Um drama pesado, sério, denso, sobre o amor a vida a morte, uma trama extraordinariamente bem urdida, trançada, encenada com absoluto brilho, com talento saindo pelo ladrão. Inevitável, co-produção Argentina-Espanha de 2013, é um filmaço.
Fala de pequenos fatos, pequenos gestos, que podem definir nossas vidas. De que a cada momento podemos fazer opções, escolher caminhos em estradas que se bifurcam, como no poema de Robert Frost. De que a vida é feita de momentos em que uma moeda é jogada para o alto – pode dar cara, pode dar coroa.
Demonstra, como numa equação, que paixão e amor são coisas distintas, diferentes.
Fala de que tudo é inevitável – e ao mesmo tempo tudo pode ser feito de um jeito completamente diferente.
Ao final de 95 minutos de grande cinema, o diretor Jorge Algora inova, surpreende. Até mesmo choca. E olha que é difícil inovar, já que sabemos – como Claude Lelouch disse e adora repetir – que só existem duas ou três histórias na vida, só com pequenas variações, e já que a cada semana estréia uma dúzia de novos filmes.
Mas, no finalzinho, o diretor Jorge Algora inova, surpreende. O eventual leitor pode ficar tranquilo – não vou fazer spoiler. Sou bastante cuidadoso para evitar spoilers, e, quando narro algo que não deve ser narrado para quem ainda não viu o filme, aviso claramente que é spoiler.
Nos créditos finais, no meio dos créditos finais – eu nunca tinha visto algo assim –, Inevitável mostra em três sequências fatos que não aconteceram na vida daqueles pobres, tristes personagens. Fatos que o espectador sabe que não aconteceram, que são o contrário do que na verdade houve na vida dos personagens.
A vida poderia ter sido diferente. É o que mostram as sequências falsas no meio dos créditos finais. Falsas, mas possíveis. Poderiam ter acontecido, se aquelas pessoas tivessem feito opções diferentes daquelas que na realidade fizeram.
Na bifurcação, na hora em que a estrada se divide em duas, você traça um determinado destino para sua vida. Se tivesse escolhido o outro, a vida poderia ter sido completamente diferente.
Tudo que acontece na vida de cada um de nós é inevitável – e, ao mesmo tempo, absolutamente evitável. Bastava termos feito a outra opção. Bastava a moeda ter caído do outro lado.
Sim, é verdade: Inevitável é um filme papo cabeça
Hum… Papo cabeça demais?
É. Inevitável é bastante papo cabeça. Passou naquele canal Max que tem exibido muitos filmes mais alternativos, menos comerciais, e gravei, mas confesso que tive um pouco de preguiça de ver, porque parecia óbvio, apenas pela sinopse, que era papo cabeça.
Eis o que diz a sinopse do canal Max: “Depois de presenciar a morte, Fabián começa a questionar sua existência. A proximidade com um escritor, o cotidiano com sua esposa e o encontro casual com uma jovem escultora o ajudarão a mudar sua visão da vida, da morte e do amor.”
Hum… Não sei se é uma sinopse apropriada, acurada, mas acho fantástico que ela tenha enumerado vida morte amor. Antes de reler a sinopse para transcrevê-la aqui, usei, lá em cima, na abertura desta anotação, a expressão a vida o amor a morte. Uso essa expressão assim, sem vírgulas, a vida o amor a morte, desde quando era muito jovem e vi o filme de Claude Lelouch, La Vie, l’amour, la mort (1969), em que o realizador faz um libelo contra a pena de morte, essa forma de assassinato patrocinado pelo Estado que ainda estava em vigor na França.
Sim, Inevitável é papo cabeça. Tive preguiça de vê-lo, e, quando finalmente me dispus a ver, com aquela máxima em mente – se for chato, pára –, achei a primeira sequência estilosa demais, e quase dei stop. Sacumé? Estou velhinho, não tenho muito tempo, não quero usar o tempo com coisas pesadas, chatas, estilosas. Como dizia o muito jovem Caetano, “eu quero a geral, quero ouvir gargalhada geral, quero um lugar para mim, para você na matinê do cinema Olympia”.
Felizmente não dei stop.
Uma abertura estilosa, com visual muitíssimo elaborado
A primeira sequência é numa rua de uma cidade muito, muito antiga, evidentemente européia. Vemos um jovem elegante, de terno (Mighello Blanco), caminhando numa direção – e, na direção contrária, caminha uma mulher jovem, também muito elegante (Déborah Vukusic).
