Uma Longa Viagem, no original The Railway Man, co-produção Austrália-Inglaterra-Suíça de 2013 com Colin Firth e Nicole Kidman, demora um pouquinho a dizer a que vem. Bem pouquinho: exatos 13 minutos. Não que isso seja uma coisa ruim, um demérito, de forma alguma. Ao contrário.
Para quem – como Mary e eu – não tinha lido uma linha sequer sobre o filme, o que acontece aos 13 minutos de filme é uma total e absoluta surpresa.
E aí é que está: quanto a isso, há dois grupos bem distintos de espectadores. Há os que preferem não saber coisa alguma da história, da trama, do tema, na primeira vez em que vêem um filme, de tal maneira que tudo é surpresa, absolutamente tudo é novidade. E há, é claro, os que gostam de saber com antecedência do que trata cada filme – até para pesar se vale a pena vê-lo, ou não, se há interesse por aquele tema, ou não.
Sou do primeiro grupo. Evito ler sobre os filmes que pretendo ver – vou ler o que se escreveu sobre eles depois de eu mesmo ver e ter as surpresas, as sensações, as emoções. Muitas vezes é impossível deixar de saber alguma coisa, porque os trailers, os títulos dos jornais, das revistas, dos textos na internet já adiantam elementos da trama. Mas faço um esforço para saber o menos possível antes de ver um filme. Jamais leio, por exemplo, a sinopse publicada na caixinha do DVD – em pelo menos metade dos casos a sinopse adianta informações que o roteirista e o diretor só vão revelar quando a narrativa já está bem adiantada.
No caso deste Uma Longa Viagem, foi tudo uma surpresa total, repito: sequer sabia o nome do diretor, Jonathan Teplitzky, nem o gênero – se drama, se comédia, se crime, se thriller -, nem mesmo o título original. Pegamos para ver por causa dos dois atores principais, competentes e belos, só isso.
Naturalmente, este texto não trará relatos do que acontece, digamos, a partir de uns 20, 25 minutos dos 116 de duração de The Railway Man. Mas quem preferir ter as surpresas ao ver o filme não deveria ler o que vai abaixo. Não que sejam spoilers mesmo – mas estragam um pouquinho as surpresas.
A primeira das surpresas, para nós, veio de cara com o letreiro “Baseado em um história real”.
Homem belo como príncipe conhece mulher bela como princesa
O começo é como um conto de fadas: homem belo como um príncipe conhece mulher bela como uma princesa, apaixonam-se perdidamente, casam-se – mas não viveram felizes para sempre. Na verdade, a felicidade vai para o espaço logo depois da noite de núpcias.
Ele se chama Eric Lomax – o papel de Colin Firth, é claro, mas também de de Jeremy Irvine quando jovem, porque haverá flashbacks. O espectador o vê pela primeira vez no Clube de Veteranos Berwick-Upon-Tweed, Inglaterra, em 1980, segundo mostra um didático e bem-vindo letreiro. Está na faixa dos 60 anos, usa bigode e grandes óculos; sempre foi um apaixonado por trem de ferro, ferrovias, essa coisa civilizadíssima que os ingleses cultivam há séculos em sua ilha e nos diversos locais do mundo que dominaram.
É exatamente num trem, num vagão de trem de passageiros, que ficará diante de uma mulher linda de morrer – Patti Wallace, uma ex-enfermeira, o papel, é claro, de uma Nicole Kidman com cabelos negros.
Pelo jeito, Eric nunca havia se casado. Patti, o filme indica, estava divorciada. Nada impedia um eventual romance.
No primeiro encontro, Eric, o homem que sabe tudo sobre trens e as cidades servidas por trens (praticamente todas as daquela ilha civilizadíssima), aponta para Patti um pequeno lugarejo em que foi filmado Brief Encounter, no Brasil Desencanto, a obra-prima de David Lean lançada em 1945, o ano em que terminou a Segunda Guerra Mundial, sobre um homem e uma mulher que se conhecem em trens e em estações ferroviárias – mas, ao contrário de Eric e Patti, são casados, e seu amor será fundado na infidelidade.
