Eis aí um filme hoje obscuro, pouco conhecido, e que no entanto é fascinante. Dirigido por Raoul Walsh em 1936, Klondike Annie, no Brasil A Sereia do Alaska, assim, com a letra k, é dinamite violentíssimo contra os moralistas, os preconceituosos, os fundamentalistas, os caretas, os babacas. Fala do encontro de uma puta e uma freira.
A puta, claro, é interpretada por Mae West, a estrela e símbolo sexual mais improvável, mais impossível da História do cinema, e uma de suas mais irreverentes, iconoclastas, boquirrotas, ousadas, atrevidas figuras.
Mae West (1893-1980) não era linda; para os padrões das últimas décadas, sequer era bonita. Não tinha corpo escultural, de forma alguma – era um tipo roliço, um tanto cheio demais, sem cintura. Não tinha uma elegância graciosa – muito ao contrário. Ao vê-la agora neste delicioso Klondike Annie, pensei em John Wayne: Mae West anda mexendo o corpo inteiro, não rebolando os quadris, não, mas mexendo o corpanzil inteiro de um lado para o outro meio como um pato, meio como o Duke.
Como dizia Michael Caine, em seus depoimentos para o documentário Olhar Estrangeiro (2006), de Lúcia Murat, nós, brasileiros, estamos muito mal acostumados, com tanta mulher bonita e gostosa que há aqui. O grande Michael Caine disse para a câmara de Lúcia Murat a seguinte verdade: “O Brasil é um clichê por um ótimo motivo: eu acho que o Brasil produz mais gente bonita do que qualquer outro país. Se vocês quiserem ser tratados mais seriamente, acho que vocês deveriam dançar menos e ficar mais feios.”
Pois é: nós, brasileiros, estamos muito mal acostumados, e talvez para nós Mae West pareça tão pata manca à la John Wayne porque há aqui tantas mulheres esplendorosamente lindas e com ginga maravilhosa. Mas a verdade dos fatos é que ela, inequivocamente, o mais improvável símbolo sexual da história.
Talvez tenha virado símbolo sexual porque, mais que qualquer outra atriz, essa mulher um tanto grande demais, nada elegante, nada graciosa, fosse tão abertamente ousada, atrevida, e estivesse o tempo todo, absolutamente todo, falando sobre sexo, pensando em sexo.
Mae West era tão obviamente, abertamente ousada, que é quase unânime entre os estudiosos, os pesquisadores, o entendimento de que a criação do Código Hays, o estabelecimento do código de autocensura dos grandes estúdios, para atender à gritaria das ligas de decência e das senhoras cristãs nos anos 1930 deveu-se em boa parte à existência dela.
Mae West chacoalhou tanto as convenções da indústria quanto faria um elefante numa loja de porcelana.
E o caminhar dela até que faz lembrar também o de um elefantinho.
É bem possível que seja esse o segredo do sex-appeal de Mae West: o atrevimento aberto, a ousadia às claras. O fato é que, nos filmes com Mae West, todos os homens ficam absolutamente tarados por ela.
Era a atriz a mulher mais bem paga dos EUA; salvou a Paramount da falência
Do protótipo da loura burra, lôraburra, não tinha absolutamente nada. Era inteligente, esperta, sagaz. Começou a atuar aos 12 anos, no teatro de vaudeville. Passou a escrever ela mesma os roteiros de seus shows e peças teatrais que faziam furor em Nova York. Em 1926, por causa de sua peça Sex, foi condenada por obscenidade, e chegou a passar dez dias na prisão, de onde saiu mais explícita ainda, para montar Diamond Lil, uma peça que, pelo jeito, ainda pareceria ousada em 1980.
O teatro, naturalmente, sempre foi e era, naqueles anos 1920, 1930, muito mais liberal, aberto, do que o cinema. O que era permitido num espetáculo de teatro da Broadway – pelo qual se pagavam vários dólares – era impensável numa tela de cinema, com seus ingressos a 25 cents, e portanto acessíveis a um número muitíssimo maior de pessoas.
