred MacMurray, vão se apaixonar. É claro, é óbvio, eles vão se apaixonar – apesar de cada um achar que é uma loucura se apaixonar por um/uma bandido/bandida. Então o processo será lento, porque os dois estão com ambos os pés para trás.
Sem dúvida alguma, uma delícia de trama.
Haverá momentos, na longa e acidentada viagem da dupla pelo México, rumo à fronteira americana, da mais pura comédia. Alguns momentos me fizeram lembrar do grande clássico de Frank Capra, Aconteceu Naquela Noite/It Happened One Night (1934), o primeiro filme a conquistar os 5 Oscars mais importantes (filme, direção, ator, atriz, roteiro), façanha que só seria igualada quatro décadas depois, por Um Estranho no Ninho/One Flew Over the Cuckoo’s Nest (1975), de Milos Forman.
Como em Aconteceu Naquela Noite, homem e mulher dividem o mesmo quarto de hotel – mas não acontece nada entre eles, e nem poderia acontecer, porque àquela altura da trama se odeiam, se desprezam.
Como no filme de Capra, lá pelas tantas estão homem e mulher na estrada, pedindo carona – só falta Claire Trevor fazer como Claudette Colbert, e puxar a saia para cima para fazer parar o primeiro carro.
Nesse caso, a mistura de gêneros funcionou bem. É policial, é road movie, é comédia
Lá pelas tantas, a dupla se encontra com um mexicano gordo, simpático, chamado Porfirio (Nacho Galindo), que se dispõe a dar carona para eles. Fred MacMurray-Johnny McEvoy se dirige a Porfirio em espanhol – e ele até que não fala mal “o mexicano”, não. Mas, depois de ouvir por algum tempo, Porfírio pergunta a Johnny se ele fala inglês. E, em inglês, diz: – “Por favor, então fale em inglês, porque está difícil entender o seu espanhol”.
O autor e roteirista demonstra ter gostado bastante da sua piada – que é ótima mesmo, e valorizada pela cara espantada do velho e bom Fred MacMurray.
Daí a pouco, Porfirio faz uma pergunta qualquer a Johnny, e ele responde: “Si. I mean, yes”.
Absoluta delícia!
Há filmes que misturam vários gêneros e a mistura fica azeda, ruim, desagradável. Cada caso é um caso. Aqui, funcionou. É um policial que é também uma comédia romântica com bom trecho de road movie – e é gostoso.
Usei a expressão velho e bom para falar de Fred McMurray. Claro que ele não era velho em 1950, o ano de lançamento deste Borderline – ele trabalharia até 1978. Nem Claire Trevor era velha. Ela, por sua vez, trabalharia até 1987.
Mas também não eram jovenzinhos, e já eram astros experientes e muito famosos em 1950. Claire Trevor já era estrela em 1939, quando estrelou No Tempo das Diligências/Stagecoach com o então jovem em fulgurante ascensão John Wayne. Faria em seguida mais dois filmes com o Duke, O Primeiro Rebelde (1939) e Comando Negro (1940), e em todos os três o nome dela aparecia antes do dele.
Da mesma forma, Fred MacMurray já tinha muita estrada, tendo começado a carreira em 1929. De sua filmografia já constavam algumas dezenas de filmes quando fez Walter Neff, o vendedor de seguros preso na teia da femme fatale interpretada por Barbara Stanwyck em Pacto de Sangue/Double Indemnity, de 1944.
Ela estava com 40 e ele com 42 no ano de lançamento desse Borderline. Acho bem simpático isso – um filme estrelado por um casal maduro.
Borderline não está bem nos guias de filmes
Leonard Maltin, o autor do guia de filmes mais vendido do mundo, dava 2.5 estrelas em 4 para o filme nas edições dos anos 90, e, dizia o seguinte: “Trevor e MacMurray trabalham bem juntos, como oficiais da lei, cada um indo atrás de traficantes de droga na fronteira com o México, nenhum deles sabendo que o outro não é um bandido”.