Essas tomadas são em um mui suave slow motion. Não é uma câmara lenta muito acentuada, não. É suave. E as imagens parecem ter sido muito trabalhadas, agora que o cinema conta com as imagens geradas por computação, CGI, na sigla em inglês, porque os demais transeuntes caminham em velocidade normal, mas o jovem homem e a jovem mulher em questão andam suavemente mais devagar.
Há então um super hiper big close-up dos pés da mulher tocando o chão de pedras da rua, e pela primeira vez o espectador ouve ruídos da rua, aparecendo e se sobrepondo à música.
Os dois estão caminhando um em direção ao outro.
Se olham. Se vêem.
Mas continuam caminhando, começam a se distanciar. O ritmo da câmara dá mais uma ralentada, um suave slow motion.
O homem se vira para trás, observa a moça que agora está de costas para ele. Mas não vai lá falar com ela.
Corta, e muda tudo.
Não pára nunca de surgir gente talentosa no cinema argentino?
E se?
E se ele tivesse ido até lá falar com a moça?
Toda a vida dele poderia ter sido diferente, toda a história dela poderia ter sido outra.
Mas ele não foi. Ela não se voltou para trás, para, no caso de ele também estar olhando para trás, incentivá-lo a tomar a dianteira, a iniciativa.
Depois dessa sequência, vêm os créditos iniciais – que maravilha, um filme com créditos iniciais! –, e os personagens que vemos agora não têm nada a ver com aqueles jovens que se cruzaram numa rua européia.
O que vemos agora são um casal aí na faixa dos 50 anos, Fabián e Mariela, e sua filha Vanina, aí de uns 18 anos, ainda aborrescente.
Fabián é interpretado por Darío Grandinetti. Mariela, por Carolina Peleritti, e a chata Vanina, por Paula Sartor.
Nunca tinha visto nenhum desses atores. Nunca tinha ouvido falar no diretor Jorge Algora (e co-autor do extraordinário roteiro, junto com Héctor Carré).
E isso chega a deixar a gente um tanto irritado: não pára nunca de surgir gente talentosa no cinema argentino? Por que, meu Deus do céu e também da terra, nuestros hermanos são tão competentes para fazer cinema, mesmo com toda a absurda situação econômica em que um monte de anos de populismo kirschnerista mergulhou o país? O que eles têm que nós não temos?
Um casal que tem todo o conforto material – mas não são felizes
Jorge Algora e Héctor Carré escreveram o roteiro deste filme excepcional com base na peça de teatro Cita a ciegas, de autoria de Mario Diament, jornalista e escritor argentino nascido em 1942. Estranhamente, a Wikipédia em espanhol traz pouquíssimas informações sobre Mario Diament. Não dá para saber se o roteiro foi bastante fiel à peça teatral, ou não.
Fabián e Mariela têm uma vida bastante confortável, em termos materiais, mas não são felizes. Acordam juntos, todos os dias da semana, exatamente às 7h30 da manhã, mas não se tocam, não se falam durante o café da manhã. Não há carinho algum na relação.
Fabián tem um alto cargo em um banco, Mariela é psicóloga, tem um belo consultório.
As coisas no banco não vão bem. Há a crise – a Argentina, como disse um personagem de Ricardo Darín já nem me lembro em que filme, está sempre em crise –, a necessidade de aumentar os lucros. O presidente do banco é um sujeito exigente, chato, pentelho, ameaça sempre os diretores e gerentes. Um deles, Freire (Carlos Kaspar), colega de Fabián no banco há uns 20 anos, tem em enfarte fulminante pouco depois de uma das estressantes reuniões de diretoria.
Paralelamente, Mariela também enfrenta sua carga de stress. Uma nova paciente, Olga (Mabel Rivera, no sofá na foto acima) tem uma atitude agressiva com ela: diz, durante uma sessão, que seguramente ela, a psicóloga, faz anos que não tem uma trepada satisfatória. E o espectador já percebeu que isso é a pura verdade, dada a frieza com que marido e mulher se tratam.
Sob o impacto da morte brusca, brutal, do colega, em pleno expediente, Fabián sai por um momento do trabalho e senta-se para descansar em um banco de uma bela praça. Chega-se então e senta ao lado um velho cego, cabelo todo banco, de terno, socorrendo-se com uma bengala (o papel de Federico Luppi). Fabián o reconhece pelas fotos de jornais: é um escritor muito famoso.