Mae West mudou-se do teatro de Nova York para o cinema de Los Angeles em 1932 – e, desde sua estréia, em Noite Após Noite, foi um terremoto. Caiu como uma bomba atômica sobre o puritanismo dos Estados Unidos de então. E fez um sucesso estrondoso.
George Raft, seu companheiro em Noite Após Noite, diria, sobre a participação dela no filme: “Mae West roubou tudo, menos as câmaras”.
Contratada então pela Paramount, ela iria rapidamente se tornar não apenas a atriz mais bem paga dos Estados Unidos, mas a mulher mais bem paga do país, em qualquer tipo de atividade. E conseguiria salvar o estúdio da falência iminente no fundo do poço da Grande Depressão, em 1934-1935.
Rose, a personagem central, havia sido prostituta, e agora é amante de um chinês
Em 1936, ano deste filme aqui, ela estava no auge. Foi a autora do roteiro – por sua vez baseado em uma peça dela mesma, Frisco Kate, e, segundo consta, duas outras obras, a história até então inédita “Halleluyah I’m a Saint”, de Marion Morgan e George B. Dowell, e o conto “Lulu Was a Lady”, de F. Mitchell Dazey.
O grande Raoul Walsh (1887-1981) já era um veterano – começara a carreira como diretor em 1915. Victor McLaglen (1886-1959), que faz o segundo papel mais importante em Klondike Annie, também já era experiente veterano, carreira iniciada em 1920; no ano anterior, 1935, já havia trabalhado sob a batuta do mestre John Ford em O Delator/The Informer, e voltaria a trabalhar com ele em filmes memoráveis como Sangue de Heróis/Fort Apache (1948), Legião Invencível/She Wore a Yellow Ribbon (1949) e Depois do Vendaval/The Quiet Man, em que protagoniza com John Wayne uma das mais fantásticas lutas destes primeiros cento e tantos anos de cinema.
Ainda não se passaram nem cinco minutos de filme, e Mae West surge na tela cantando para uma platéia embevecida uma música com letra bem safada, que diz: “I’m an occidental woman in a oriental mood for love” – sou uma mulher ocidental a fim de amar de um jeito oriental.
Ela canta – acompanhando-se ao violão – no palco de uma gigantesca sala da mansão de um milionário chinês, Chan Lo (Harold Huber, na foto acima), na Chinatown de San Francisco. (Um letreiro após os créditos iniciais nos informa: “San Francisco Chinatown in the 90’s”. Os anos 90 do século XIX, é claro.)
A mansão está repleta de convidados de Chan Lo – dezenas e dezenas e dezenas de homens e mulheres em trajes de gala. Grupinhos demonstravam grande curiosidade em ver a estrela da festa, Rose Carlton, conhecida como The Frisco Doll, a Boneca de San Francisco – o papel, claro, de Mae West.
A autocensura dos estúdios era brava, naqueles primeiros anos de vigência do Código Hays, e então não é dito explicitamente, mas Rose havia sido uma prostituta famosérrima na cidade. Nos últimos tempos, havia sido adotada pelo milionário Chan Lo, que se apaixonara perdidamente por ela.
Ciumentérrimo, Chan Lo até permite que as pessoas vejam sua prenda cantar – mas ela é terminante proibida de conversar com homens ocidentais. Num diálogo com seu amante, mantenedor e ao mesmo tempo captor, sequestrador, ela fala em “raça” – “Quando você vai permitir que eu converse com homens da minha raça?” Ao que Chan Lo responde: “Está escrito que há dois tipos de homens perfeitos: um morto, o outro ainda não nascido”.
A Boneca de Frisco pode até ter gostado de ser tão mimada em mansão tão elegante pelo chinês podre de rico, no início – mas agora está profundamente descontente com aquela vida de prisioneira de luxo, e está determinada a fugir dali. Um amigo arranjou lugar para ela em um navio que partiria de San Francisco rumo a Nome, no Alasca; a Boneca acha interessante a perspectiva de ir para o Alasca em plena corrida do ouro na região de Klondike. E, para fugir, ela terá a ajuda de uma camareira e alguns criados chineses de sua confiança.
