Sensível, forte, bem realizado filme do novo cinema chileno: um retrato realista, cru, despojado de qualquer glamour, da vida de uma mulher madura e solitária numa grande metrópole.
Tem muitos méritos o jovem diretor (e um dos co-autores do roteiro) Sebastián Lelio – mas boa parte do brilho deste Gloria se deve à atriz Paulina García, que interpreta, magistralmente, a personagem título.
Gloria é uma mulher de cerca de 50 anos de idade; não é feia, mas também não é muito bonita ou especialmente atraente. Está separada do marido Gabriel (Alejandro Goic) há uns dez anos já. Ela mais visita os dois filhos, que estão aí na faixa dos 20 e poucos anos – Pedro (Diego Fontecilla) e Ana (Fabiola Zamora) – do que é visitada por eles. O que não deixa de ser natural: os filhos têm lá suas preocupações, seus compromissos, sua vida para levar.
Pedro foi abandonado pela mulher, que deixou com ele o filho pequeno dos dois. Ana está iniciando um relacionamento sério com um rapaz estrangeiro, um finlandês cujo hobby é o alpinismo.
Como praticamente todas as mulheres da classe média de sua geração e nível social e cultural, Gloria trabalha. O espectador a vê a caminho do escritório, lá dentro – embora o filme não se preocupe em explicitar que tipo de trabalho é, e dessa forma indica que não é importante especificar a profissão dela. Tem um emprego que parece razoável, e recebe um salário digno, pelo que se vê de seu estilo de vida. Não passa por nenhuma necessidade básica. Tem seu carro, o apartamento em que vive é confortável.
Gloria é solitária – mas não é uma pessoa triste, deprimida, depressiva. Ao contrário: é uma mulher ativa, e para cima. Leva a vida com alegria, com força, com galhardia. Dirige seu carro, por exemplo, cantando alto junto com o cantor/a cantora que toca no rádio.
Gosta de dançar. Embora sozinha, frequenta casas em que se dança. E sai pelo salão dançando, contente.
Gloria é uma mulher cheia de energia.
Numa das idas ao salão de dança, conhece Rodolfo (Sergio Hernández), um homem aí de uns 60 anos. Começam um relacionamento.
O namoro de Gloria e Rodolfo ocupará boa parte da narrativa, e por isso, naturalmente, não teria sentido eu me estender antecipando os acontecimentos.
Na trilha sonora, “Gloria”, música pra cima, mais “Águas de Março”, “Lança Perfume”…
Um detalhe.
Há dezenas de canções na trilha sonora. Gloria gosta de música, está sempre com o rádio do carro ligado, canta junto, como já foi dito, frequenta salões de dança. Assim, o espectador ouve ao longo da narrativa diversas, diversas músicas. Imagino que muitas delas – que eu nunca tinha ouvido – sejam pop recentes, do Chile mesmo ou de outros países da América Latina.
Uma das canções tem como título o nome da protagonista e do filme. Eu nunca tinha ouvido falar dessa canção, “Gloria”, um treco meio discoteca, nem do cara que canta, Umberto Tozzi. Aprendo agora que Umberto Tozzi é um cantor italiano que fez bastante sucesso no final dos anos 70 e ao longo dos 80, não só na Itália como também na América Latina; algumas das canções de seu repertório tiveram versões em espanhol, e ele fez turnê de grande sucesso por países latino-americanos.
Ouço agora “Gloria” no YouTube, e o fato é que a música tem uma pegada quente, forte, pra cima, meio parecida com a de “I Will Survive” com Gloria Gaynor. Sem dúvida alguma, para quem conhece a música – o que deve ser o caso da maioria dos espectadores chilenos – deve ter um impacto bem maior do que teve para mim a sequência em que Gloria, a personagem, dança ao som de “Gloria”, a canção.
No meio das várias canções que há no filme, aparece com especial destaque “Águas de Março”, de Tom Jobim. “Águas de Março” é cantada por amigos de Gloria em uma festa – um casal divide os versos, o homem tocando violão, e depois alguém se senta ao piano e acompanha.
Achei fascinante isso. “Águas de Março” é mesmo um marco – não é à toa que Art Garfunkel canta uma versão em inglês e Georges Moustaki, uma em francês.