Um escritor famoso, cego – claro que não dá para o espectador não pensar que é uma homenagem a Jorge Luís Borges.
O escritor é um personagem fundamental da história, mas ele não tem nome. É chamado o tempo todo ou de o escritor, ou de o cego, apenas.
Nessa primeira vez em que se encontram, há o seguinte diálogo:
Fabián (já de pé, pronto para voltar ao trabalho): – “Tenho muita admiração por pessoas que, como você, enfrentam com coragem uma perda tão grande. Se eu ficasse cego, não saberia como viver.”
O cego: – “E agora, sabe? (Uma pausa.) Não é tão grave viver com os olhos fechados. E tampouco tão difícil. De uma forma ou de outra, é o que todos fazemos. É inevitável – como o amor.”
O bancário conhece uma jovem bela, gostosa. Perde a cabeça
Voltarão a se encontrar diversas outras vezes, o bancário quase banqueiro e o escritor cego, sempre no mesmo banco da mesma praça. O escritor contará para Fabián que, quando era bem jovem, e ainda enxergava, teve uma experiência que o marcou para sempre. Foi numa viagem a Santiago de Campostela, na Galícia. Ele estava andando numa determinada rua quando viu uma mulher linda, com uma expressão muito triste. Deveria ter parado, conversado com ela – toda sua vida teria sido diferente. Chegou a parar, olhar para ela, mas ela não se voltou, continuou andando. Nunca mais se viram.
Uma trama bem urdida, bem trançada.
Pouco depois da morte do colega Freire, e do primeiro encontro com o escritor, Fabián vai a uma vernissage na galeria de um conhecido, um grande cliente do banco, Posternak (Raúl Calandra). Posternak o apresenta a Alicia (Antonella Costa), uma jovem escultora que ainda não teve oportunidade de ter seu trabalho reconhecido.
Alicia é jovem, bela, gostosa, provocante.
Fabián perderá a cabeça por ela.
A peça teatral deu origem a este filme e a um outro feito na Romênia!
Incrível, fantástico: no mesmo ano em que foi produzido este filme argentino, a mesma peça do escritor portenho Mario Diament deu origem a um filme romeno! A rigor, uma co-produção Romênia-EUA, mas tudo indica que os americanos só entraram com dinheiro. O diretor, Andrei Zinca, e os atores são todos romenos. O filme foi distribuído com o título internacional de Puzzle, quebra-cabeça.
Em uma crítica no site do jornal Ámbito Financiero, um tal Paraná Sendrós diz que o roteiro do filme Inevitable foi bastante fiel à peça de Mario Diament, com poucas alterações. Ele realça, é claro, as semelhanças do personagem do cego com Jorge Luís Borges – inclusive a forma de segurar a bengala. Vale a pena transcrever dois trechos do texto dele:
“Es una obra (a peça teatral) de reducido elenco, cuyos personajes, tristemente vinculados entre sí, charlan ocasionalmente con un viejo escritor ciego sentado en el banco de una plaza. El ciego ve lo que los demás no pueden, y a veces sugiere algún consejo fácil de dar, o juega con alguna excusa metafísica para soñar que un romance imposible se esté concretando en otra dimensión paralela. Pero en cierta ocasión alguien se toma demasiado de sus palabras, y varias cosas se desbarrancan.”
“Las mejores actuaciones femeninas están a cargo de Mabel Rivera y Carolina Peleritti, de admirable caracterización como víctimas laterales del drama pasional. Muy buena, la escena sin palabras donde ambas se enfrentan a la desgracia. Escena elogiable, además, porque altera el tono uniforme de la representación. También altera un poquito la obra original, y lo hace para bien. Otros cambios, bastante menores, sólo afectan al precio de un cuadro y a la escalera mecánica de la estación Saint Michel de Paris, cambiada por la tristona y romántica rúa do Villar, de Santiago de Compostela.”
Ah, então na peça o encontro inicial dos dois personagens quando jovens se dá na escada rolante de uma estação de metrô em Paris!
Sem dúvida o encontro no meio de uma rua ficou mais cinematográfico. E tem sentido a escolha de Santiago de Compostela: a produção do filme teve apoio do governo da Galícia.
O diretor e co-autor do roteiro Jorge Algora é espanhol de Madri, onde nasceu em 1963. Sua filmografia não é longa: fez duas séries de documentários, três filmes documentários, um filme para a TV espanhola e, na Argentina, apenas dois filmes, El Niño de Barro (2007) e este Inevitable.