O roteiro de The Railway Man – escrito por Roteiro Frank Cottrell Boyce e Andy Paterson, com base na autobiografia de Eric Lomax – faz, com muita sutileza, sem propriamente explodir fogos de artifício, uma mexida na cronologia. Como se, na sala de montagem, o montador tivesse se atrapalhado um pouquinho. – e então vemos, por exemplo, uma rápida tomada de Eric e Patti já no quarto nupcial antes de ver as tomadas, também rápidas, dos dois entrando na igreja para o casamento, na presença de um grande número de veteranos de guerra, os colegas do noivo.
O filme discute a relação torturado-torturado, o eterno desejo de vingança
Se o herói e a heroína, o belo príncipe e a bela princesa, se casam com 10, 12 minutos de filme, então é porque haverá tragédia mais adiante – e a tragédia surge aos 13 minutos de filme: veremos que Eric Lomax tem profunda, violenta, inescapável, indomável neurose de guerra.
Seu regimento foi feito prisioneiro pelos japoneses em Cingapura, em 1942, durante a Segunda Guerra Mundial. Centenas de soldados ingleses aprisionados foram obrigados a trabalhar na construção de uma estrada de ferro através da Birmânia e da Tailândia, no meio da floresta tropical, em região montanhosa e em condições desumanas – como mostrou outra obra-prima de David Lean, A Ponte do Rio Kwai (1957).
Eric, seu grande amigo Finlay (interpretado por Sam Reid nas sequências de 1942 e por Stellan Skarsgård nas de 1980) e seus companheiros sofreram os horrores de trabalhar para o inimigo num calor insuportável no meio de uma selva espessa. Mas Eric, em especial, passou por sessões de tortura de fazer envergonhar o pior torturador do Doi-Codi, da CIA.
The Railway Man, que começa como um conto de fadas, um belo romance entre homem e mulher desimpedidos, disponíveis, e portanto com tudo para serem felizes, passará a discutir a relação torturador-torturado, o eterno desejo por vingança.
É um belo, sensível, duríssimo filme – e é muito impressionante imaginar, saber, lembrar que não é a ficção de um escritor de grande imaginação e sensibilidade, mas uma história real.
Aconteceu – e portanto pode acontecer também com outras pessoas, em situações parecidas.
Eric Lomaz passou 38 pensando em seu torturador
Grandes filmes trataram desses temas, o reencontro opressor-oprimido, torturador-torturado, a sede insaciável de vingança.
Roman Polanski, por exemplo, fez um filme inquietante, aterrador sobre o reencontro do torturado com o torturador, A Morte e a Donzela (1994), baseado na peça do argentino Ariel Dorfman.
Enquanto via este belo The Railway Man, não consegui deixar de me lembrar de A Face Oculta/One-Eyed Jack (1961), o único filme dirigido por Marlon Brando. É um western: Marlon Brandon e seu amigo Karl Malden interpretam dois ladrões de banco que, depois de um assalto no México, acabam cercados pelos policiais; combinam que Longworth, o personagem de Karl Malden, vai escapar pela retarguada enquanto Rio, o personagem de Brando, segura os policiais; mais tarde, Longworth voltaria para salvar o amigo. Só que ele trai o amigo, foge com o dinheiro e vai se estabelecer numa cidade litorânea da Califórnia, onde acaba virando xerife. Após cinco anos preso, Rio foge e vai atrás do traidor.
Quando finalmente se revêem, Longworth teme que o outro tenha vindo para se vingar. Mas Rio-Marlon Brando abre aquele sorriso Actors Studio dele e mente com a frase que jamais esqueci: – “Você acha que um homem pode ficar com raiva durante cinco anos? Claro que não”.
Para a bela enteada de Longworth, Luisa (Pina Pellicer), que pergunta a Rio se matar o sujeito que o traiu fará dele um homem, ele responde: “Isso eu não sei. Mas eu sei que pensei nele todos os dias durante cinco anos. E isso foi a única coisa que me manteve vivo.”
Credo.
The Railway Man vai mostrar que Eric Lomax passou 38 anos pensando – provavelmente todos os dias – em Takeshi Nagase, o então jovem do serviço secreto do exército japonês que serviu de intérprete durante as sessões de tortura. (Nagase jovem é interperetado por Tanroh Ishida; Nagase velho, por Hiroyuki Sanada.)
O fictício Rio do filme de Marlon Brando planejou vingança durante cinco anos. Eric Lomax, pessoa de carne e osso, sofreu com a lembrança das torturas por 38 anos.