Alguém da equipe de Maltin andou revendo o filme, porque, na edição de 2013, segundo me chamou a atenção a Senhorita, uma leitora deste site que tem paixão pelos filmes da era dourada de Hollywood, a fita foi rebaixada para 2 estrelas, com a seguinte avaliação: “Estranho thriller-comédia em que a policial de L.A. Trevor tenta juntar evidências contra astuto traficante de drogas Burr enquanto se vê às voltas com o durão MacMurray no México. Começa de maneira promissora mas logo cai numa bobageira. Burr faz um vilão vibrante.”
Na última edição em papel de seu veterano e imprescindível guia, a de 2015, seguramente pressionado pela entrada de novos títulos, Maltin simplesmente jogou fora a avaliação sobre Borderline.
E o filme não está também no guia de Mick Martin e Marsha Porter, o que confirma que é uma obra obscura, pouco reconhecida, pouco valorizada.
O guia de Steven H. Scheur dá 2 estrelas em 4 e um diagnóstico oposto ao meu: diz que é um melodrama incerto que se balança entre a seriedade e a farsa, e não se dá bem nem em uma coisa, nem em outra.
O livro The Universal Story fala sobre o filme no mesmo tom usado por Scheur, fazendo joguinho de palavras com o título Borderline: diz que o roteiro de Devery Freeman fica perto da fronteira da comédia e perto da fronteira do melodrama, disso resultando que as audiências ficaram confusas.
Povo mal humorado.
Em 66 anos, a situação do tráfico de drogas não mudou muito
O livro dos filmes da Universal usa a expressão Federal Narcotics Bureau. No filme, aparece escrito Treasure Department – Customs Agency Service. Alfândega, Departamento do Tesouro/Ministério da Fazenda.
Se fosse hoje, seria o DEA – o Drug Enforcement Agency, a agência federal de combate às drogas, apensa ao Ministério da Justiça. A denominação do órgão federal e o ministério ao qual está subordinado não importam tanto. O fato é que este filme que tem hoje 66 anos mostra que a situação não mudou muito neste bem mais de meio século. A droga continua saindo do México e entrando nos Estados Unidos, não importa quantos milhões ou bilhões de dólares o governo americano investiu na guerra às drogas.
Quando o presidente Barack Obama anunciou a política de aproximação com Cuba, disse uma frase que tem toda a lógica. Desde que ele nasceu, os Estados Unidos usam o embargo econômico contra o governo cubano, e nada mudou desde então; portanto, é o caso de tentar algo diferente.
Este filme é uma boa diversão, e não pretende falar nada muito sério, mas o que ele mostra sugere que deveria ser o caso de se pensar em algo diferente também em relação ao tráfico de drogas.
A guerra não está adiantando nada.
Felizmente, tem aumentado o número de gente que defende isso.
Anotação em maio de 2016
Reinado do Crime/Borderline
De William A. Seiter, EUA, 1950.
Com Fred MacMurray (Johnny McEvoy), Claire Trevor (Madeleine Haley)
e Raymond Burr (Pete Ritchie), José Torvay (Miguel), Morris Ankrum (Bill Whittaker), Roy Roberts (Harvey Gumbin), Don Diamond (Deusik), Nacho Galindo (Porfirio), Pepe Hern (Pablo), Grazia Narciso (a mulher de Porfirio)
Argumento e roteiro Devery Freeman
Fotografia Lucien N. Andriot
Música Hans J. Salter
Montagem Harry Keller
Produção Borderline Productions, Universal Pictures.
P&B, 88 min
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Título em Portugal: Veneno Branco. Na Espanha: Alarma en la Frontera. Exibido na TV brasileira em 2016 com o título de Alarme na Fronteira.
Claire Trevor está batendo cartão no 50 Anos… Ótimo, apenas um site maravilhoso como esse para relembrar essa diva!!!