Do elenco, a única pessoa que eu conhecia era Federico Luppi, que fez o papel principal no excelente Lugares Comuns, e trabalhou também em Elsa & Fred e no chileno Machuca.
A bela Antonella Costa nasceu em Roma, e seus pais se mudaram para a Argentina quando ela tinha 4 anos apenas. Bem jovem (é de 1980), já tem mais de 30 títulos na filmografia.
Um belo filme. Que esse Jorge Algora faça muitos outros.
Anotação em novembro de 2014
Inevitável/Inevitable
De Jorge Algora, Argentina-Espanha, 2013.
Com Darío Grandinetti (Fabián Ladner), Antonella Costa (Aicia Kusnir), Carolina Peleritti (Mariela Monfrini), Federico Luppi (o cego), Mabel Rivera (Olga), Mighello Blanco (o cego jovem), Déborah Vukusic (Olga jovem), Raúl Calandra (Posternak), Carlos Kaspar (Freire), Paula Sartor (Vanina)
Roteiro Jorge Algora e Héctor Carré
Baseado em peça de Mario Diament
Fotografia Suso Bello
Música Berroguetto
Montagem Guillermo Represa
Produção Adivina Producciones.
***1/2
Olá, boa noite!
Resolvi pedir sua ajuda, pois não estou conseguindo encontrar a legenda deste filme. Encontro o torrent com facilidade e, também, versões dubladas, mas esta não seria uma opção.
Você sabe de algum site que tenha a legenda em português?
Desde já muito obrigada!
Natasha
Ô Natasha, não vou poder ajudar você!
Você acredita que não mexo com essa coisa de baixar filme via internet?
Sou um velhinho meio (ou muito, vá…) tradicionalista para algumas coisas. Gosto de DVD, suporte físico, essa coisa que a gente pega. Admito também gravar no HD da Net… Mas baixar, não entendo nada disso.
Desculpe!
Sérgio
Olá. Ano passado assisti este filme mas não peguei o início. Simplesmente fiquei fascinada por isso gostaria de vê-lo na íntegra, mas não conseguia lembrar o nome. Pesquisando na Internet me deparei com este site… Adorei sua análise e comentários inteligentes e bem articulados. Muitíssimo grata. Grande abraço.
Boa Noite!
Estou atrás da letra da canção trilha sonora deste excelente filme. Pode me ajudar?
Felicidades
Boa Noite!
Apenas ontem assisti “Inevitable” e estou atrás da letra da canção deste excelente filme. Pode me ajudar?
Felicidades
O filme esta disponivel no Netflix
a musica esta em
https://vimeo.com/84879030
Boa tarde!
Também não estava dando nada pro filme, então li a sua crítica, me empolguei e fui surpreendida ao assistir!
Primeira vez que acesso o site e, com certeza, voltarei! Obrigada (:
Ola,Natasha.
Consegui baixar o torrente por aqui esta baixando só tem 1 seeds e não sei se é dublado ou tem legenda, mas para te ajudar .
http://www.estrenotorrent.com/download?token=cytPUTZHaC9xVVFrdHI0cnpIaFZJeXFuN3BEOG5jZmhxa1RSYnpmc2pDUlZ6QVFlOUhxb2t4d01Sem5HY3RkN2dUcnlCanVueUNxL0hmUkpJM0QvdlZPcW5ZVHE4aU9YanlDRExSV1dSVlJ4SmV1QkJVNFBzSVIzTnBtTDRGNi8%3D
Nossa veio tanta coisa o nome é http://www.extrenotorrent.com
Boa sorte esta baixando devagar mas esta indo
Olá Sérgio. Assisti esse filme há cerca de dois anos. Fiquei tão encantada com a grandeza e sensibilidade que, desde então, procuro para ver novamente. Como não consegui mais encontrá-lo, vivo procurando informações sobre ele. E hoje tive a honra de encontrar a sua análise, vi que já tem alguns anos que vc escreveu mas não quero perder a oportunidade de falar dos meus sentimentos. Nossa, vc conseguiu traduzir tudo que eu senti ao assistir esse filme que considero um dos mais belos que vi na vida. Também me perguntei o que nossos hermanos têm para conseguir fazer arte de tamanha grandeza. Sou fã do cinema argentino. Obrigada a você por nos presentar com sua percepção, sagacidade e generosidade em dividir conosco essa saga sobre a nossa existência.