E o filme ainda tem Rita Lee cantando, no som de uma boate, “Lança Perfume”.
Uma busca clara pela universalidade das situações
Uma característica que chamou bastante minha atenção em Gloria foi que, na imensa maior parte do filme, não se particulariza o lugar em que a ação se passa. Gloria poderia ser uma mulher de qualquer país de língua espanhola – poderia perfeitamente morar em Buenos Aires, Montevidéu, México, Lima, Madri, Barcelona.
Se nos abstraíssemos da língua falada pelos personagens, a rigor Gloria poderia ser uma mulher de classe média de qualquer lugar do mundo ocidental.
Seus problemas, suas aflições, suas alegrias – tudo é absolutamente universal. Não há nada que seja especificamente chileno.
O diretor Sebastián Lelio parece enfatizar essa vontade de que o filme seja sobre a vida, o comportamento de uma mulher que poderia ser chilena, brasileira, colombiana, americana, canadense, italiana, australiana – o que fosse. Ele não focaliza nenhum ponto específico ou facilmente reconhecível de Santiago, aquela cidade maravilhosa. Faz questão de não mostrar nada que exista só em Santiago. Não há uma tomada sequer em que apareça a Cordilheira dos Andes – que está sempre presente no horizonte, onde quer que você esteja naquela metrópole.
Achei fascinante essa característica, essa busca clara pela universalidade das situações. Por isso mesmo me espantei um pouco quando, lá pela metade da narrativa, Sebastián Lelio põe o Chile no centro das atenções.
Gloria e Rodolfo estão jantando com um casal de amigos de Gloria. O amigo é um sociólogo. E, no meio da conversa, faz a seguinte afirmação:
– “É difícil amar o país. Porque aconteceram tantas coisas que o que foi o Chile, o que foi no passado, agora parece um fantasma. Esse Chile morreu, e o que se construiu depois é como a réplica de alguma coisa que está sendo pensada em outro lugar do mundo, e o motor desse pensamento é a cobiça.”
É como se o diretor dissesse: já se passou muito tempo, vamos olhar para a frente
Essa fala é o único momento em que Gloria faz referência ao passado recente, à ditadura sangrenta, violenta que sufocou o país entre 1973 e 1990 e deixou marcas profundas. Não vi, infelizmente, um número bem grande de filmes chilenos ou passados no Chile, mas todos os que vi, antes de Gloria, iam fundo na discussão das marcas deixadas pela ditadura, talvez a mais feroz e assassina de todas as que se abaterem sobre a América Latina na segunda metade do século XX. Machuca, No, A Dançarina e o Leão, O Carteiro e o Poeta, Desaparecido/Missing – todos eles tratam da ditadura e sua herança maldita.
Gloria é o primeiro que vejo que só fala da ditadura en passant, e daquela maneira pouco incisiva, talvez até pouco clara.
É como se o diretor Sebastián Lelio quisesse tocar a vida em frente, parar de olhar no retrovisor. Tipo assim: já se passaram 24 anos desde que Pinochet deixou o poder, o país mudou, é outra coisa hoje, vamos em frente.
Sebastián Lelio nasceu em março de 1974, meio ano, portanto, depois que o golpe de Pinochet derrubou o governo democrático de Salvador Allende. Quando Pinochet deixou o poder, estava com 16 anos. Mais ou menos como minha filha, que estava com 10 anos quando acabou a ditadura no Brasil. Os jovens dessa geração passaram muito mais tempo de sua vida em regime democrático. É compreensível, é natural que eles queiram olhar para a frente.
Não estou querendo dizer, de forma alguma, que não se deva lembrar a ditadura. Não é isso, absolutamente. É preciso lembrar sempre o horror que foi a ditadura chilena, que foi a ditadura brasileira – até para não permitir que volte a se abater sobre nós aquele negror, aquele pavor.
Quantos filmes forem feitos para alertar as novas gerações sobre o absurdo que é a ditadura, tantos serão sempre bem-vindos.
Mas também é compreensível, é natural, que a gente olhe em frente.