Há muitos filmes que defendem o olho por olho, dente por dente
Há diversos filmes que defendem a Lei do Talião, o olho por olho, dente por dente. Os filmes com o policial Dirty Harry, interpretado por Clint Eastwood, são desse tipo – e é fascinante ver que, mais velho, mais maduro, Clint passou a defender em tudo por tudo o oposto do que Dirty Harry significa.
Tem a série Desejo de Matar – nunca vi nenhum deles, graças ao bom Deus, mas sei que são do tipo Lei do Talião. A simpática Sally Field entrou numa fria fazendo uma mãe que apela para a vingança em Olho por Olho, de John Schlesinger (1996),
A lista é imensa.
Felizmente, há também os filmes maiores, mais sérios, como, por exemplo, Lady Jane (2008) e As Neves do Kilimanjaro (2011), ambos do francês de origem armênia Robert Guédiguian. Ou o ousado, forte, violento australiano O Livro das Revelações (2006), de Ana Kokkinos. Ou o dinamarquês Em Um Mundo Melhor (2010), de Susanne Bier.
Em Lady Jane, Robert Guédiguian usa um provérbio da terra de seus antepassados, que vem, segundo ele indica, do século XI, mil anos atrás: “Aquele que busca se vingar é como a mosca que bate contra o vidro sem ver que a porta está escancarada”.
Passaram-se mil anos, e ainda não aprendemos essa verdade.
Mas não custa lembrá-la, como fazem os filmes citados aí, e agora mais este belo The Railway Man.
Eric Lomax foi sem dúvida um grande homem, e teve uma vida admirável
Não há muitas informações no IMDb e na Wikipedia em inglês sobre Jonathan Teplitzky, que se mostra aqui um diretor competente, talentoso e com uma bela visão da vida. Não é um garotinho, pelo jeito. Em 1993, foi assistente de direção em um documentário da BBC que venceu um Bafta, A Vampire’s Life, sobre a escritora Anne Rice. Como diretor, este aqui foi seu quarto longa-metragem.
Aqui vai um spoiler:
Segundo o IMDb, o roteiro comprime num pequeno espaço de tempo fatos que na vida real aconteceram ao longo de muitos anos. Assim, Eric Lomax e Patti Wallace de fato se conheceram em 1980, mas só iriam se casar em 1983. (No filme, como já foi dito, entre o encontro e o casamento passam-se uns dez minutos, apenas.) E Eric só ficou sabendo que Takashi Nagase estava vivo em 1993 – no filme, não se fala da data, mas fica subentendido que foi logo depois do casamento.
A primeira escolha para o papel de Patti foi Rachel Weisz, mas ela acabou não podendo aceitar o papel por estar envolvida em outras produções. Colin Firth foi quem sugeriu que ela fosse substituída por Nicole Kidman, australiana como o diretor Jonathan Teplitzky.
Belíssima escolha: Nicole Kidman está excelente. É uma das melhores interpretações que vejo dela nos últimos anos.
O filme teve uma première mundial no Festival de Cinema de Toronto, em 2013; a Patti Wallace da vida real, agora Patti Lomax, estava presente, e foi aplaudida de pé – da mesma forma que seria de novo aplaudida de pé quando o filme foi exigido no Festival de Sarajevo, na Bósnia.
Eric Lomax morreu em outubro de 2012, aos 93 anos. Foi por pouco que não esteve no lançamento em Toronto.
Grande figura. Grande homem. Grande vida.
Anotação em junho de 2015
Uma Longa Viagem/The Railway Man
De Jonathan Teplitzky, Austrália-Inglaterra-Suíça, 2013
Com Colin Firth (Eric), Nicole Kidman (Patti Wallace),
e Stellan Skarsgård (Finlay), Michael MacKenzie (Sutton), Jeremy Irvine (Eric jovem), Jeffrey Daunton (Burton), Hiroyuki Sanada (Takeshi Nagase), Tanroh Ishida (Takeshi Nagase jovem), Tom Stokes (Withins), Bryan Probets (Major York), Tom Hobbs (Thorlby), Sam Reid (Finlay jovem), Akos Armont (Jackson), Kitamoto Takato (official japonês)
Roteiro Frank Cottrell Boyce e Andy Paterson
Baseado na autobiografia de Eric Lomax
Fotografia Gary Phillips
Musica Davie Hirschfelder
Montagem Martin Connor
Produção Archer Street Productions, Latitude Media, Lionsgate. DVD Califórnia Filmes.
Cor, 116 min
***1/2
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