Chan Lo, no entanto, descobre os planos de fuga da amada. Mas ela consegue fugir, e logo a vemos, junto com a camareira Fah Wong (Soo Yong), no navio do capitão Bull Brackett (o papel do grandalhão Victor McLaglen).
O capitão bate o olho naquele corpanzil e – pronto: apaixona-se perdidamente, para todo o sempre.
Os marujos comentarão entre si a paixão do capitão. Um deles observa de uma janela, sem ser visto, Bull Brackett oferecendo o café da manhã à Boneca, e aí conta para os companheiros que o capitão está apaixonado. Um marujo pergunta: – “Como você sabe que ele está apaixonado?” E o que viu a cena responde: – “Quando um homem põe sal no café e açúcar no ovo, é porque está apaixonado”.
Ao que um terceiro comenta: – “Ele está é louco”.
E o primeiro atalha: – “Está pior do que louco. Está apaixonado”.
A boa freira adoece e morre, a puta veste o hábito dela
No primeiro dia, a Boneca esnoba o capitão. Mas a viagem será longa, ninguém é de ferro, a Boneca gosta do esporte, e não demorará muito a satisfazer a si própria e à sede gigantesca do capitão.
Não estava prevista uma parada em Seattle, mas o namorado da fiel Fah Wong mora lá, e então o naviozão aporta para que a chinesa desembarque. Um mensageiro entrega um envelope endereçado ao capitão Bull Brackett. Dentro está um cartaz daqueles de criminosos procurados: “San Francisco Doll wanted for murder”
Como assim, procurada por assassinato?
Pois é. Volto a essa questão especifíca mais tarde.
Na parada seguinte, em Vancouver, sobe a bordo a Irmã Annie Alden (Helen Jerome Eddy). É uma freira, uma missionária, mulher pura, de fé, que está indo se juntar a um grupo de irmãos que mantêm um centro comunitário para atender às almas e aos corpos necessitados de ajuda moral e material.
Como o navio é um cargueiro, e o melhor aposento – a cabine do capitão – está agora sendo usada por Rose, é lá que se instala também a Irmã Annie. A freira e a puta!
A Irmã Annie insiste para que Rose leia seu livrinho de orações e orientação espiritual.
E, subitamente, a boa irmã fica doente. Rose cuida dela com carinho – afeiçou-se profundamente àquela criatura tão diferente dela.
A Irmã Annie não resiste à doença, e morre.
Assim que o navio chega perto do porto de Nome, no Alasca, um inspetor de polícia, Jack Forrest (Philip Reed), sobe a bordo à procura da Boneca de Frisco, procurada por assassinato.
Rose aparece diante do inspetor com hábito de freira. A morta passa a ser a Boneca de Frisco, e a Boneca vira irmã!
Os irmãos a recebem no porto, entusiasmados. O líder deles, o irmão Bowser (Harry Beresford), diz à falsa Irmã Annie: “Há muito trabalho pela frente. Muitas almas para salvar. Você precisará de todas as suas forças.”
A Boneca de Frisco tinha andado lendo o livrinho da Irmã Annnie. E responde depressa, para gáudio absoluto dos irmãos: – “Não é o que você recebe que conta, mas o que você dá”.
A Legião de Decência exigiu que fossem retirados oito minutos do filme
Seria spoiler narrar o que virá a partir daí, com a puta de San Francisco travestida em Irmã Annie, naquele centro comunitário que faz lembrar as missões do Exército da Salvação.
O que dá para adiantar, sem ser spoiler, é que é absolutamente fascinante como o texto de Mae West – assim como a interpretação dela como atriz – brinca maravilhosamente com os conceitos de moralidade, religiosidade, fé, desprendimento, altruísmo.
É uma total delícia.
Sim, mas por que a personagem central, Rose Carlton, The Frisco Doll, que depois se faz passar por Irmã Annie, é procurada por assassinato?