Um leitor chamado Guy Bellinger escreveu no IMDb o seguinte sobre Sebastían Lelio:
“A partir de 2005, ele dirigiu quatro longa-metragens notáveis, os três primeiros muito pesados, o quarto um pouco mais leve, sendo que todos eles ganharam prêmios em festivais internacionais. La Sagrada Família (2005) é uma espécie de versão chilena do Teorema (1968) de Pier Paolo Pasolini. Depois vieram Navidad (2009), um drama de intensidade incomum focalizando três adolescentes alienados de suas famílias, e El Año del Tigre (2011), recontando a fuga de prisioneiros durante o terremoto que abalou o Chile em 2010. Vindo depois desses três filmes pesados, Gloria (2013) surpreendeu pelo seu tom mais ameno. As aventuras amorosas de Gloria, uma funcionária de escritório de 60 anos em Santiago, embora não sem tensões e amargura, são menos perturbadores que os filmados antes por Lelio. Mas seja negro ou róseo, o cinema de Leio explora a sociedade chilena de hoje com a mesma acuidade.”
Esse mesmo sujeito – que demonstra tão bom conhecimento – diz que Sebastián Lelio é, ao lado de Pablo Larraín e Andrés Wood, uma das principais figuras do cinema chileno pós ditadura militar.
Gostaria de ver mais filmes de todos eles.
Pablo Larraín é o autor do maravilhoso No, sobre o plebiscito que marcou o início da redemocratização do Chile. Ele é um dos vários produtores deste Gloria aqui.
A atriz Paulina García foi premiada em Berlim pela excelente atuação
Paulina García. O mesmo Guy Bellinger é quem escreve a minibiografia da atriz no IMDb. Trechos: “A Grande Dama do teatro, da TV e do cinema chilenos, Paulina García já recebeu um número impressionante de prêmios, entre eles o prestigioso Urso de Prata de Berlim em 2013 (exatamente por seu desempenho em Gloria). Paulina García estudou drama na Universidade Católica do Chile, onde estreou na peça Donde estará la Jeanette? Desede então, apareceu em cerca de 30 peças. Também diretora de teatro e dramaturga, a multitalentosa García criou a Asociacion de Directores de Teatro, uma escola dramática em que deu aulas até 2001.”
Paulina é de 1960. Estava, portanto, com 53 anos em 2013, quando o filme foi lançado. Eu estava certo quando escrevi lá em cima que Gloria é uma mulher de cerca de 50 anos, e Bellinger se enganou ao dizer que a personagem tem 60.
Enganos.
Creio que Sebastián Lelio – que acertou com brilho ao realizar este filme – e seu co-roteirista Gonzalo Maza cometeram um equívoco num pequeno detalhe da história. Quando Gloria vai ao aniversário do filho Pedro, ela comenta, ao cumprimentar o ex-marido Gabriel (que estava acompanhado pela atual mulher, Flavia, interpretada por Liliana García), que os dois não se viam havia dez anos ou um pouco mais.
O relacionamento dos dois ex ali, no aniversário do filho, é extremamente cordial; e Gloria e a atual mulher dele também se tratam de maneira polida, educada, até afetuosa. Tudo como deve ser mesmo – mas que muita gente não consegue, como o próprio namorado de Gloria, Rodolfo, que, apesar de separado faz um ano, ainda mantém uma relação de interdependência com a ex-mulher.
É um detalhinho, mas achei que há aí um óbvio equívoco. Como Gloria e Gabriel se trataram tão bem, de forma tão adulta e madura, por que então ficaram dez anos sem se ver? Por que não se reencontraram ao longo dos dez outros aniversários da filha e do filho?
Mas isso, repito, é detalhinho, é coisa de somenos importância. Gloria é um belo filme, e Sebastián Lelio é um diretor a quem devemos prestar atenção.
Anotação em novembro de 2014
Gloria
De Sebastián Lelio, Chile-Espanha, 2013
Com Paulina García (Gloria),
e Sergio Hernández (Rodolfo), Diego Fontecilla (Pedro, o filho), Fabiola Zamora (Ana, a filha), Luz Jiménez (Victoria, a empregada), Alejandro Goic (Gabriel, o ex), Liliana García (Flavia, a mulher do ex), Coca Guazzini (Luz), Hugo Moraga (Hugo), Cristián Carvajal (o vizinho), Eyal Meyer (Theo), Tito Bustamante (Joaquín), Antonia Santa María (María)
Argumento e roteiro Sebastián Lelio e Gonzalo Maza
Fotografia Benjamin Echazarreta
Montagem Sebastián Lelio e Soledad Salfate
Produção Fabula, Nephilim Producciones. DVD Imovisión
Cor, 110 min
***
Gostei desse “Gloria”, apesar de não ter tido identificação com nenhum personagem; mas quando o filme é bom não é preciso haver identificação para gostar. Acho que comentei sobre ele com você, lembro que o vi na mesma época em que assisti ao *hermano uruguaio “La Demora”.
Gostei mais ainda da atitude que a personagem Gloria tomou em relação ao tal Rodolfo, no último contato que tiveram. O personagem dele só prova que canalhice não tem limite de idade. O que ele fez com ela lá na cidade de praia foi de sentar e chorar por dias a fio.
Filmes com fatos cotidianos, que geram identificação no espectador, para mim são sempre mais interessantes. A cena em que Gloria aparece, num momento de coragem, depilando as pernas com cera (e ouvindo e cantarolando alguma música) é um exemplo.
E por falar em música, não estou acreditando que você não conhecia a canção que tem o mesmo nome do filme… Deve ter tocado demais quando eu era criança, ou seja, no início dos anos 80, pois quando a ouvi, me lembrei imediatamente e até curti. hehe Só acho que eu conhecia apenas a versão em inglês (mais animada que a original – a coloquei pra tocar no YouTube enquanto escrevo), e provavelmente cantada por uma tal Laura Branigan. E sim, ela é meio discoteca, e era bem esse tipo de música que tocava nessa época, já que a década de 80 pegou muito da breguice explícita dos anos 70.
Concordo com o que você disse sobre olhar para a frente. Nem todo filme chileno precisa falar de ditadura. Foi terrível e tenebrosa sim, tanto a deles quanto a nossa, e é preciso às vezes olhar para o passado a fim de não se cometer os mesmos erros, mas por ser da mesma geração do diretor, eu me identifico com isso de olhar mais para a frente que para trás.
Outra coisa interessante e de que não me lembrava mais, por ter visto o filme há quase um ano, é você falar que Gloria era solitária mas não era triste nem deprimida. A solidão é uma das grandes questões deste século, acho que já faz um tempo que vem sendo assim, e acredito que só tende a piorar. Em qualquer grande cidade do mundo hoje há milhares de pessoas solitárias (lembrei do filme “The Apartment” – Wilder sempre à frente de seu tempo); parece que quanto mais o homem evolui em tecnologia, mais regride nas relações humanas. Mas solidão nem sempre significa tristeza, até há pessoas que funcionam melhor sozinhas. Enfim, só queria dizer que concordo com sua observação [não tenho mesmo capacidade de síntese].
A primeira música brasileira que ouvi na também primeira vez em que viajei para o exterior foi “Águas de Março”. Achei o máximo! (e acho o máximo toda vez que ouço boa música brasileira em filme estrangeiro). Nem vou falar no tipo de música “made in Brazil” que se ouve hoje em dia lá fora.
*Uma vez um amigo mexicano me perguntou por que chamamos os argentinos de hermanos, mas os outros vizinhos não. Vai tentar explicar uma questão cultural e uma relação de amor-e-ódio… Então taí: somos todos hermanos desse lado da América. “Deus salve a América do Sul!”
Absoluta delícia, Jussara!
Obrigado! Grande abraço.
Sérgio
Sobre o detalhe do ex-casal, acho que quanto menos vc vê o ex (ou a ex), melhor o o tratamento entre eles. hahahha
Excelente filme, excelente texto.
Abraços!
Olá, Sérgio!
Não vi o filme, mas vim comentar da música da versão em inglês (nem sabia da outra). Foi hit mesmo na época, bem legal! E, como td volta, agora tem uma versão ‘disco/academia’ dela!
Obrigado pelo comentário e pelas informações, Patrícia.
Veja o filme. Você vai gostar!]
Claudia, muito obrigado pelo elogio.
Um abraço para as duas!
Sérgio