O IMDb explica. Apesar de todos os cuidados dos produtores, da Paramount, de toda a autocensura, o filme pronto desagradou à Legião de Decência, que tinha grande influência sobre a indústria cinematográfica na época. E foi necessário cortar fora duas sequências do filme, que ocupavam oito minutos da versão original. Uma delas mostra como foi assassinato o milionário chinês Chan Lo – e aí se compreende como Rose conseguiu fugir de seu cativeiro dourado. A segunda mostra como Rose trocou de lugar com o corpo da Irmã Annie, e colocou no rosto da morta uma imensa quantidade de maquiagem para que ela parecesse uma dama da noite.
Eis o que diz sobre o filme o livro The Paramount Story, de John Douglas Eames:
“Descrita na imprensa como desde ‘a maior imitadora de todos os tempos’ até ‘um monstro de lubricidade, ameaçando a sagrada instituição da família americana’, Mae West não dava a menor bola, desde que continuassem falando dela e os dólares continuassem rolando – como aconteceu quando Klondike Annie foi lançado. Ela estava de volta aos briguentos anos 90 como uma dama de Frisco que esfaqueia seu amante chinês (Harold Huber) e embarca num cargueiro em direção ao Alasca. O capitão (Victor McLaglen) é tomado de paixão pela criatura deslumbrante, e o policial que a persegue (Philip Reed) também é igualmente incendiado. Enquanto isso, Mae troca de identidade com uma evangelista morta (Helen Jerome Eddy) e aquece a temperatura do Ártico. Diversas canções foram injetadas no roteiro (escrito pela própria Mae, de uma história de Marion Morgan, George Dowell e Frank Dazey); elas incluíam, apropriadamente, ‘I’m an Occidental woman in a Oriental mood for love’, de Gene Austin.”
Aproveito para lembrar que o título original, Klondike Annie, faz referência à região de Klondike, no vale do Yukon, onde ocorreu uma gigantesca corrida do ouro. A Klondike Gold Rush foi o fenômeno que inspirou Charlie Chaplin a fazer Em Busca do Ouro/The Gold Rush (1925), uma de suas obras-primas. O título brasileiro, A Sereia do Alaska, é grafado assim, com k, e por isso respeitei essa forma.
Leonard Maltin dá ao filme 3 estrelas em 4: “West e McLagen formam uma dupla forte, com Mae fugindo da policia, indo para o Yukon e se fantasiando de trabalhadora do Exército da Salvação. Ela canta “I’m An Occidental Woman in An Oriental Mood For Love” e outros sucessos.
Pauline Kael foi extremamente sucinta: “Mae West e Victor McLaglen. Eles não fazem o outro dar o melhor de si.”
É o que digo cada vez mais frequentemente: Dame Pauline Kael muitas vezes me enche o saco.
Um registro: esta preciosidade esteve, em maio de 2015, na programação do Telecine Cult. Deve estar disponível na internet, mas disso eu não entendo nada.
Anotação em maio de 2015
A Sereia do Alaska/Klondike Annie
De Raoul Walsh, EUA, 1936
Com Mae West (Rose Carlton, conhecida como The Frisco Doll)
e Victor McLaglen (Capitão Bull Brackett), Philip Reed (inspetor Jack Forrest), Helen Jerome Eddy (irmã Annie Alden), Harry Beresford (irmão Bowser), Harold Huber (Chan Lo), Conway Tearle (Vance Palmer), Lucille Webster Gleason (Big Tess), Harold Huber (Chan Lo), Soo Yong (Fah Wong)
Roteiro Mae West
Baseado em sua peça Frisco Kate, na história não publicada “Halleluyah I’m a Saint”, de Marion Morgan, George B. Dowell, e no conto “Lulu Was a Lady”, de F. Mitchell Dazey
Fotografia George Clemens
Montagem Stuart Heisler
Produção William LeBaron, Paramount.
P&B, 80 min
**1/2
Título na França: Annie du Klondike.
Essa era rápida no gatilho!